QUANDO ELA RECEBEU A CARTA DO PAI

Gabriel Schincariol Cavalcante
Medium Brasil
Published in
3 min readApr 12, 2017

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12–4–17, conto

Não tem um dia em que ele não se levante antes do sol e se deite muito depois que o sol se pôs. E o sol não é preguiçoso. Não tem um dia que o sol não queime sua pele morena e curtida durante horas e horas e horas a fio. Não tem um dia em que ele não sinta a mão calejada doer e a coluna ranger, teimosa. Não tem um dia em que ele reclame.

Há 50 anos chegou como lavrador. 15 anos depois, já chefe, comprou a terra do patrão com tudo que economizou e trouxe a esposa e a filha para morar com ele. O patrão se endividou e mudou de rumo e deixou em boas mãos a terra da família. Mão firme. Mão áspera.

Desde então sofreu e sorriu. Vendeu bem e já viu tudo morrer antes de colher. Apertou-se e nunca deixou uma conta sem pagar, um cabra sem receber no dia certo.

Aos 18, a filha saiu de casa e foi em busca dela própria. Ser livre. Arquiteta. Sonho de infância que explodiu quando passou pela cidade grande e viu aquele mundo saindo do chão até o céu. E ele recebeu o beijo no rosto e deu a benção e sentiu o coração sangrar. Lá vai ela, minha filha. A noite, não dormiu. Quase chorou, mas já tinha desaprendido como fazia, que a última vez que tinha chorado foi lá em Jaboatão na surra que levou do pai por ter roubado tomate da vizinha. Só sofreu até a hora de levantar. E levantou e tomou o café da esposa e fez a barba e saiu para o dia escuro. Vai, minha filha, orou, olhando para a escuridão que ainda cobria aquele pedacinho que era seu. E trabalhou por mais um dia.

No ano em que completou 39 anos de casado, vestiu um terno pela primeira vez e uma lágrima de alegria escorreu quando viu a sua menina jogar para cima aquele chapéu engraçado. Arquiteta, minha filha. E sorriu para si, achando graça na palavra. No ano em que completaria 40, a esposa padeceu. De doença ruim. Mas padeceu como viveu: alegre e dura. Dura na vida e na queda, esperou a filha formar para ir. E aí ele reaprendeu o que era chorar de tristeza e de dor. E abraçou a linda mulher que a filha se tornou. E a arquiteta pediu ao pai que fosse morar com ela na capital, descansar um pouco, aproveitar, e ele agradeceu, mas recusou: aí eu morro também.

Trabalhou. Sofreu. Calou. Era a hora. Todos os dias saía antes do sol e ia ao centro. Durante dois anos. Voltava no almoço e trabalhava até o anoitecer. De segunda a sexta foi e voltou do centro. E era a hora.

Quando a arquiteta chegou em casa, o porteiro avisou: dona moça, tem carta para a senhora. E ela esperou que fosse do banco ou qualquer outra coisa assim, mas não era. E ela chorou. Um choro longe de ser de dor. Leu toda a carta, escrita numa letra firmemente marcada no papel, meticulosa e trabalhada. Letra sofrida. E desaguou na última linha.

De seu pai, João de Deus Bezerra Cavalcante.

Seu pai, o lavrador analfabeto, que depois de velho aprendeu a ler e a escrever e presenteou a filha com a sua incansável vontade de viver.

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