Eri6ck Lota
Medium Brasil
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10 min readFeb 24, 2018

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O Dono do Morro.

Sardinha nunca foi um cara muito agradável. Quando subiu na carreira do tráfico e virou dono do morro todo o movimento fechou a cara, mas, todos tinham que aturar, parente de um dos cabeças da facção, saiu lá do cu do Rio para cá, diziam que o cara saiu de um morro da baixada, mas parecia mesmo que tinha fugido do inferno de tão desagradável que era. De gerente em um ano sentou no trono de dono e de lá não quis mais sair.

Sim, havia um trono.

Sardinha era um “chefe” excêntrico. Muito excêntrico, mas não era burro. Sabia do que gostava, do que queria, sabia das dificuldades e que tudo era meio absurdo, mas mesmo assim o filho da puta pouco ligava, queria ver o povo se fudendo para saciar os desejos dele, parecia que fazia de sacanagem.

La no pé do morro tinha o senhor Gustavo, moleque bacana, veio do Ceara ainda novo e não teve muito estudo, trabalhou aqui, ali, obra, restaurante, tudo o que desse, menos parada errada, nunca quis se meter com drogas muito menos com o tráfico. Trabalhou anos e anos em uma churrascaria enorme lá da Barra, por 10 anos e do nada resolveram despedir o homem, com tudo o que ganhou pela demissão montou uma padariazinha no pé do morro e do nada se tornou um meio que faz tudo da favela, qualquer coisa o Gustavo arrumava, comida, utensílios, aparelhos eletrônicos. Na época da churrascaria fez várias conexões, era muito adorado por muitos clientes da casa e assim conseguia muitas coisas barato, a churrascaria era frequentada apenas pelo auto escalão das empresas do Rio de Janeiro, assim, acabava abastecendo a favela com praticamente qualquer coisa, tudo dentro da lei, com nota fiscal, bonitinho, era um homem correto.

- Quero um trono bem ali em cima daquela pedra. Falou Sardinha para o bonde assim que pôs o pé no alto do morro, todos se entreolharam, a maioria ali não fazia a menor ideia do que era a porra de um trono. — Os reis, bando de jumento, os reis sentam onde pra governar seu reino? Essa porra aqui é meu reino agora, vai lá em baixo e manda aquele paraíba lá arrumar, todo mundo fala que ele arruma tudo, ele sabe o que é.

Um sol de quarenta graus e lá vai o bonde descendo o morro atrás do homem, cinco caras armados, chegaram na padaria, Gustavo atendia um casal comprando o pãozinho da tarde.

- Trono?? Oxe… respondeu cocando a barba enquanto o casal saia de fininho assustado. — Ricardin eu não sei não, essas coisas são caras.

- Porra Para, o chefe ta maluco, aqui pra nois parceiro, ninguém gosta do cara e ele já chega assim, vai dar ruim isso. Mas, dá pra arrumar?

- Vou ver, te digo mais tarde.

- Valeu. E o bonde subiu o morro de volta.

Gustavo tinha amizade com tudo quanto é tipo de gente, desde o movimento até a galera das igrejas, mas a maioria da galera que carregava fuzil, conhecia desde pequeno, alguns amigos íntimos, todos chamavam carinhosamente Gustavo de Pará.

No começo da noite o telefone de Ricardin tocou, Pará dizendo que conseguiu o tal do trono, Sardinha sorria.

O bonde demorou quase 2 horas para subir com o trono, feito de madeira maciça, de uma peça única, reprodução da idade média inglesa, todos olharam com cara feia, colocaram no local escolhido pelo dono, o ódio só crescia em todos os envolvidos. Na semana seguinte operação, a polícia sobe o morro, encontra o esconderijo e acaba com a maioria das bocas de fumo daquela semana. Como o trono era muito pesado para levar dali o objeto inusitado acaba virando noticia, quase que virando chacota entre a bandidagem no Rio de Janeiro inteiro.

“Chefe do morro do ********* ostentava trono no alto do morro”. Mas Sardinha queria mais, ria de se acabar quando chegava notícia que alguma facção rival ameaça invadir para passar o bandido cheio de pose, cheio de marra, que se achava. Porem a favela sempre foi fortemente armada, bem defendida e a que mais dava lucro para a facção, uma invasão não aconteceria assim de uma hora para a outra.

Algum tempo Ricardin desceu sozinho até a padaria do Pará, puto e cansado.

- O chefe agora pediu uma vaca, uma vaca que dê leite. Os olhos de Pará esbugalharam.

- Que isso macho? O Sardinha tá doido? Pra que diabos ele quer isso?

- Ele disse que tá cansado de beber leite de fábrica, quer leite de verdade, de vaca, tirado na hora. Ricardin tirava o boné, cocava a cabeça suada e colocava de novo com cara de quem não estava feliz. — Para, tô pensando até em sair dessa vida.

