Paixão, amor, desilusão

Raphael Carneiro
Medium Brasil
Published in
7 min readSep 16, 2016

A vida lhe fez um iludido. Iludido e otimista. Iludido, otimista e pretensioso. Iludido, otimista, pretensioso e ingênuo. Acima de tudo, ingênuo. Assim ele era. Não tinha muita perspectiva de futuro. Lá em Barreiras, onde nasceu, teve dificuldade até para chegar na escola. Andava mais de dois quilômetros para se sentar em frente a um quadro negro. “Mas se ele é verde, por que é negro?”. Ninguém lhe respondia. A vida não lhe respondia.

Cresceu em meio a olhares de reprovação e castigos. Seu pecado era querer seu bem. Seu erro foi querer ser feliz. Em uma cidade onde não conheciam o machismo, afinal, não havia comportamento diferente do modo macho de ser, a felicidade não poderia ser encontrada em outro homem. Foi reprimido, demorou para se descobrir, mas sonhou com a igualdade. Era, acima de tudo, ingênuo.

O espaço conquistado entre seus conterrâneos não diminuiu sua maior fraqueza. Tornou-se dono de um salão de beleza. Suas mãos tratavam dos cabelos de todas as mulheres da região. Da esposa do deputado à feirante. Era reconhecido, respeitado e reverenciado. Mas faltava-lhe algo. A felicidade estava em um companheiro. E ele parecia atrasado.

Ninguém dos arredores de Barreiras lhe interessava. Era exigente, não queria diversão de apenas uma noite. Precisava encontrar um companheiro para a vida, para seus sonhos, para crescer junto. Os amigos o chamavam de implicante. Qualquer defeito era motivo para interromper uma relação. Não posso unir minha vida a qualquer um, era o que dizia. O grau de exigência era alto. Mas era, acima de tudo, ingênuo.

Foi na internet que conheceu Arthur. Ele de Barreiras, Arthur de Salvador. Empatia, risos, madrugadas na internet. Promessas, ingenuidade, madrugadas na internet. Dois meses sem desgrudar do celular ou computador. Troca de mensagens frenéticas. Sexo virtual, paixão anormal. Não haviam se encontrado pessoalmente quando surgiu a proposta ousada. Larga tudo e vem morar comigo, sugeriu Arthur. Por quê não?, aceitou.

Vendeu o salão, materiais de trabalho, desalugou a casa e comprou somente a passagem de ida. Na mala, além de uma muda de roupas, levou consigo alguns instrumentos que poderiam lhes ser úteis para ganhar dinheiro. Tesoura, escova, chapinha e cremes diversos. Na carteira, R$ 1.600. Dá pra me virar nos primeiros dias.

O amor lhe tirou toda a exigência. A paixão o impediu de ver o que acontecia. Maltratado, humilhado, mas correspondido na cama. Além de apaixonado, era, acima de tudo, ingênuo. O aluguel da casa, a conta de água, luz e telefone. Tudo pago com o fruto do trabalho em um salão do bairro. Sorte ter a vizinha como dona do estabelecimento.

Não demorou para que o trabalho fosse reconhecido e procurado. Em dois meses já era o cabeleireiro mais requisitado. O dinheiro aumentou, mas sumiu em casa. O pós-sexo era um pedido de grana extra. Um presente para a mãe, a cervejinha com os amigos, remédio para a sobrinha ou o dinheiro para pagar o ônibus na procura de um emprego. Os argumentos variavam enquanto a reserva não acabava.

Dizer que estava feliz era demais, mas, ao menos, tinha alguém para satisfazer seus desejos. Rejeitava o pensamento de ter um garoto de programa fixo. Preferia acreditar que era o preço necessário para ter prazer. O encanto durou até a primeira negativa. A conta ainda mostrava pouco menos de R$ 100, mas o saldo psicológico estava no limite.

Apanhou, chorou, foi colocado para fora de casa. Só deu tempo de puxar uma camisa na beirada da cama e agarrar a mochila com alguns dos materiais de trabalho. Escorraçado, sozinho, desiludido. Em um caixa eletrônico, confirmou o resquício de R$ 60 na conta. Queria sumir. Voltar para Barreiras era o caminho, mas não seria fácil. A passagem de volta, com taxas e tudo, era R$ 142. O déficit de oitenta e dois reais precisava ser saldado. Mas como?

Não tinha a quem recorrer. Sentado entre o asfalto e a calçada do Elevador Lacerda, mantinha a mochila sobre o colo. Só tinha aquilo da vida. A roupa do corpo, a mochila, R$ 60 e seus instrumentos de trabalho. Isso! Os instrumentos de trabalho. Posso vender eles por aí e conseguir o dinheiro da passagem ainda hoje. A ideia surgiu como num raio. Em um instante achou a solução, mas relutou em aceitar. Seria renegar o que lhe dava o sustento, só que não havia outro meio.

