O canto do cemitério (Parte 2)

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil
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10 min readAug 21, 2017

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caso não tenha lido, link para a Parte 1

Elisa se lembrava do avô comentando sobre como o cemitério era menor nos tempos dele, ainda garoto. Não se lembrava do contexto, ou da conversa em que isso foi dito. Tratava-se de uma daquelas lembranças estranhas da infância, do tipo que todo mundo costuma carregar como um fragmento de um cenário maior que vai se apagando, enquanto o fragmento permanece. Tudo de que se lembrava era de muita gente em casa, pernas de adultos, brinquedos no tapete, um abraço e o cheiro da roupa de alguém (uma tia, talvez) e do comentário do avô. Foi crescendo com esse comentário voltando à lembrança, intacto e forte, por mais que o que tivesse acontecido naquele dia cada vez mais distante fosse se perdendo nas névoas do passado. Sempre que sentia o incômodo em ser vizinha daquele terreno de mortos, o velho comentário do avô lhe voltava no exercício mental de tentar imaginar aquela infinidade de campas de cimento e estruturas de gavetões — que acabavam se parecendo com pequenos e macabros prédios de apartamentos — reduzidos em área, mas muito semelhantes à idéia original. Quando lembrava das reminiscências de seu avô, tentava imaginar como seria aquela região numa época muito mais arborizada, com um pequeno espaço apenas ocupado pelos restos dos que já se foram. Acreditava que seria bem melhor, mas ao mesmo tempo sentia um resquício do velho incômodo de pensar no cemitério e deixava tudo pra lá. Quando não pensava naquilo era muito mais fácil se sentir um pouco mais normal. Geralmente esquecia o assunto em poucos minutos. A rotina, as coisas boas da vida e o seu cotidiano agradavelmente comum eram muito mais dignos de sua atenção.

Elisa amanheceu com a rinite atacada. Era uma cidade de clima úmido e sujeito a mudanças bruscas de temperatura. Já vira quedas de temperatura de trinta e muitos graus para quinze com a chegada de uma frente fria. Mesmo em tempos de verão, já vira dias de chuva fina e insistente acompanhada de uma neblina grossa. Dias capazes de deixar a cidade com cara de inverno mesmo no mais alto verão. Chuva e neblina que se despediam rapidamente num meio de tarde, com um lindíssimo sol a aparecer e fechar o dia, para sentir um calor inacreditável no dia seguinte de um dia tão frio como o anterior. Em todas essas situações, bastava a mudança do tempo ser suficientemente brusca que a sensação de formigas minúsculas andando por dentro do nariz anunciava uma crise. Nariz escorrendo, a cara de choro, olhos lacrimejando e uma indisposição atroz eram rotineiras nessas crises. Mas ainda assim Elisa gostava do clima da cidade, por mais que isso pareça estranho. É verdade que depois que descobriu os remédios certos que aliviavam suas crises, sua vida melhorou bastante. Era só começar a sentir as formiguinhas malditas. Corria pro armário, tomava um dos comprimidos que jamais deixava faltarem e torcia por um alívio considerável. Cem por cento garantido, nunca era, por mais que tomasse o medicamento determinadamente. Menos mal o remédio era suficiente para atacar e aliviar os piores sintomas: o nariz não escorria mais, as formigas paravam, os olhos não lacrimejavam. Mas aquelas sensações de cara inchada e de algo errado nas vias respiratórias continuavam lá. Ainda assim, o clima da cidade lhe era agradável. Assim era nos tempos de calor e tempo firme, onde o céu daquele azul impossível que via tocado da janela do seu quarto pelas folhas da laranjeira. E também era nos períodos de chuva fininha e frio, quando as montanhas pareciam respirar baforadas de neblina, e era delicioso fazer chá ou chocolate quente e se aconchegar por baixo de um edredom ou cobertor pra ler ou assistir um filme. Só mesmo nas bruscas mudanças de temperatura que seu nariz reclamava. Como ainda iria reclamar em breve.