- Seria bom mesmo… respondeu o amigo. — A vaca dá até pra arrumar, mas onde vocês vai deixar a bicha? Sem contar que alguém tem que saber tirar leite da bicha.

- Isso é pica do patrão e ele que resolva.

No dia seguinte a vaca tinha um quarto só dela na base, com direito a agua fresca e comida de altíssima qualidade. Os moleques olhavam revoltados para aquela situação enquanto o bicho mascava infinitamente.

- Parece que esse bicho vive de boca cheia. Falou um dos moleques que logo levou um tapa na cara do chefe.

- Não fala mal da minha vaca não seu merda que te encho de bala. Gritou Sardinha ainda com a mão quente.

Todos perceberam ali que o homem estava realmente ficando louco.

Alguns dias depois o dono veio com outro pedido, queijo de cabra feito na hora. Ricardin desceu mais uma vez sozinho, ninguém do bonde queria descer, então ele desceu sozinho e muito puto. Passou mais de uma hora conversando com seu amigo, Pará sabia fazer o queijo, tinha leite de cabra a venda na padaria, levava dois dias para ficar pronto, Ricardin riu satisfeito e continuou conversando com seu amigo até o meio da madrugada, depois de tanto ouvir as reclamações sobre o chefe, teve uma ideia.

- Moleque se liga, amanhã de tarde, desce você e o seu bonde, eu vou preparar o queijo e vocês vão me ajudar!

- Mas pra que Pará, tá todo mundo puto com essas ideias do patrão, ninguém vai querer vir não.

- Faz com que venham, eu tive uma ideia e vocês vão curtir.

No começo da tarde o bonde desceu, os seis moleques que sempre andavam com o gerente Ricardin para cima e para baixo. Pará aguardava com tudo pronto na cozinha da padaria, o pessoal entrou e ele fechou a padaria.

- Vocês todos estão com raiva do Sardinha, não é? Todos confirmaram balançando a cabeça, ninguém falava uma palavra. — Ali dentro tem uma panela grande, ta cheia de leite de cabra pra fazer o queijo, vocês querem se vingar do homem? Todos assentiram com a cabeça novamente. — O que vou propor é meio tenso, mas se vê se vale a pena. Um de cada vez vai lá dentro, bate uma bronha e goza no leite, cospe e zoa a parada, eu vou fazer o queijo e ele vai comer a parada zoada e não vai nem notar.

- Caralhow Pará tu é mau. Gritou um dos moleques, o que parecia mais empolgado.

- Rapá, essa parada vai dar ruim, o chefe vai sentir e vai geral pra vala. Disse Ricardin já morrendo de medo.

- Que nada moleque. Não tem a menor possibilidade dele perceber, ele vai comer e ainda vai querer mais.

Depois de muito conversarem todos concordaram, começando assim aquela loucura. Um a um seguiram para a cozinha e depois de alguns minutos saiam, alguns zuavam outros riam, outros suavam, mas todos participaram, até Pará.

Aquele dia foi dia de silencio, até o queijo ficar pronto tudo o que vinha do bonde era silencio.

Ricardin subiu dois dias depois com uma sacola na mão com o queijo dentro, Sardinha olhava com os olhos brilhando, tirou o queijo de dentro da sacola, abriu o plástico e sentiu o cheiro, todos sentiram vontade de vomitar na mesma hora. O chefe pegou uma faca, cortou um pedaço grande e jogou na boca de uma vez só, todos se entre olharam, Ricardin já suava frio.

- Puta merda, isso tá bom pra caralho. Cortou mais um pedaço e comeu. — Ricardin, agradece o homem lá e pede mais um, vou comer essa porra todo dia agora. O bonde foi junto.

Saíram da base, desceram o primeiro beco, pararam, se entreolharam e riram por algum tempo, gargalharam tanto que os vizinhos apareceram nas janelas para ver o que diabos era aquilo.

Pará ria de bater no balcão quando o bonde chegou e deu a notícia.

- Eu falei! Bom pra caralho… literalmente. E gargalhava até a barriga doer.

Semanas após semana, Ricardin descia e pedia o mesmo queijo e a mesma cerimônia acontecia, Sardinha nunca desconfiou.

A brincadeira virou boato e se espalhou pelo Whatsapp, foi de favela em favela, de chefe em chefe, de facção em facção, a história que o dono do morro lá da Zona Sul comia queijo de porra.

Sardinha não usava celular e sempre reclamava da galera que usava na base, nas casas de endolação, achava que aquilo era distração e acreditava que atrapalhava o trabalho, era um cara de cabeça velha e fechada por isso acabou não sabendo e não entendendo por que todo mundo o olhava de canto de olho e ria pelas suas costas. Fechou as bocas de fumo mais cedo e desceu com todo o bonde, era dia de baile na favela e era aniversario de Sardinha.

