O canto do cemitério (Parte 1)

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil
Published in
8 min readMay 15, 2017

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Elisa se sentia cada vez mais triste por morar tão perto do cemitério. Certo é que não se tratava de uma tristeza contundente. O que sentia era semelhante a uma mágoa, lenta e cuidadosamente negociada com o tempo. Vivera a vida toda ali, era lugar de sua família pelo menos desde os tempos da infância de seu avô, e amava a própria casa (e todos os momentos tão felizes que vivera ali) com a mesma profundidade com que se ama um familiar muito querido. Ainda assim, à medida que foi crescendo, um desgosto oleoso crescia junto, escorrendo bem devagar pra fora de sua alma. Desgosto esse que jamais se apresentara como um sentimento intempestivo, algo que a fizesse querer fugir ou se revoltar. Era como uma verruga que surgisse em algum lugar pouco importante. Causava certo incômodo, à medida que crescia lentamente junto com o corpo de sua dona, mas como estivera ali por tanto tempo, residia no limiar entre o incômodo e o costume.

Elisa cresceu ali naquele lugar, e junto com ela cresceu a tristeza que lhe trazia aquela proximidade com a terra dos mortos. Teve uma infância feliz e tentava se lembrar se o incômodo com o terreno vizinho já vinha de experiências infantis, mas não. Vasculhava alguma lembrança desagradável, mas percebia que a consciência do que significava um cemitério crescera junto com ela. Só tinha começado a perceber algum incômodo na adolescência, e daí pra frente. Hoje se incomodava, por mais que gostasse de sua casa, do quintal com a laranjeira simpática e pequena que acariciava com uma cheirosa delicadeza a lateral da casa, árvore tão antiga e que lhe era tão familiar quanto um parente próximo. Incomodava-se, por mais que dois dos quatro lados do terreno no alto da colina dessem vista para uma área fartamente arborizada do bairro, permitindo além de tanto verde, a visão de algumas das casas mais bonitas da vizinhança. Incomodava-se, por mais que sua própria casa não fosse nem de longe uma casa feia, mesmo sendo antiga como era. Ainda assim era impossível para ela esquecer que os outros dois quartos do terreno se abriam pro abismo escavado na encosta da montanha que era o terreno do cemitério da cidade. Tecnicamente, a terra dos mortos acabava (ou começava, dependendo da maneira a se pensar o assunto) exatamente no barranco muro abaixo do fundo e da lateral esquerda — para quem saía de casa — de seu quintal. Por alguma razão que desconhecia, não era permitido construir nada ali que impedisse a visão daquilo que se parecia com uma enorme maquete de uma cidade de mortos construída nos restos mortais de algo que antes fora uma pedreira. Já tinha sonhado com um muro tão alto que tornasse impossível ver aquele cenário tão desgostoso. Lembrava-se que em algum momento ouvira alguém de sua família — Teria sido o pai?O Avô? Algum tio ou tia? — comentar algo sobre isso ser de alguma forma, proibido. Era só o muro velho (e relativamente baixo) do cemitério que ficava ali na parte inferior do barranco, e pronto.

Elisa se sentia também desconfortável com o quarteirão eclesiástico. Não tanto quanto se sentia sendo vizinha do cemitério, mas ainda assim, incomodada também. O quarteirão era a área que ficava logo abaixo do cemitério, bem mais lá embaixo, após a cidade dos mortos, mas ainda assim perfeitamente visível do seu quintal. Não conseguia explicar claramente a razão. Sempre, sempre havia se sentido mal em qualquer ambiente “de igreja”. Sentia-se mais incomodada em hospitais da igreja do que em hospitais que não fossem da igreja. Nunca tinha procurado entender muito essa aversão discreta, controlada desde sempre, afinal, fora criada no catolicismo. Deixou de ser praticante aos quinze, mas ainda assim sentia certa estranheza por não saber a razão de se inquietar tanto. A estranheza era até mais forte do que pela própria aversão. Sentia essa aversão ao cheiro de velas, às imagens sacras, à forma como eram representados “os Jesuses” e as Marias, os santos em geral. Contudo, era uma aversão fácil de evitar. Sempre que se afastava de “coisas de igreja” era suficiente para sua sensibilidade levá-la para outro estado mental, mais confortável que o anterior. E essa aversão era mais antiga e presente que o incômodo do cemitério. Lembrava-se dela desde a infância, pelo menos.

