Os Gays em Minha vida

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil
Published in
10 min readJul 4, 2015

--

Os anos 80

Tendo crescido nos anos 80, minhas duas primeiras referências ao mundo gay foram através do universo artístico/televisivo: Clodovil e Ney Matogrosso. Sempre achei, mesmo quando criança, Clodovil um cara extremamente sério, mesmo por baixo de sua característica afetação. Era uma impressão quase mediúnica, um feeling que às vezes a gente capta de alguém na mídia. É como se tivéssemos um vislumbre momentâneo por baixo da máscara midiática que aquela pessoa resolve usar. É claro que só fui ter condições de entender isso muitos anos mais tarde, mas ainda assim, o feeling estava lá. Outra impressão interessante e semelhante eu tinha através do Ney Matogrosso. A percepção de que ao dar entrevistas de cara limpa, fora de sua persona maquiada e enfeitada para os palcos, ele aparecia sempre como um homem muito elegante no seu modo de falar. Era outro que passava uma aura de seriedade profissional que até uma criança conseguia perceber, mesmo não entendendo isso na época.
Tendo crescido naquela década, também me lembro de quando a AIDS surgiu, de quando era chamada de “o câncer gay” e de quando deixou de ser considerada uma doença restrita ao âmbito dos homossexuais masculinos. Também lembro, à medida em que o tempo ia passando e o conhecimento sobre a doença se ampliando, de sentir na ciência e na pesquisa uma certa seriedade, uma busca por entendimento e o antagonismo entre essa seriedade científica e o sensacionalismo da mídia. Sensacionalismo esse que de maneira oportunista, tentou colar na comunidade gay um problema que se provou muito mais amplo e perigoso. Lembro de que percebi, de maneira incipiente mas definitiva, o humanismo que a ciência representou ao despersonificar as vítimas, ao simplificar o assunto em nome da impessoalidade científica: pessoas eram pessoas, e independente do sexo, da cor, religião, opção sexual de cada um, todos sofreram com aquela doença que aterrorizava o mundo naquele momento.

Jayme

Enquanto isso, a primeira pessoa gay de verdade que conheci foi o Jayme. Ele era cabeleireiro no salão que minha mãe frequentava. Na época, eu criança o via como uma grande curiosidade, um cara que na vida real falava e tinha um jeito parecido com o do Clodovil, aquele da televisão. Jayme usava um estilo de cabelo que eu não via nenhum homem usar. Usava roupas masculinas, mas com um toque de alguma coisa feminina aqui ou ali. Mas nas poucas vezes em que estive naquele ambiente frequentado por minha mãe e podia ouvir fragmentos das conversas de Jayme com as senhoras do salão, percebia que por baixo de sua afetação existia uma pessoa de opiniões muito corretas. Mais tarde na vida, eu já jovem adulto, lembro da dor e da saudade com que minha mãe e irmã mais velha lembravam de Jayme, morto por complicações devido a ser portador da AIDS. Minha mãe, uma senhora católica praticante, (bem o tipo que os movimentos e ONGs LGBT poderiam pintar como uma “odiadora de gays”) amava Jayme do fundo de seu coração. Por anos ele foi mais que um profissional que a atendia, foi um verdadeiro amigo. Jamais ouvi da boca de minha mãe uma palavra sequer que não fosse de elogio a Jayme. Segundo ela Jayme era aquele tipo de ser humano com uma alma grandiosa, aquele tipo de pessoa cujas qualidades ajudavam a apequenar os defeitos. Mais de uma vez minha mãe contou de Jayme ajudando pessoas, crianças e animais através de sua enorme rede de networking. Conhecer muita gente em uma cidade interiorana de porte médio não deixa de ser um recurso valioso para qualquer pessoa. E quando se utiliza o poder desse networking para ajudar a encontrar lares para crianças abandonadas, adoção para filhotes de animais que seriam mortos, e facilitar a aquisição de remédios caros para pessoas carentes com doenças sérias, podemos afirmar que é um bom uso. Excelente até. Minha mãe entendia que a uma pessoa que se comportava como Jayme diante de outros seres humanos (e até dos indefesos animais) jamais seria negado um abraço de Jesus Cristo caso se esbarrassem no Céu. Minha mãe tinha uma fé inabalável de que a Jesus importaria mais o bem que Jayme fez em sua vida do que com quem se deitava na cama.

