Rastreamento de câncer

Conselhos são de graça

Julio Marchini
Medium Brasil

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A ciência nunca foi matéria de fácil alcance e a difusão do conhecimento acontece de maneira errática e inconstante. Atualmente em que convivemos com frutos da tecnologia avançada, com computadores que cabem na palma da mão mais poderosos que computadores que ocupavam salas inteiras de outrora, parece um contrassenso a barreira que existe entre a população geral e os cientistas. Existem dúvidas se vacinas salvam vidas, sobre a teoria de evolução e o aquecimento global. A tendência parece estar piorando e chega-se ao extremo com um grupo de terroristas mexicanos que enviam bombas a pesquisadores na área de nanotecnologia. Acreditam que nanopartículas vão dominar os seres humanos e torná-los em “nanociborgues”.

Em 2011 foi divulgado pela força tarefa americana de serviços preventivos (USPSTF) relatório contraindicando o uso do antígeno prostático específico (PSA) para rastreamento do câncer de próstata. Isto significa que na população geral não há benefício de se fazer esse exame. Pelo contrário, pode até trazer riscos. Em matéria do New York Times sobre a recomendação, o “outro lado” da história é apresentado a partir de opiniões de celebridades, como o ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani. Para estes, o exame salvou suas vidas. Da forma como está exposto, ambos o autor da matéria e o leitor acreditam que realmente estas duas lados são importantes e que deve-se dar o mesmo peso e consideração aos dois.

A recomendação sobre o uso do PSA para rastreamento do câncer de próstata foi baseada em cinco estudos randomizados. Destes apenas um estudo mostrou benefício em realizar o rastreamento, e mesmo este apresentou problemas como variação de valores críticos do exame e variação do tratamento entre os vários centros que participaram do estudo. Um das explicações para os resultados negativos dos demais estudos é o viés do tempo de vida ganho.

Neste viés, mede-se uma sobrevida maior em quem descobriu o câncer utilizando o exame do que quem descobre por ter tido sintomas. Mas o “ganho” de vida corresponde apenas ao tempo em que levaria entre o câncer ter sido descoberto pelo exame ao invés de ser descoberto pelos sintomas. Isto fica evidenciado no câncer prostático; os pacientes de um estudo que mostrou benefício da realização de prostatectomia foram reconhecidos através de seus sintomas e exame físico sem uso de rastreamento com PSA. Outro problema no caso deste exame é a considerável sobreposição entre os valores encontrados em pacientes com câncer e valores encontrados em pacientes com tumores benignos da próstata. Ainda por cima, existem vários riscos relacionados à simples investigação do câncer e também relacionados ao tratamento. Infecções graves e retenção urinária podem ocorrer em 1% de bióspias prostáticas.

Nada impede que estudos maiores venham a mostrar o quanto vale a pena realizar este exame, ou mais provavelmente, que seja lançada no futuro exame com capacidade de detectar a doença mais cedo, e separar tumores malignos de outras condições. No entanto, isso não abre margem a questionamentos de celebridades “gurus”, que se acreditam no direito de contrargumentar a evidência científica baseados em suas próprias experiências pessoais. “O PSA salvou minha vida,” disse Giuliani ao New York Post, salientando que ele estava em perfeitas condições quando realizou o teste aos 56 anos, “Eu acredito que esta é a razão que estou vivo. É um grande erro se afastar disso. É muito perigoso.”

Fenômenos biológicos são complexos, com interações de inúmeros fatores conhecidos e desconhecidos, de tal forma que a previsão de um evento baseado em número limitado de observações, ou neste caso, baseado em uma única observação, é extremamente imprecisa e não tem mérito. A ciência até utiliza a observação isolada, conhecida como relato de caso, como forma de investigar fenômenos e condições raras ou novas. O rastreamento do câncer de próstata é prevalente e não cabe nesta exceção. O que é muito perigoso é o destaque que é dado para este tipo de opinião leiga sem a devida investigação jornalística.

Vários argumentos podem ser encontrados para explicar a divergência entre o conhecimento comum e o científico. Desde a diminuição da qualidade do ensino sobre ciência na escola, a elitização do conhecimento científico, a variabilidade da verdade científica e a dificuldade da transposição de estatísiticas realizadas em populações para a individualidade de cada paciente. Em suma, a recomendação atual é uma opinião embasada nos estudos científicos existente até o momento, e de extrema valia para guiar gastos tanto no sistema público de saúde quanto em convênios particulares de saúde.

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