O canto do cemitério (Parte 3)
Conclusão
Link para a Parte 1 | Link para a Parte 2
Elisa não se lembrava de vez alguma em que tivesse se sentido tão mal em um dia tão bonito. O céu de um azul especialmente forte, as nuvens lindamente brancas e o som das cigarras à distância debochavam dela e de seu mal-estar. A natureza parecia rir da sua incapacidade em apreciar um cenário que em outras circunstâncias seria fonte de imenso contentamento. A sensação era a de perder um parente ou outro alguém importante em um dia muito lindo. Nenhuma beleza fazia sentido. Ao menos não enquanto aquele cheiro empesteasse o ar. A casa recendia a purificador em spray, mas a incapacidade do produto em afastar o miasma de morte tornava a tentativa patética, ainda que nada houvesse a ser feito de diferente. As moscas invadiram o bairro naquela tarde. No ápice do sol, no meio dia da cidade, enquanto os noticiários de todo o país passavam reportagens carregadas de drama e sensacionalismo a respeito da tragédia, Elisa conseguia apenas sentir um profundo nojo. Nojo das moscas, aversão por aquele canto do bairro, repugnância pelo cemitério, uma ojeriza irracional e mais forte do que qualquer coisa que já tinha sentido pelo quarteirão lá embaixo, depois do cemitério. Pela manhã, tinha se esforçado pra sair da cama, depois daquela noite cheia de pesadelos após terem voltado pra casa ela, sua mãe e seu pobre e debilitado avô.
Elisa obrigou-se a pensar em quantas pessoas haviam morrido (as vítimas ainda eram contadas à medida em que iam sendo encontradas) em quantos tinham perdido amigos e familiares. Também forçou a mente a lembrar do fato de que ainda tinha a mãe e o avô, depois de terem estado tão perto de perder tudo. Perto como coisa de uns dez, quinze metros talvez. Enquanto tentava fazer esses pensamentos prevalecerem, olhava pelo vidro da janela e via moscas gordas e pesadas, como pequenos frangos de padaria pretos de queimados. Às vezes, uma delas batia no vidro da janela produzindo um sonzinho baixo mas muito desagradável. Algumas vezes ouvia um helicóptero voando baixo. Outras vezes era uma sirene à distância. O clima na cidade era muito pouco diferente de como ela se sentia por dentro. Parecia não terem sido somente os mortos do cemitério que foram indignamente forçados pra fora da terra pela força do temporal. A cidade estava com toda a tristeza à mostra também. Centenas de anos de tristezas enterradas, tragédias pessoais e desgraças estavam quietas, sepultadas na memória. Ficavam cobertas com a terra da vida comum, das alegrias, das festas, do trabalho e da rotina de uma cidade mediana. As muitas horas de uma chuva incessante, agressiva, produzida em nuvens severas como o semblante de uma velha madre superiora bastaram para expor ao mundo todos aqueles restos de sofrimentos que as pessoas enterraram. E depois disso, veio o sol forte para secar a lama e a macabra evaporação que subiu envolvendo tudo no fedor da morte. E as moscas festejaram como nunca antes.