Márcio

A segunda pessoa gay que conheci foi Márcio. Foi na época em que minha mãe começou a frequentar os bailes-seresta da terceira idade. Em nossa vizinhança havia uma turma de senhoras que se conheciam e passaram a ir, e tal como um grupo de adolescentes, faziam aulas de dança, trocavam pequenas fofocas do tipo “quem está ficando com quem”, “fulano é casado e vai no baile escondido”, e que tais. Era agradável ver muitas senhoras separadas, viúvas, com netos, a maioria em uma idade em que a vida já não oferecia muitas chances de diversão social, renascendo. Quando uso o termo renascer não exagero, pois o bem que a frequência nos bailes, a atividade física, e a reconquista de uma vida social tão semelhante a que se tinha na juventude realmente fez com que muita gente ali deixasse pra trás estados depressivos e enfermos, passando a ter um ganho impressionante em qualidade de vida. Vi muitas senhoras como D. Nice, mãe de um de meus melhores amigos vir de uma depressão profunda pós-morte de seu marido e pai de seus onze (onze!) filhos, simplesmente redescobrir o prazer de viver. Não só o de viver, mas outros também, ao conhecer Otacílio, outro viúvo com quem namorou, casou e passou a morar junto por mais de 20 anos. Nada mau para quem achava que a vida tinha acabado aos 50, não é mesmo? Foi nesse período que D. Alberta, uma das senhoras do grupo, conheceu Márcio. Ele era vice-presidente do sindicato cujo salão era alugado e servia de palco para um dos melhores e mais badalados bailes daquela época. Era também um exímio dançarino. As habilidades dele e de D. Alberta se complementavam, e os dois dançando pareciam (guardadas as devidas proporções) uma versão provinciana tupiniquim de um Fred Astaire e uma Ginger Rogers. Márcio era bem mais jovem que D. Alberta, devia ter uns 40 e poucos naquela época. Fazia o tipo que tinha pouca afetação na voz, e era um homem se não tanto bonito, que tinha presença. D. Alberta se encantou por ele. Paixão mesmo. E por mais que ele tentasse colocá-la na friendzone, aos poucos começou a perceber que havia uma vantagem a ser tirada da situação. Passou a ir jantar na casa de D. Alberta quase todos os dias da semana. Como o encanto que ela sentia por ele fazia com que ela aceitasse as migalhas do status de “apenas amiga”, foi tentando conquistá-lo de todas as formas, pelas beiradas. Começou com convites para ir até a casa dela jantar, que acabaram por se transformar em refeições gratuitas três ou quatro vezes por semana. Daí, evoluiu para uma época em que ele trazia suas próprias roupas para que ela, costureira exímia, fizesse pequenos reparos. No fim, ela já estava lavando roupas dele em sua máquina. Morando sozinha, com uma boa condição financeira garantida pelos filhos em boa situação financeira e uma boa herança deixada pelo falecido marido, D. Alberta tinha uma vida confortável, auxiliada pelo fato de morar sozinha, na área central da cidade, com poucas necessidades e gastos financeiros.

Foi justamente nessa época que um dos filhos de D. Alberta, o que a ajudava em questões contábeis descobriu um enorme desfalque em sua conta bancária. Foi investigar no banco e descobriu um cheque passado do talão da própria mãe, que tinha praticamente limpado a gorda conta bancária. Após acalmar a mãe e tentando traçar cuidadosamente a origem do cheque, munido da fotocópia do mesmo, ele conseguiu que D. Alberta se lembrasse que o cheque poderia ser um que ela tinha dado a Márcio para que pagasse a conta de um dos bailes em que estavam. Ela tinha pedido que ele preenchesse o cheque, e ele o fez. Pagou a conta do baile com dinheiro e só preencheu o cheque no dia seguinte, com um valor bastante alto. O cheque foi descontado e Márcio cometeu um crime contra D. Alberta. O escândalo percorreu o grupo de amigas, e resultou num processo judicial desgastante e humilhante, tanto para D. Alberta quanto para Márcio, que teve sua desonestidade e oportunismo desmascaradas numa cidade não tão grande, do tipo onde as notícias correm e a má fama de uma pessoa pode significar perdas além da financeira.

João

Num momento mais recente da minha vida, conheci João. Ele dividia apartamento com minha atual esposa, que após a separação de seu primeiro casamento, passou a morar num imóvel grande para uma pessoa. Na época, a vinda de João parecia a solução perfeita. Era companhia e divisão dos gastos, serviu como um fim a uma solidão e depressão pós fim de relacionamento para ela, e um sopro de vida nova e novas amizades. Para ele, era a oportunidade de montar, mesmo que de maneira inicialmente caseira e improvisada, seu primeiro salão de beleza.