Elisa sentiu a rinite se anunciando e acordou sonolenta. Olhou para o relógio e viu que estava na hora de levantar, se arrumar e ir para seu estágio. Mesmo com a sensação de fuso horário errado, passou os olhos pelo quarto checou a mochila, os livros e o material da faculdade. Tudo arrumado. Só achou que estava estranhamente escuro pra seis e meia da manhã. Foi até a janela e abriu para ver com certa estranheza uma nuvem grande e feiosa, com uma cor atipicamente escura. Achou um pouco estranho uma chuva se armando tão cedo, porque mesmo estando em época de chuvas fortes, o normal era virem mais para os fins de tarde. Pensou nisso a caminho do banheiro quando ouviu sua mãe dizendo na cozinha algo sobre vir uma chuva das grandes por aí. Mal sua mãe terminou a frase, um trovão explodiu. Elisa imaginou que tinha sido próximo, porque conseguiu ouvir aquele som estranho de estalo antes do BUM. Dessa vez o som foi tão pesado que sentiu os vidros da casa tremerem e os pelinhos dos braços e da nuca se arrepiarem. Nunca tinha sentido isso, nunca tinha experimentado uma queda de raio desse jeito. Poucos minutos depois do raio, a luz acabou. Desistiu do banho naquele momento, mas mesmo assim sua mãe fez questão de aconselhar que não tomasse. Voltou para o quarto e pela janela já via o vento agitando as folhas da laranjeira e um certo ar abafado que não parecia o ar de uma manhã. Gotas gordas começavam a espocar no chão, no telhado, nas folhas e aumentaram em progressão até que tudo que Elisa conseguisse ver era uma chuva quase branca de tão densa em um dia escuro que se recusava a nascer. Do quarto ouviu sua mãe dizendo — no trajeto entre um cômodo e outro — que seria loucura sair com essa chuva, ainda que chegasse bem atrasada ao estágio. Melhor esperar parar. Elisa concordava com a avaliação da mãe, só que aguardaram em vão. A chuva não parou. Cerca de quarenta minutos depois do raio, a luz voltou. Ligaram o rádio, que avisava pontos de alagamento em trechos da cidade. Os locutores recomendaram que as pessoas evitassem transitar em certas áreas e davam detalhes dos pontos mais críticos. E a chuva continuava. Elisa percebeu que desde que começara, a força da tempestade se mantinha, com pouca alteração. Normalmente esse tipo de chuva não durava tanto, pelo menos não com essa potência. Na primeira hora de chuva incessante ela prestou bastante atenção e percebia pequenas variações na intensidade. Às vezes diminuía um pouco, por alguns minutos. Dava uma impressão que caminhava para estiar, mas em breve aumentava novamente e voltava à força anterior. Era impressionante. O tempo foi passando, a possibilidade de sair pro estágio foi parecendo algo mais distante. O rádio já veiculava uma mensagem do prefeito, pedindo para as pessoas não saírem de casa.

Elisa ouviu no noticiário por volta da hora do almoço, que a cidade já estava em estado de emergência. Vários pontos de alagamentos, rios que transbordaram. Em alguns pontos da cidade, barreiras caíram. Falava-se em vítimas. Ela sentiu-se triste por lembrar de um texto que estudara para um trabalho da faculdade. Um decreto da época do Imperador Pedro II… mil oitocentos e quando? Esquecera o ano certo, mas lembrava de achá-lo extremamente interessante por sua relevância, tratando de um assunto ainda tão atual: estabelecia expressamente um veto a construções desordenadas nas encostas da região. O texto mencionava claramente o efeito daquele tipo de desmatamento, o enfraquecimento do suporte à terra e a possibilidade do aumento da incidência de deslizamentos de terra, com riscos catastróficos. Triste pesava seu coração, ao lembrar que duzentos anos depois as pessoas insistiam em insistir no erro, crescer suas habitações como um bolor que consumia o verde daquelas colinas e morros tão bonitos. Lembrava também do olhar pesaroso do avô quando via aqueles morros tão cheios de casas tão próximas umas das outras, comentando coisas como “antigamente tinha tão poucas casas” ou “quando tinha mais vegetação, até o clima era mais agradável”.