Elisa acompanhava com profunda tristeza as notícias de que muitos corpos (dos recentes, não os que os desabamentos fizeram brotar no cemitério) foram encontrados em Vista da Ponte, o bairro de sua amiga Laurinha. Uma enxurrada, barreiras, deslizamentos de pedras, casas inteiras destruídas e pessoas arrastadas para o rio. Corpos ainda seriam vistos boiando dois, três dias depois, a quilômetros de distância corrente abaixo. Pedaços de pessoas encalhados nas beiradas de rio. Uma tristeza inominável e paralisante, cheia de piedade, ainda que incapaz de fazer Elisa sequer ligar para alguém, fosse dando ou procurando notícias. Ainda assim, na situação em que a cidade se encontrava, tal estado de abatimento do espírito parecia completamente normal. Algo esperado, até. Assim foi até o dia seguinte — o dia que seria lembrado no futuro como “o dia em que o Presidente da República sobrevoou o cenário da tragédia” –, que Elisa teria alguma notícia de Laurinha. A amiga estava abatida, uma prima próxima, criada junto com ela, praticamente uma irmã, havia perdido a casa que ficava mais lá em cima no Morro da Pipa, onde caíram várias casas. O bairro de Vista da Ponte quase se acabou, os ônibus só subiam até o meio do caminho até o ponto final e as equipes de resgate seguiam encontrando mortos sob a lama em vários pontos do bairro. E agora moravam duas famílias na casa já apertada dos pais de Laurinha. A prima saíra da casa com a roupa do corpo, com medo da terra que tremeu. Marido da prima, a prima e as três crianças chorando na chuva. Desceram o morro desesperados, com as escadas de barro escorregando como sabão e chegaram na rua principal a tempo de ver (na verdade, mais ouvir do que ver naquela chuvarada) uma pedra enorme e quase redonda de tão regular simplesmente se soltar do morro lá em cima, e descer livre, rolando, derrubando casas pelo caminho e passar por cima da rua pra cair dentro do rio. O barulho eles nunca vão esquecer. A prima contou que nem em filme já tinha visto cena assim. Se alguém contasse ela não acreditava. E no dia em que a chuva parou, o marido da prima esteve lá pra ver se encontrava alguma coisa, um objeto, um documento, um brinquedo das crianças. Só encontrou a pedra sentada como uma rainha no outro lado do rio, como se tivesse nascido ali. Olhou pra montanha de lama, entulho e destruição. Viu os bombeiros tirando mais um corpo da lama e chorou como uma criança, do mesmo jeito que os filhos choraram no dia em que perderam a casa.
Elisa só dormia à custa de remédios. Um pouco menos triste ao saber que a colega e melhor amiga estava bem, sem nenhum familiar perdido para a tragédia. Ainda assim, se sentia preocupada o suficiente com sua casa pendurada na beira do cemitério remexido. Também se sentia preocupada com a mãe, que envelhecera dez anos em poucos dias. E por mais que fosse esperado, o avô parecia alheio a tudo, recolhido ao quarto quase o tempo todo. O tipo de coisa que partia seu coração. E mesmo sob o efeito do remédio que lhe dava um período de sono duro, reto e vazio, nessa mesma noite Elisa sonhou. Sonhou com vontade. Aquele tipo de sonho claro e detalhado como um filme. Nele, ela subia o restinho da rua, atravessava o portal no muro, conseguia ver numa noite de lua muito clara todo o quarteirão lá embaixo. Descia calmamente pela trilha, queria chegar até a escola lá embaixo, chegar ao comércio do bairro. No sonho, a rua lá embaixo estava muito iluminada, com guirlandas de luzes como as de natal esticadas em ziguezague entre as laterais da rua. Barraquinhas como as de festa junina nas calçadas, e o povo passeando alegre pelo meio da rua. Ela queria estar lá. Podia sentir no rosto cá de cima o calor daquela luz e alegria. Descia a trilha, que diferente da realidade que lembrava, não lhe parecia incômodo, e caminhava com calma. Percebeu-se bem vestida, com um vestido de filme, um vestido clássico, antigo mesmo, bordados e tudo mais. Embora achasse estranho, sentiu também um rubor no rosto, uma ponta de excitação por sentir-se tão diferente. Entregava-se cada vez mais ao sonho e desceu o caminho com cuidado. Nas beiradas do caminho, ao invés dos corpos da recente tragédia do cemitério, podia ver aqui e ali algo bem diferente. Na luz da lua coada por entre as árvores, muitas crianças bem pequenas, bebês na verdade. Uns já dando pequenos passos, outros ainda de gatinhas pelo chão de folhas delicadas e secas. Pareceriam pequenos anjos, não lhes faltassem asas. Arranjos de flores enfeitavam suas cabecinhas. E ela encantava-se tanto com uma visão tão bela e estranha, naquela luz misturada de lua com a atmosfera iluminada pela festa lá embaixo, que o mero pensamento de quem poderiam ser aqueles pequeninos (e o que faziam ali) lhe parecia inconveniente. No fim do caminho, ainda com a impressão das crianças na trilha, sentia o rubor do rosto aumentar assim como a excitação. Em frente a uma das barraquinhas estava um rapaz mais ou menos de sua idade, vestido com roupas também de antigamente. Elegante, de terno e um chapéu que o fazia parecer mais velho que realmente era. Quando seus olhos se encontraram, o rubor quase explodiu em sua face e sem trocarem uma palavra, milhões de explicações foram dadas. Começaram a andar de braços dados, em direção oposta à festa. Uma carruagem simples esperava em um ponto mais afastado e menos movimentado da rua. E o sonho mudou de repente. Foi como se acordasse, com aquela magia se dissipando. Mas ao invés de acordar para o mundo real, “acordou” para outro sonho.
