Ouvindo Gil religiosamente

esther lourenço
Medium Brasil
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5 min readFeb 12, 2020

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Há uns meses atrás descobri Gilberto Gil. A tentação de dizer “redescobri”, só porque o nome e umas músicas não me eram estranhas, é grande, mas vou ser justa e admitir que eu não sabia dele era nada, apesar de ter cantado tanto na infância o Sítio do Picapau Amarelo. Lá por Fevereiro de 2019 comecei a ouvir o Expresso 2222 frequentemente, por sugestão do Back in Bahia via link de um amigo que disse ter se lembrado de mim pela possível semelhança com a sensação de morar fora do Brasil, da gostosa dor-saudade das paisagens, dos abraços, do clichê real da falta do calor brasileiro. E assim, me embrenhei no álbum, fui passeando tímida por um ou outro álbum e me aproximando mais do universo do cantor.

Desprendendo-me aos poucos da obrigação que eu tinha construído em torno de ouvir mais músicas em alemão para praticar a língua, decidi ser feliz e ouvir mais Gilberto Gil mesmo, frequentemente refreando o impulso de dançar no meio do metrô, colorindo com o som as caras cinzas de inverno ao meu redor. Volta e meia não me segurava e dava assim um sorriso pra algum estranho no caminho, porque era um Ai meu Deus por quê tudo tão soturno? E meu ser era pura festa quando a senhorinha sorria de volta. Um quê meio Poliana, consciente de que ser feliz assim é brega.

Gil foi me despindo aos poucos humanamente de fios e fios de pudor, medo e solidão. Assim, só cantando, tocando, enquanto eu dançava (às vezes com o corpo, às vezes com a alma).

O processo no entanto foi mais vagaroso do que agora faço parecer. Volto em Julho, quando pela primeira vez, cheia de insegurança, coloquei Gilberto Gil pra tocar no quarto, num dia quente no apartamento, num daqueles dias longos de verão europeu, enquanto conversava com meu namorado (berlinense). Ele já tinha se apaixonado por Tim Maia, do Leme ao Pontal à fase Racional, passeado por entre as histórias dele que eu contava sobre roubar o frango da marmita nos EUA, sobre as letras de seus álbuns religiosos, sobre minhas memórias antes de resolver pesquisá-lo mais, que faziam de Tim Maia pra mim sinônimo de música de formatura ou casamento, quando os tios bêbados cantavam Acende o Farol e todo mundo dançava junto. (Experiência completamente pessoal, de classe média presbiteriana crescida em meio a nãos no interior de São Paulo.) Fui percebendo primeiro as reações dele enquanto a gente ouvia Luar, o corpo se mexendo curtindo a música enquanto enrolava o tabaco. Com um jeitinho meio mineiro herdado de minha mãe que volta e meia me assalta o espírito, fui sondando suas reações, colocando uma informação ou outra, até soltar despretensiosa que teria um show dele no dia seguinte.

-QUE? AMANHÃ? A gente vai. — afirmou já apaixonado por Cara cara, que depois usei como ponte para introduzi-lo ao Caetano, que escreveu a letra.

Gil saindo suave ao lado do público no final do show em Berlim (Arquivo pessoal)

Só que estava esgotado. No entanto, uma nota no evento informava que se o tempo estivesse bom, o show seria a céu aberto e abririam novas vendas de tickets, pelo espaço ser maior. O destino brincou seu papel na história e fomos ao show. Aquele dia lindo, uma lua cheia no lado esquerdo, o entardecer devagar enquanto Gil fazia sua mágica no palco, com sua alma cheirando a talco. Deslumbrada, atingindo meu ápice de amor quando tocou Se eu quiser falar com Deus, música que tanto tinha me acompanhado nos perrengues da Alemanha, que já tinha me feito chorar e sorrir; vê-lo ali ao vivo, nos seus 77 anos tocando sozinho no violão a música que meus ouvidos tanto tinham sentido em afeto, eu, que tão poucos shows tinha visto na vida, estava em êxtase. Berlim nunca esteve tão aquecida.

Admirá-lo me fez buscar mais sua trajetória pessoal, sua discografia, seu trabalho, sua política, sua existência. E quanto mais eu prestava atenção em suas letras, mais admirava o poeta. A importância que ele ia assumindo em minha vida ia sendo costurada em meu crescimento pessoal, gerando a sensação de que antes eu ouvia música como quem come um lanche do McDonalds, enquanto agora eu me concentrava em cada sabor de um banquete, com cada arranjo, cada som, cada novo instrumento a ser percebido na nova vez que ouço alguma música. Ele cria e executa com paixão, com atenção, com o olhar para si e para o mundo, com espelhos ao redor da sala, refletindo rostos e luzes, sendo refletido e criando ambientes, reproduzindo ideias.

Sua música é tão do mundo (como ele mesmo disse), tanto em estilos — passando pelo rock, punk, baião, reggae e muitos outros — quanto em temas universais essenciais, de alguma forma meio esquecidos na pressa do cotidiano. Com Gil é fácil relembrar a fé numa rima com café, se lembrar de como se faz uma oração ou cantar com bom humor o quanto as pessoas são estúpidas e hipócritas. Assim, com uma positividade vista normalmente nas crianças, mas com a clareza de alguém que vive a vida por inteiro e a honestidade de quem é tão humano quanto todos os outros, ele nos relembra valores básicos, sobriedade e esperança.

Ainda me embrenho pelas aventuras de descobrir sua discografia (anos e anos de trabalho a serem compreendidos) e histórias, pelo motivo daquele abraço, pelo sabor que o cálice com Chico Buarque teve, temas tantos que são também a história de nossa terra. Reencontro os sabores do mato no abacateiro, as mazelas e delícias do nordeste brasileiro que sempre admirei, além da exaltação à cultura negra, à história do Brasil entrelaçada em dor na escravidão, tudo com pé na realidade e com imensa classe e consciência.

E numa realidade tão pronta pra nos fazer perder a noção do que realmente importa, pra nos deprimir, nos estressar, ouvir Gil virou quase que minha religião, dando vontade de folhetar suas letras por aí, botar um terninho e sair batendo de porta em porta cantando que minha ideologia é o nascer de cada dia e minha religião é a luz na escuridão. Assim, perdoando mais, apressando menos, dando às coisas suas verdadeiras dimensões dentro do contexto da efemeridade da vida, viver vai ficando mais fácil. Viver junto também. De preferência dançando.

Vou então andando mais nas ruas, observando as luas que são mais duas (porque tem as artificiais), sendo bem mais gente, menos automática, tendo esperança de que o movimento do aumento da percepção é inevitável e diário (apesar de toda nossa história humana esquisita de ceder a inúmeras sensações mesquinhas) e vai nascendo e ganhando força com tantas iniciativas espalhadas por aí. A minha em 2019 foi através de Gil. Redescobrindo, reinventando, refazendo meu dia-a-dia. Há muito a ser descoberto, mais ainda a ser redescoberto. Estou em crescimento até o dia da minha morte; e se antes eu considerava ser maldição, vejo hoje como bênção.

Gil, esse texto-brinde vai pra você. Sou grata pela sua arte.

Sequência de referências musicais de Gilberto Gil em ordem:

Sítio do Pica-pau Amarelo

Back in Bahia

Luar

Cara cara

Palco

Andar com fé

Pelos barracos da cidade

Aquele abraço

Cálice

Refazenda

Minha ideologia, minha religião

Duas luas

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