Elisa não saiu de casa naquele dia. Passou a hora do almoço, conseguiu à tarde ligar para o estágio, falou também com algumas colegas da faculdade. Preocupou-se especialmente com Laurinha, uma colega muito querida que morava em um bairro bastante sensível à quedas de barreiras, ainda mais quando ouviu no rádio que algumas tinham caído justo no bairro dela. A chuva continuou numa constância e força que ela jamais vira antes. Simplesmente não estiava. Diminuía um pouco, dando impressão de que iria estiar em breve, mas ou continuava no mesmo ritmo por um tempo ainda, ou logo voltava a aumentar. Pela porta entreaberta do quarto de sua mãe, percebeu a luminosidade que a luz de uma vela fornecia. Respirou com preocupação e foi para a varanda da frente olhar aquela chuva, encará-la como se fosse uma entidade, uma visita que já se tornava inconveniente. A varanda ainda que coberta e ampla, varandão de casa colonial que era, estava encharcada pela chuva de vento que fazia aquela tempestade atípica. O ar se branqueava pela sucessão de gotas gordas que seguiam caindo e atingindo o chão com estardalhaço. O vento formava ondas visíveis com diferentes tonalidades, empurrando a chuva para o lado do cemitério. As calhas das casas próximas cuspiam uma quantidade de água tão surpreendente que elas próprias, algumas velhas e meio enferrujadas, pareciam pouco certas de que conseguiriam continuar seu trabalho até o fim. Uma calha meio solta numa casa vizinha balançava pateticamente enquanto cuspia seu jorro de tempestade.

Elisa viu a noite chegar sem que a chuva diminuísse. Em alguns momentos perto do fim da tarde houve uma diminuição brusca, onde a tempestade se tornava uma chuva gentil, deixando uma esperança de que fosse parar. E como se pregasse uma peça de mau gosto, em pouco tempo o céu escurecia ligeiramente e o dilúvio tornava a cair com a intensidade de antes. As sirenes dos bombeiros podiam ser ouvidas com uma pressa incômoda e incomum. Elisa jantou mais por força do hábito que por vontade. Quando chegou a hora de ir se deitar duvidou que pegaria no sono dadas as circunstâncias do dia, mas bastou cair na cama para perceber que tanta preocupação lhe deixara mais cansada e tensa que três dias de sua rotina normal de trabalho, faculdade e afazeres gerais. O sono veio rápido e pesado, quase uma morte. E seguiu dessa forma até o meio da madrugada. A primeira coisa que sentiu foi um desconforto enorme, indefinido, misturado com o som de movimento na casa. Levantou assim que ouviu a voz da mãe, através da incomum fresta luz acesa por baixo de sua porta fechada. Correu pra fora do quarto e viu a mãe e seu velho avô sentados na sala, com aquela expressão de quem espera notícias de vida ou morte na recepção de um hospital qualquer. Teve um sobressalto. Nessa hora ouviu o barulho. O desconforto aumentou mais e mais, mesmo que só fosse saber depois que aquele som parecido com o de trovão só que muito abafado, que parecia vir de baixo e não de cima, era uma barreira caindo bem perto de sua casa. A mãe tentava falar com alguém pelo telefone, mãos tremendo. O querido avô, já tão velho e frágil, com uma expressão triste, semelhante à de uma criança com medo de apanhar. Os olhinhos molhados e pretos cortaram o coração de Elisa e ela se virou, correu para o quarto, e enquanto se vestia aproveitou para chorar sem que ele visse. Enquanto se vestia, a mãe conseguiu o milagre: um amigo da família se dispôs a vir buscar as duas mais o velho avô. O medo de que a casa caísse era algo ainda inaceitável para Elisa. Passaram o resto da noite na casa da irmã da mãe, do jeito que puderam. Acomodaram o velho num quarto e se ajeitaram, na sala. O único conforto era saber que a tia morava em um ponto da cidade menos atingido pela chuva. Embora ainda chovesse, ali parecia que a chuva era menos agressiva. A manhã chegou sem que conseguissem dormir, de qualquer modo. A mãe estava um frangalho. O avô parecia ainda mais velho e frágil. A preocupação pela casa, evidente em cada ruga e em cada fio branco da barba por fazer. O olhar era de um homem que já não tinha mais preparo, nem físico nem espiritual para algo tão inédito e cruel depois de ter visto tanta coisa em mais de oitenta anos de vida. Elisa sabia, com uma certeza que nunca tinha sentido antes, que o avô nunca imaginara que a casa poderia correr risco de ser perdida daquela forma. Não se conteve e passou um bom tempo da manhã só abraçada com o avozinho, sem falar nada, como fazia quando criança. Enquanto isso, a tia e a mãe telefonavam, procuravam notícias, comentavam coisas difusas e quando a manhã já ia pelo meio, percebeu que a chuva finalmente tinha parado pra valer.