Elisa se viu em um quarto muito escuro, úmido e com cheiro de mofo. Iluminado apenas pelo que parecia ser a luz precária de uma vela. Suava aos borbotões. Uma freira velha e com a expressão terrivelmente ausente passava um pano áspero em sua testa. Outra freira, também velha, mas não tanto quanto a primeira, apareceu à porta. Um mal estar indizível fazia com que suas entranhas se remexessem. Ambas as freiras trocavam sussuros mas Elisa não conseguia prestar atenção a nada mais além de suas dores. O olhar se acostumou à luz parca e viu-se sentada à beira de uma cama, um colchão de palha dura espetava suas pernas. Cada freira segurava em um lado por sob seus braços e ela pôde vê-las posicionando uma bacia grande à beira da cama. Um tapa estalou em seu rosto, quase sem ser sentido, alheia que estava. A freira mais velha a posicionou bem á beira da cama, e foi só quando sentiu a palha do colchão irregular espetando suas nádegas que percebeu que estava nua da cintura pra baixo. Olhou o próprio púbis e, naquele alheamento mental, passou por cima do mal-estar monumental e estranhou a quantidade tão grande de pentelhos, como nunca tinha visto. A próxima sensação foi uma mistura de dor, de ódio, de desespero e medo. Fisicamente, a dor nem foi tão forte, mas o sentimento era como se alguém lhe arrancasse um braço ou uma perna. Envolvia perda, envolvia a consciência de algo irrecuperável. Outro tapa. A freira mais velha lhe enfiou um funil pela boca, um líquido grosso e meio azedo, meio amargo desceu-lhe pela garganta. Teve ânsias de vômito mas a freira menos velha segurou seu pescoço com uma força inimaginável. Parecia que até mesmo o vômito sentia medo dela a ponto de recusar a se manifestar ali. Na bacia, Elisa demorou alguns segundos para entender que havia um feto naquela pocinha de sangue. O que iria ser um bebê (como os do outro sonho) estava reduzido a uma pequena bolha de carne coberta de sangue. A freira mais velha esmagou a pequena cabeça do feto com uma pedra. Depois que largou a pedra, Elisa viu pelo formato retangular que era um meio-tijolo. Naquele momento, nada mais importava. Seu corpo antes tenso, mergulhou numa apatia de morte. Um mar pegajoso, de um negrume fétido e infinito. As freiras a esticaram na cama, saíram com a bacia e o tijolo em passo acelerado. A porta se trancou. Elisa queria morrer. Não tinha mais Deus. Não tinha mais nada. Apenas um vazio irremediável.
