“Se eu não fosse gay, eu não seria eu”

lucas araujo
Medium Brasil
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4 min readJul 3, 2016

Falta uma semana até ir para a casa nova. Ando juntando tudo que é meu e/ou me diz respeito para ver o que levo comigo ou não. Hoje achei a foto abaixo. E ela me fez refletir sobre quanta força eu posso tirar do fato de ter nascido gay.

Com algumas coleguinhas na Escola Criança Feliz, Criciúma, Santa Catarina. 1998.

Em 1998, eu não sabia que existia handball.

Na escola, meus coleguinhas e eu íamos para o pátio de trás na hora do lanche. Lá havia um gramado, uma quadra ao ar livre e um parquinho com alguns brinquedos. Entre os meninos, alguns iam para o parquinho ou jogavam futebol. Já as meninas, quase todas iam para o parquinho ou ficavam sentadas ao longo do entorno da quadra, brincando, comendo ou conversando. O parquinho foi a minha primeira rede social. Eu nunca jogava bola com os meninos. Não é à toa que os meninos que não jogavam bola e frequentavam o parquinho eram mais próximos às meninas. E eu era, claramente, um deles. Acabei conhecendo crianças com os mesmos interesses que eu.

Ao longo do tempo, no entanto, ser bom de bola tornou-se um objetivo social tão poderoso que cada vez mais meninos iam para a quadra e cada vez menos ficavam “com as menininhas”, como isso passou a ser chamado. Visando aceitação social — no auge dos meus seis anos de idade — pedi aos meus pais uma bola — o que certamente os deixou bem felizes— e comecei a treinar em casa. Logo tive a minha estréia na quadra da escola. Neste dia, eu não somente joguei mal, como peguei a bola com a mão e fui quicando até a barra. Eles não queriam gol? Jogar com a mão, pra mim, foi a única solução. Naquele momento da vida eu não sabia que existia handball. Nem eu e nem ninguém lá. Só o que eu sabia era que nunca mais faria parte dos “meninos da quadra”. Afinal, como me foi dito, “menininha não sabe jogar bola” — hoje eu sei que sabem.

Estraguei minha única chance de entrar para o grupo dos meninos. Mas eu já era de outro. Eu tinha amiguinhas. Eu cresci tendo amiguinhas. Hoje, com 24 anos, ainda tenho amiguinhas. E olhando pra trás, descobri o que ter nascido gay fez por mim.

Minha sexualidade é um dado da minha personalidade — e sempre será. O fato de ter crescido me sentindo mais protegido e completo num grupo formado predominantemente por meninas é uma característica que foi se manifestando ao longo da minha vida — e como resultado de experiências sociais, como essa, do futebol. Eu estava indo contra o que se conhece por “papel-sexual”, o que determina que meninos ajam de um jeito e meninas de outro. E eu estava — e estou — indo “contra a maré”: indicados pela cultura patriarcal, o machismo, o heteronormativismo e a homofobia. Se antes isso me fazia sofrer e me enfraquecia, hoje isso me dá é força.

Ser gay é um dado. Ele vem neste pacote lindo, que chamamos de pessoa. Ser forte, não. Isso você desenvolve ao longo da vida. E depende muito de cada pessoa. Usar o que foi posto contra você como alavanca para vencer novos problemas… Isso é ser forte; olhar para o passado para saber como você foi construído e ter orgulho do que você se tornou… Isso é ser forte; saber que você precisa usar o que tem — sua arte, seu intelecto, suas habilidades — para lutar contra um sistema injusto… Isso é ser forte. Passar por cima do medo de se aceitar e gritar para a sociedade que você tem orgulho de ser quem é… Isso é ser forte. Conversar com gente que passa por problemas parecidos com os que você passou e buscar juntos uma solução para isso… Isso é ser forte.

Ter nascido gay foi a causa de muita coisa ruim que me aconteceu — já chamaram a polícia quando eu estava com um namorado, já apanhei de colegas da escola, já fui humilhado. E tem gente que sofreu e sofre muito mais do que eu. E tem gente que morre. Todos os dias tem gente que vira estatística.

Mas você não tem noção do tamanho da minha gratidão por ter nascido gay. Meu mecanismo de defesa foi a comédia. Foi procurar ser a pessoa mais engraçada, mais tiradora de onda. Foi escrever sobre o que me acontecia. Foi aprender a contar histórias sobre isso.

“Se eu não fosse gay, eu não seria eu” (Andrew Solomon). Essa foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo. E, olhando novamente para a foto que encontrei, vejo uma criança sorridente que não sabe o que a aguarda, mas fico feliz por ela, porque sei que ela vai amadurecer tirando lições das coisas ruins da vida e vai tentar ajudar do jeito que pode: escrevendo por ela e por quem mais precise dela.

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