Tinha que fazer dinheiro, mas de barriga vazia não dava. Entrou em um dilema. Gastar o pouco que tinha e complicar ainda mais a volta para casa ou arriscar a caridade alheia? Em três restaurantes recebeu o não como resposta. Foi na Ladeira da Montanha que encontrou abrigo. Mas havia uma condição. Para ter a fome saciada teria que satisfazer os desejos da dona da casa.

Experiência sexual com mulheres era algo inédito em sua vida. A fome faz coisas que a mente sã duvida. Sem jeito, venceu o nojo, a vergonha e seus preconceitos. Enquanto percorria caminhos desconhecidos, mantinha no pensamento o prato de feijão que já estava em cima da mesa. Só por ele poderia fazer aquilo. A sua benfeitora, se é que pode ser chamada assim, não tinha menos que 60 anos. Banguela, cabelos ralos, pelancas sobrepostas aos músculos. Não dava para tentar se deixar levar pela beleza.

Dificuldade vencida, barriga cheia, hora de mais um sacrifício. Precisava encontrar um lugar para vender os pertences. Retornou à frente do Elevador Lacerda e, no ponto de ônibus, pensou em como fazer. Viu que pedintes e ambulantes tinham a permissão dos motoristas para entrar sem pagar nos coletivos. Esse era o caminho.

Com a timidez e a falta de jeito de quem não é da área, tentou no primeiro ônibus que parou no ponto. Perdeu a disputa para um vendedor de picolé. No segundo, estava sozinho, mas o motorista o ignorou. No terceiro, o vendedor de água foi mais rápido e subiu na frente. Foi somente na quarta tentativa que conseguiu chegar à passarela de vendas. Ao lado do cobrador, encostado na roleta do ônibus, respirou fundo, cumprimentou o profissional com um boa tarde e mirou seus possíveis clientes. Senhoras, idosos, jovens, adultos. O ônibus estava cheio, não lotado, mas cheio. Diversas tribos, diversas personalidades. Gaguejou, chorou, ofereceu a chapinha e a escova. Ninguém o olhou. Desceu no ponto seguinte sem dinheiro e sem coragem. O fracasso na primeira tentativa diminuiu o ânimo. Não vou conseguir, pensou. Queria ter o dinheiro na mão antes das 20h para dar tempo de comprar a passagem e embarcar às 21h. Caso contrário, teria que dormir na rua.

Foram mais duas tentativas frustradas. Já estava de volta ao Elevador Lacerda quando a desistência se tornou iminente. Chorou sozinho. Lágrimas sinceras perdidas em meio ao turbilhão da cidade. Foi quando se lembrou da mãe. Ela o havia ensinado a correr atrás de seus objetivos, lutar pelos seus sonhos, não desistir. Foi por causa dela que se manteve forte suas preferências, mesmo diante da opressão em Barreiras. Era por causa dela que iria voltar para casa. Era, acima de tudo, ingênuo.

Recuperou a autoestima, limpou o rosto na camisa e subiu novamente no ônibus.

Boa tarde, passageiros. Não tô aqui pra pedir dinheiro a vocês. Tô pra vender meus instrumentos de trabalho e voltar pra casa. Sou de Barreiras, cabelereiro e fui enganado. Vim por causa de um amor, mas fui colocado pra fora de casa e preciso da passagem pra voltar. Tenho sessenta reais e preciso de mais oitenta e dois pra passagem. Tô vendendo meus instrumentos. Tenho aqui uma chapinha, cremes, secador, escova….se precisar dou até meu celular. São meus, não são roubados. Posso provar. E um recado: cuidado com o que seus filhos fazem nas redes sociais. Fui uma vítima. Não deixem que eles vivam o que estou vivendo. Alguém se interessa por algo? Preciso voltar pra casa.

Teve que repetir o discurso quatro ou cinco vezes. Como não tinha preço fixo para os equipamentos, entregava ao passageiro e recebia o que ele estava disposto a pagar. A chapinha, duas escovas, um pente e cinco potes de cremes. A venda rendeu um saldo de R$ 97. Completaria a passagem e, de quebra, poderia fazer um lanche. O celular estava salvo.

Chegou na rodoviária pouco antes das oito da noite. Comprou a passagem, comeu um sanduíche e refletiu sobre tudo que aconteceu. Precisava aprender a lição. O amadurecimento era necessário. A exigência e a desconfiança, antes de se entregar a um relacionamento, tinham de ser mantidos mesmo quando o amor transbordasse a alma. Procura pelas redes sociais, então, nunca mais.

A sensação de subir de volta no ônibus, mesmo sem bagagem e sem dinheiro, era alentadora. Sentou na poltrona com a certeza de buscar uma nova vida. Os meses em Salvador lhe ensinaram. Os perigos da internet estavam interiorizados. Poderia viver longe dessa tentação. Quando o ônibus andou, sentiu-se mais feliz. Voltaria para os seus. Recuperaria sua dignidade.

Assim que o veículo deixou a cidade e as luzes interiores se apagaram, buscou o celular no bolso e olhou por alguns segundos para sua tela iluminada. Digitou algo e, sorrateiro, procurou conversas no Facebook. Era, acima de tudo, ingênuo.

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Raphael Carneiro
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Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).