Prato frio

Raphael Carneiro
Medium Brasil
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4 min readSep 23, 2016

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A rotina é cruel. Todo dia o pipoqueiro saía cedo de casa, comprava o milho, verificava o estoque do Toddy, açúcar e óleo e, somente depois de ter o necessário para as vendas, ia para seu ponto no centro da cidade. Lá, pegava o carrinho na portaria de um condomínio, onde pagava uma ponta para os porteiros, e iniciava o processo. Gás ligado, panela quente, óleo, sal, milho. Primeira leva da pipoca salgada pronta. Gás ligado, panela quente, óleo, sal, milho, Toddy e açúcar. Primeira leva da pipoca doce pronta. Ritual finalizado, mas ainda não podia começar a vender. Sempre aos resmungos, buscava uma vassoura na portaria do mesmo prédio e voltava.

- Todo dia é isso. Todo dia é isso. Esse gari vem aqui, limpa a rua e deixa a calçada suja. Todo dia é isso. E eu que tenho que limpar.

Reclamava em voz alta para que quem passasse se tornasse solidário à queixa. Na maioria das vezes, tinha sucesso. O gari era demonizado, e o pipoqueiro se sentia vingado. Mas no dia seguinte, olha ele de novo com a vassoura na mão para repetir a limpeza.

Até que, em uma segunda-feira, deu a sorte de chegar ao ponto no momento em que o gari fazia a limpeza matinal. Manteve seu ritual em silêncio enquanto o servidor da Prefeitura passava com sua vassoura para lá e para cá. Carrinho, milho, óleo, pipoca. As duas fornadas estavam prontas, mas o gari ainda não havia terminado. A dedicação parecia ser maior naquele dia.

O esmero para limpar a rua não mudou o que interessava ao pipoqueiro. Asfalto limpo, calçada suja. Quando o gari passou perto e ignorou as folhas e o lixo no passeio, ele não aguentou.

- Ô irmão, bom dia. Tudo bem?

- Bom dia, pipoca.

- Ô velho, não tá vendo a calçada suja aqui não?

- Tô vendo sim.

- E vai deixar sujo, é?

- Desculpa aê, pipoca, mas não é minha função não.

- E é de quem? Minha, é?

- Se é sua eu não sei, mas minha é que não é. Sou pago pra limpar a rua. E a rua está limpa.

E assim o gari seguiu até o fim da rua. Mas não foi embora. Ficou lá no canto, em frente à portaria onde o material do pipoqueiro era guardado. A presença dele inibiu o comerciante de ir buscar sua vassoura para deixar o ambiente de trabalho limpo. Andava pra um lado, andava pro outro, mas nada de o gari ir embora.

- Só pode tá de sacanagem — resmungou.

Começou a vender a pipoca sem limpar o chão. Aquilo o angustiava. De repente, percebeu uma forte movimentação na outra extremidade da rua. Carros de som, bandeiras, faixas e uma muvuca no caminho. É o prefeito que tá vindo aí!, gritaram do outro lado.

Era época de eleição, e o prefeito tentava se reeleger. Estava explicada a cautela do gari. E lá estava ele na frente do pipoqueiro de novo. Com a vassoura na mão direita e o carrinho na esquerda, o servidor se aproximou de um rapaz com a camisa polo e o símbolo da prefeitura nela. O engomado estava um pouco à frente da comitiva do prefeito-candidato e parecia fiscalizar o trajeto.

- Bom dia, senhor — se aproximou o pipoqueiro.

- Bom dia, cidadão.

- O senhor é da empresa de limpeza?

- Não, senhor. Sou da secretaria municipal.

- Mas serve mesmo assim. Ô senhor, todo dia esse cidadão aqui limpa toda a sujeira da rua. Maravilha. Mas ele vê o passeio sujo e não faz nada, deixa lá.

- Sim, ele está fazendo o serviço dele. O que o senhor deseja?

- O senhor não pode orientar ele a limpar também a calçada?

- Desculpe, cidadão, mas essa não é minha função.

- É, deve ser minha função. De abestalhado.

Resignado, o pipoqueiro voltou para o lado de seu carrinho. O cheiro doce do achocolatado não amenizou sua frustração. Encheu um pequeno saco com uma porção de cada pipoca, sentou na banqueta de madeira e aguardou a chegada da comitiva. Enquanto o prefeito-candidato se aproximava, o gari e o coordenador se afastavam de seu ponto.

Foi aí que ele se aproveitou.

Com os próprios pés, o pipoqueiro empurrou para a pista tudo o que estava na calçada. Folhas, papeis, sacos. Ainda derrubou uma parte generosa de sua pipoca no chão. Espalhou o lixo e voltou para seu banco de madeira. Com o saco de pipoca na mão, assistiu de camarote.

Assim que chegou ao ponto sujo da rua, o prefeito-candidato parou a comitiva. A simpatia usada para acenar e cumprimentar os eleitores sumiu instantaneamente do rosto. Raivoso, mandou chamar o coordenador da secretaria para o seu lado. Ele foi resgatado lá da frente pelos que acompanhavam o prefeito e não se explicou. Apenas avisou que o gari responsável pela área estava ali. Ele, sim, é quem deveria ser cobrado.

O gari, então, foi empurrado pelos seguranças do prefeito-candidato até o grupo. Jurou ter limpado aquela rua com mais afinco do que o normal e disse que o coordenador tinha visto como a rua estava cinco minutos antes. O coordenador não confirmou. Estava em silêncio e, em silêncio, ficou. Foi aí que o gari viu o pipoqueiro sentado em sua banqueta com o saco de pipoca na mão.

- Ele também viu! Ele também viu! — gritou o gari em direção ao pipoqueiro, que logo foi convocado para servir como testemunha — Diga aí, seu pipoca. Eu não limpei essa rua aqui?

- Ô, seu gari, me desculpa, mas essa não é minha função.

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Raphael Carneiro é escritor e jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS), ele publica textos de ficção no Medium toda sexta-feira.

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Raphael Carneiro
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Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).