João nasceu numa família humilde, machista e nordestina. A mãe lutou para que ao menos estudasse. Ele estudou. Não teve uma educação de grande qualidade, passou por escolas periféricas e com péssimos professores, mas estudou. O gene trabalhador da família fez com que se tomasse consciência muito cedo que naquele universo de pobreza e dificuldade, só ia pra frente quem tinha ofício, quem aprendia, quem não se acomodava. João tentou namorar com meninas. Natural pra quem foi educado como um garoto hetero, pela cultura da família foi-lhe exigida uma certa “macheza”, que mesmo depois de se descobrir gay, de certa forma permaneceu se não na sua identidade sexual, pelo menos na sua atitude um tanto grosseira, pouco refinada. Uma atitude que apesar de chocar um pouco de cara, à medida que se passava a conhecê-lo melhor, se mostrava bem humorada, suburbana, e autêntica. Quando comecei a namorar com minha esposa, o chamávamos carinhosamente de “bicho” ou “caminhoneiro”. Eu passei a admirar muito esse aspecto da pessoa João. Era um cara com tudo pra dar errado, mas que deu certo na marra, na garra. Ajudava num trailer de comida (o antepassado primitivo e bem menos glamouroso do atual Food Truck) que o pai tinha, à noite, depois da escola. De tanta intimidade com cozinha, foi sozinho atrás de cursos de culinária, formação de chefes de cozinha, tentou se especializar. Tinha um pendor artístico, gostava de desenhar. Através desse lado descobriu a maquiagem e as voltas que a vida dá acabaram fazendo com que descobrisse aí seu caminho. Tornou-se um cabeleireiro competente e um dos melhores maquiadores da cidade. A cada melhora financeira que alcançava, procurava fazer mais cursos, reinvestir, aprender novas técnicas e se especializar. Os frutos dessa especialização e competência em buscar a melhoria não tardaram. João começou um trabalho de maquiagem para noivas que alavancou sua carreira, tornando-o uma referência regional no assunto. Seu crescimento profissional, trouxe também conquistas no âmbito pessoal. Depois de muitos relacionamentos infrutíferos e alguns até frustrantes, conheceu Paulo. Apesar de muito diferentes tanto em formação quanto em estilos de personalidade, os dois iniciaram um relacionamento muito positivo, onde Paulo se envolveu na carreira profissional de João, e à medida que a relação tanto amorosa quanto profissional dos dois evoluiu, foi necessário que João e Paulo se unissem de maneira mais definitiva. Enquanto João era a força de trabalho, Paulo eram as novas ideias e os novos negócios. Foram morar juntos e na casa nova, abriram um misto de salão e espaço para noivas. Paulo trouxe um acréscimo de tino comercial e empreendedorismo mais afiado à carreira de João, que já tocava de maneira intuitiva seu negócio com energia e talento. O céu é o limite para eles.
Costumo lembrar de todas essas pessoas que passaram pela minha vida e pensar no que aprendi com cada um desses testemunhos e experiências. Essas lembranças me levam até o cerne da atualidade: nenhum dos gays que conheci se encaixava nessa nova tendência que é o uso da homossexualidade como bandeira política. As pessoas que conheci queriam ser respeitadas não por preferirem amar A ou B, mas por serem antes disso, pessoas. As pessoas que conheci tinham o mesmo potencial para serem boas quanto para serem más. Eu aprendi que existem pessoas, não gays ou heteros. E que apesar de vivermos numa sociedade onde o preconceito existe em abundância, tenho uma firme convicção de que a estimulação desse preconceito agrada bastante ao lado mais radical do espectro político que diz representar os gays. É na estimulação dessa animosidade, e não na superação dessas diferenças que esses radicais conseguem seu objetivo final, que passa longe de defender os homossexuais: desestruturar e semear o ódio entre pessoas. Há toda uma construção política que usa os homossexuais e outras minorias como se os colocasse em um pedestal, mas que por trás faz com que esse uso seja um meio, uma ferramenta para se alcançar um fim que muito pouco ou quase nada tem a ver com as ideias de igualdade que foram vendidas para as minorias. Sempre me lembro de uma vez que me perguntaram como era conviver com João, na época em que eu ainda namorava com minha esposa. Eu não soube responder de pronto, porque João era uma pessoa, como outra qualquer. Só uma pessoa, e com quem ele tinha ou deixava de ter relações sexuais era tão fora dos limites da minha opinião que me parecia absurdo sequer pensar em responder aquela pergunta. João, Márcio, Jayme, Clodovil, Ney… são todos pessoas. Com seus defeitos e qualidades, mas cuja contribuição para o universo que os cerca não deve ser medido nem pela pequena parte da vida de cada um que se resume a com quem se deitam, nem pela procuração (que não passaram) para que outros falassem em seus nomes, com interesses puramente políticos e com objetivos de poder.

Esse texto é baseado em histórias reais. Alguns nomes foram alterados por razões de privacidade.

--

--

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.