Elisa, a mãe e o avô ficaram na casa da tia até a hora do almoço, sofrendo por saber de notícias de todos os lados da cidade. À medida que o tempo firmava, o rádio anunciava o saldo acumulado de uma tragédia. Desabamento de casas, quedas de barreiras. Partes inteiras de bairros isoladas. Mortes. Desaparecimentos. A cidade recebia um brilho solar que ia fazendo a lama secar, a meteorologia prometia que a chuva forte tinha se afastado e a probabilidade de tempo firme era cada vez maior. A cidade parecia de ponta-cabeça. Um clima do tipo que só acontece em grandes comoções nacionais dominava a todos na rua. Pessoas andando de cabeça baixa. Pouca conversa. Nenhum riso. Era hora de voltar pra casa. A mãe de Elisa já tinha se informado: houve deslizamentos bem próximos de casa. Mas o terreno não chegou a ser interditado pela Defesa Civil. O dia cinza-azul e triste preparava ainda mais um golpe para Elisa e sua família. Acomodaram o avô assim que chegaram em casa. A mãe achou por bem dar um calmante que botasse o velho para dormir. Assim, acompanhada apenas da mãe, Elisa sentiu uma pancada no cérebro, que parecia vir de cento e cinquenta, talvez duzentos anos atrás. A visão de cerca de um terço dos barrancos do cemitério caídos, com pedaços de caixões, entulhos de campas, túmulos destruídos e pequenos pontos claros à mostra no meio da lama que ela sabia (antes mesmo de ver) serem ossos era algo tão perturbador quanto paralisante. A casa ter ficado quase pendurada pela queda de uma barreira (ainda assim a Defesa Civil não condenou) próxima ao muro era algo que ficava em segundo plano em sua mente agora. Tudo se resumia em pensar que caso tivesse a casa mergulhado naquele tobogã de lama, agora toda sua história se resumiria a estar misturada com aquele cenário de mortos sendo retirados debaixo da terra à força. Nada parecido com as histórias de zumbis, de mortos-vivos que se levantavam por impulso próprio. Ali, naquele momento funesto, Elisa se preocupava com o fato de que os mortos foram forçados pra fora da terra, suas intimidades podres e descarnadas expostas ao tempo. Nada bom podia vir de um acontecimento tão horrível. Abraçou a mãe e chorou, enquanto ouvia um “Graças a Deus que a casa não caiu”.

Parte 3 (Conslusão)

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Odemilson Louzada Junior
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Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.