Elisa acordou. Dessa vez de verdade, em sua casa. Era madrugada, perto do amanhecer. Pela cor que vinha da janela imaginou cinco e pouca da manhã. Correu para o banheiro, tomada por um mal-estar. Vomitou convulsivamente, embora tivesse praticamente só líquido no estômago. Não tinha jantado na noite anterior, e antes disso comera muito pouco durante o dia também. Ainda assim, vomitou por um longo tempo, cada contração do estômago acabava por declarar que o serviço não estava completo e pedia outra. Apenas depois de expelir um fel amargo de dentro de si, puro suco gástrico, que lhe deixou um gosto horroroso na boca, Elisa levantou da frente do vaso. Passou o dia até um pouco melhor, embora a vida na cidade tivesse ainda por um tempo uma certa dificuldade perfeitamente justificável em se aproximar de alguma normalidade. Tentou esquecer o sonho, lembrava de alguma coisa, mas fez um esforço enorme para não pensar naquilo. Pelo menos até a próxima ligação de Laurinha.
Elisa atendeu o telefonema da amiga, dois dias depois da manhã em que acordou do sonho estranho. Laurinha tinha uma história curiosíssima (segundo a própria) para contar. Laurinha contava que seu pai, pedreiro experiente que era, foi chamado para fazer um serviço no Santa Brígida. Um pouco de terra tinha desabado do barranco nos fundos da escola, danificando uma parede. Os pedreiros precisariam derrubar aquela parede, e quando toda a terra da barreira fosse retirada, reconstruir. Só que ao derrubarem a parede, seu Sebastião e seu ajudante viram uma cena da qual jamais se esqueceriam. A parede era parte da construção original, de quando a escola ainda era um convento. Tinha estado intacta pelo menos desde o século XIX. Após a derrubada difícil da parede, feita por uma camada dupla de tijolos maciços, a luz de fora iluminou um quarto onde se viam centenas de pequenos ossinhos. À primeira vista pareciam ratos mortos ou algo do tipo, mas logo que se acostumava com a luz e se via em mais detalhes, era fácil reconhecer pelos pequenos crânios sem dentes que se tratavam de ossadas de bebês. Os pedreiros ficaram consternados, impactados pelo macabro da cena. O reitor da Escola foi chamado, e ficou tão assustado quanto. Em uma conversa com um dos seus subalternos, o pai de Laurinha pôde ouvir de soslaio o reitor comentar que sequer sabia da existência daquele cômodo, que conhecia de cabo a rabo a planta do prédio e que aquele horror não constava nela.
Elisa começou a se sentir tonta, olhou em volta na sala e tudo começou a ficar mais brilhante, mais brilhante, com bordas mais definidas, embranquecendo, até que perdeu os sentidos. Sua mãe a encontrou caída no chão da sala. Correria. Ambulância, hospital. Elisa ficou sem sentidos, desacordada, em um estado semelhante ao coma, por exatos seis dias. Ela acordou no sexto dia, depois que uma notícia devidamente abafada não foi publicada no jornal, mas chegou ao conhecimento de apenas meia dúzia de pessoas. No meio das ossadas de bebês descobertas no Santa Brígida, encontraram uma ossada de um adulto. A perícia constatou em análise preliminar que se tratava dos restos mortais de uma mulher jovem, na casa dos vinte e poucos anos, morta quase duzentos anos antes.
Elisa voltou à vida normal. Não trouxe seqüelas dos seis dias de coma. Sete meses depois daquela tragédia na cidade, seu avô faleceu pacificamente, durante o sono. Ela e sua mãe se mudaram daquela casa, era algo que não precisava ser dito que viver ali sem a presença do avô e do pai não fazia sentido para nenhuma das duas. Ambas sentiram-se libertas de um peso ao abandonar aquele lugar, embora a saudade do avô e as boas lembranças sempre fizessem parte de sua história. Às vezes sentia saudade da paisagem, outras vezes da àrvore ao lado de sua janela. Mas desde que se mudara dali, na verdade antes, desde que voltara do hospital, ela nunca mais sentiu nada semelhante ao mal-estar que marcou aquele período. A bem da verdade ela ainda sente uma parcela dele, como uma pequena pontada dolorida na alma, quando mesmo morando em outro bairro, porventura precisa passar pelo Quarteirão Eclesiástico. Especificamente pela Santa Brígida.