Elisa vivia em uma cidade que tinha esse estranho costume de chamar certas áreas de “quarteirão isso” ou “quarteirão aquilo”. Não entendia muito bem essa coisa de usar um nome tão certinho pra designar áreas que com freqüência eram muito mais irregulares que o limite de quatro ruas sugerido por um termo tão específico. Mas assim era, e assim ocorria com sua casa, que para ela se parecia com o último posto de uma fronteira entre um bairro tão belo e de que tanto gostava e o início do quarteirão eclesiástico da cidade, cemitério incluso. Sua casa era a última antes do topo da colina. Uma dezena (se tanto) de metros rua acima, a calçada que passava à frente de sua casa ladeando o muro baixo de um dos limites do cemitério terminava no muro de um dos terrenos da igreja, adjacente ao do cemitério. Era um muro velho e sólido, a superfície escuro-esverdeada por décadas e décadas de limo, umidade e proximidade com as árvores. Tinha uma aparência respeitável e quase solene, ao invés de estragado ou somente velho. Nele, um portal demarcado com pedras nas laterais e sem portão algum, dava acesso sempre irrestrito a um caminho pedregoso que permitia que se descesse serpenteando aquela encosta da colina, por meio do mato, e se chegasse até a base da colina, na rua que ficava nos fundos da Igreja dos Santos Apóstolos. Muitas pessoas desciam por ali para economizar a volta na colina. Muitos achavam um passeio agradável. Principalmente no verão, para quem estivesse a pé, era muito melhor descer pelo meio das árvores, em ambiente sombreado e fresco, ouvindo pássaros cantando. Elisa preferia não. Já tinha passado por ali diversas vezes, claro. Na maioria das vezes para economizar tempo e chegar até o bairro lá embaixo mais rápido. Era até divertido descer correndo pelo caminho, admitia. Mas até mesmo a floresta ali tinha certo cheiro de igreja pra ela. Ela já tinha passeado por vários lugares semelhantes, mas em nenhum outro passeio em qualquer lugar próximo ao meio-ambiente em que estivera sentia esse cheiro de vela queimada, de cipreste em arranjo de flores, de papel velho sacristia, de material litúrgico guardado. Toda uma variedade de sensações que associava à igreja. Era como uma marca que dizia que ali poderia ser um bosque, uma mata, mas ainda assim pertencia à diocese. Tanto era que só escolhia passar por ali quando era realmente necessário.

Elisa conhecia bem a maioria dos prédios do quarteirão. Além da Igreja dos Santos Apóstolos (onde foi batizada, fez primeira comunhão, crisma, blá, blá, blá) e do próprio cemitério, também tinha o prédio da Editora da Diocese (que antes de editora tinha sido um seminário, contam). Mais ao lado, perto da saída inferior da trilha da descida da colina ficavam a Escola Santa Lúcia e o Teatro São Genésio. No outro lado da Rua Monte Castelo (antiga Frei Giovanni) o prédio cinza e imponente da Faculdade Escola Santa Brígida (que antes de escola de enfermagem tinha sido um convento, contam) e as casas funerárias próximas à Praça dos Expedicionários, defronte à entrada inferior do cemitério. Em torno de todas essas construções religiosas mais antigas, foi crescendo um bairro com um comércio de rua bastante movimentado. À medida que as décadas passavam e a cidade ia sendo ocupada, as instituições religiosas deixaram de ser a característica principal do local. A natureza exuberante atraía quem desejasse construir belas casas por ali, e o recorte acidentado do entorno permitia que várias casas de bom gosto arquitetônico começassem a embelezar o local até então pouco movimentado. Quando o seminário (onde hoje funciona a editora) se mudou dali para outra região da cidade, aparentemente uma era se encerrava para que começasse outra. De início uma vizinhança puramente dedicada às atividades pastorais, o bairro mudou e começou a se definir como uma vizinhança mais comum. Embora a proximidade com a igreja impedisse que festas ou eventos de rua (como saídas de blocos de carnaval e comemorações de vitórias em jogos na Copa do Mundo, por exemplo) ocorressem por ali. Havia uma espécie de acordo tácito de respeito mútuo entre população e igreja que fazia parecer tão claro que aquele pedaço da cidade não era próprio para bagunças e balbúrdias. O acordo era tão presente (embora misterioso) que se tornava desnecessário mencionar. Mesmo nas épocas mais festivas, as concentrações e eventos eram feitos em outros pontos da cidade, ainda que próximos geograficamente, a ponto dos foliões e torcedores que residiam na área irem até às concentrações de jogos e blocos de carnaval a pé e depois voltarem, diminuindo o barulho à medida que retornavam àquele pequeno pedaço de terra demarcado apenas pelo conhecimento. Mesmo nesses períodos, o quarteirão eclesiástico conservava um silêncio característico, para algumas pessoas, muito agradável e apropriado. Entretanto, há cerca de dois séculos atrás, quando não existia ainda a Rua Monte Castelo, e antes mesmo dela se chamar Rua Frei Giovanni, tudo que cruzava aquele pedaço de chão era uma estrada de terra batida. Era um tempo em que o mesmo silêncio era considerado por muitos, sombrio. Ainda assim, devido à autoridade muito maior que a igreja tinha sobre o povo na época, esse assunto era cuidadosamente evitado para não ofender os padres. As poucas habitações que existiam por ali eram em sua maioria morada de gente que servia como funcionários da igreja, da escola, do cemitério ou dos próprios comércios em torno. Um armazém de secos e molhados aqui, um carroceiro ali, uma loja de tecidos e aviamentos, uma pensão que além de alojamentos também servia refeições, outra que oferecia quartos apenas. A pequena estrada ligava a parte central da cidade à outra estrada que levava para dois de seus três distritos. Movimento havia sempre, gente indo e voltando todo o tempo, sempre de passagem, comerciando ou em viagem. Só que por mais forasteiro que alguém fosse, naquele trecho o silêncio e a tranqüilidade eram percebidos. Os padres e as freiras circulavam pelas ruas, mas não eram vistos com tanta freqüência quanto seria de se esperar em um local com vários prédios de propriedade da igreja. Os noviços do seminário eram vistos em pequenos grupos de dois ou três, os padres velhos bem mais raramente. As freiras andavam em duplas, com seus hábitos característicos e eram mais fáceis de ver na escola ou nos arredores do teatro do que no próprio convento. Durante muitos e muitos anos essa rotina pouco se alterou, enquanto o mundo crescia. A cidade aumentava, o bairro mudava, ganhava mais casas e comércios. Como tudo isso crescia, porque a quantidade de mortos e o cemitério também não haveriam de crescer? Dois séculos são dois séculos.

Parte 2

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Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.