No meio do povo, o batidão rolando e Sardinha louco de tesão numa morena que rebolava no meio da pista, foi chegando, a mina já era conhecida do bonde, mas não dava mole para ninguém, queria mesmo era o chefe, porem ela soube da história do queijo como todo mundo que usava celular e internet.

Sardinha se aproximou, sentiu o cheiro dela, se encostou, chegou perto, colocou o fuzil para o lado oposto e falou no ouvido da moça.

- Disseram ai que você só dá uns pega no dono?

- É sim pretinho, mas não em dono que come queijo de porra. Respondeu bem baixinho no ouvido do homem que não entendeu nada.

- Que porra? Ta doida mina, que merda é essa que tu tá falando? Dá o papo! Tomou uma distância, olhou serio para mina e jogou o fuzil para frente. De longe Ricardin viu a movimentação. Ninguém na favela respeitava mais o homem, muito menos tinham medo de morrer.

- Caralho, eu falei que ia dar merda, olha lá Sinatra, eu falei pra você não contar pra Rosangela, a doida falou pro chefe. Ricardin tremia.

- Mermão fodeu pra gente. Sinatra respondeu já correndo em direção da rua. O bonde todo fumava do lado de fora do baile, alguns já acompanhados de alguma mulher, outros não, mas por sorte todos que que estavam envolvidos no lance do queijo estavam lá.

- Coe galera, vamos meter o pé, deixa o Sardinha aí, vamos nos malocar por que o desgraçado descobriu a parada. Ricardin gritava no meio do movimento. — Tira os vapor das ruas e vamos subir.

Em menos de 5 minutos todos subiam a passos largos em direção a base do alto do morro, tempo suficiente para Rosangela falar a história toda.

- Bando de filhos da puta, vou passar geral, a começar pelo paraíba desgraçado. Fica aí que eu volto pra te pegar. A menina olhava assustada para o bandido de fuzil na mão, um bandido com ódio que deu as costas para sua festa lotada e desceu o morro em direção a padaria, Pará morava no segundo andar.

Desceu os becos a toda e nem notou que não havia ninguém do movimento na rua. Pegou a rua principal e desceu, antes de virar a esquina ouviu um grito.

- Ô Sardinha, é verdade que tu anda comendo porra?

O dono virou numa só já apontando o fuzil para a pessoa que o ofendeu, quando olhou direito se assustou e deu um pulo para trás, mas continuou de fuzil apontado. — Fala aí que parada é essa? A gente veio aqui pra entender essa porra, é verdade que tu anda comendo queijo de porra Dionísio? O homem continuou falando. O ódio aumentou mais ainda, Sardinha odiava que o chamassem de Dionísio.

- Qual foi Dario, me sacanearam rapá e eu tô indo resolver essa parada, o que tu quer no meu morro. Dario era um dos cabeças da facção e primo de Sardinha. — E não me chama pelo nome que eu odeio essa porra.

- Rapá, que moral tu tem pra dar ordem, olha só, abaixa esse fuzil senão você vai se foder, tu vacilou e vacilou feio, Dionísio seu merda. Dario estava com mais oito homens fortemente armados logo atrás dele, como o movimento não estava mais nas ruas, ninguém foi avisado, nem fogos disparados, nada.

- Caralho, Dario, mete o pé e deixa eu resolver minhas paradas! Ordenava Sardinha com lagrimas escorrendo dos seus olhos numa mistura de ódio e medo daquela situação.

- Larga esse fuzil rapá! Dario puxou sua pistola da cintura e apontou para Sardinha, a cara dele ficou vermelha de ódio na hora, não pensou duas, botou o pé esquerdo na frente e se preparou para puxar o gatilho quando Dario puxou o dele deixando um furo na testa de Sardinha que caiu sangrando no chão.

- Vacilão do caralho, Vambora desse morro. Desceu na frente, os homens atrás até uma van que esperava na estrada do morro. Pegou o celular. — Pronto chefe, o vacilão morreu.

Gustavo se assustou com o barulho dos tiros daquela noite, esperou meia hora e saiu pela porta da padaria, subiu um lance de escada e lá estava o corpo de Sardinha no chão. Sorriu, cuspiu na cara esburacada do bandido e voltou para casa. Tirou o chip do celular e quebrou logo depois de apagar o aplicativo do qual espalhara a história do dono do morro que gostava de queijo de porra. Dormiu o melhor sono de sua vida depois de ver o defunto do assassino de sua mãe estendido nas ruas da favela e nem teve de sujar as mãos.

A história que rolou no Whatsapp era que o dono do morro era doido e gostava de coisas diferentes, inclusive, pediu para todo movimento fazer esse leite especial para ele comer no café da manhã, que muito a contragosto o bonde fez. No dia seguinte o gerente passou a ser o chefe por ordem de Dario.

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Eri6ck Lota
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"Não grites, não suspires, não te mates: escreve."