Segurança Pública: onde opiniões erradas podem matar

Sergio Trentini
Medium Brasil
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20 min readAug 24, 2016
Foto: Sergio Trentini

Entrevista com o doutor em Sociologia e jornalista Marcos Rolim

Por Sergio Trentini e Cíntia Warmling para a Revista Bastião

De uma maneira geral, como a segurança pública deve ser pensada no Brasil?

Primeiramente, penso que nós deveríamos tratar todos os temas que envolvem políticas públicas a partir dos resultados que elas produzem, tendo sempre presente a necessidade do diálogo com as ciências. A produção de diagnósticos com base cientifica, o monitoramento dos resultados, a avaliação externa e a transparência nos dados são elementos decisivos para saber se aquela política, de fato, é eficiente, e se tem produzido resultados compatíveis com os investimentos realizados. Isso deveria ser o centro da nossa atenção, mas, se excluirmos a área da Saúde pública e da macroeconomia, o fato é que não firmamos esta tradição no Brasil. Na segurança pública brasileira habitamos um deserto teórico, um estado de coma intelectual induzido. Como regra, as opiniões na área não possuem uma só evidência que as ampare. Então, repetimos coisas como: “é preciso construir mais presídios”; por quê? “Porque faltam vagas”. Seria preciso perguntar: mas por que faltam vagas? A resposta, claro, exigiria identificar que prendemos muito mais do que seria necessário e que o perfil das pessoas que estamos prendendo não envolve, como regra, aquelas pessoas que praticam os crimes mais graves. Nossos presídios estão cheios de pequenos traficantes, jovens e pobres, mas há pouquíssimos homicidas, quase nenhum torturador, quase nenhum corrupto. Então, quanto alguém diz que é preciso construir mais presídios, deveria também oferecer uma evidência pelo menos, mas as evidências disponíveis mostram que o caminho deveria ser bem diferente e que prender nas condições em que o fazemos no Brasil é uma forma muito eficiente de aumentar o crime e a violência. Deveríamos sempre começar assim: “diante de tais dados, eu entendo que…”, mas o problema é que os gestores e os formadores de opinião sempre “entendem que” sem dado algum, sem base empírica. Opiniões do tipo são irresponsáveis e acabam dificultando a construção de políticas públicas eficientes.

Qual o maior problema na relação mídia e segurança pública?

Um dos problemas da mídia tradicional no Brasil é a maneira frequentemente superficial com que vários temas complexos são tratados. O tema central desse debate é como se produzir um jornalismo de qualidade no Brasil. Na área, por exemplo, de economia, parte dos jornais brasileiros, pelo menos os veículos mais tradicionais, investiram na formação de jornalistas especializados, pagando inclusive cursos de pós-graduação, etc. Na área de segurança pública, como regra, isso não existe. As pessoas que escrevem sobre o tema, rigorosamente, não tem a formação específica na área e, por isso, reproduzam o senso comum e as noções mais preconceituosas. Não raro, estes profissionais mantém relações muito próximas com suas fontes policiais e terminam por incorporar inclusive a linguagem falada por eles. O problema é sério, porque, em segurança pública, opiniões erradas matam. Então, a gente tem que ter muito cuidado com opiniões quando trabalhamos com temas que envolvem a vida e a liberdade, que são os valores mais importantes de qualquer sociedade. Compartilho dessa visão bastante crítica sobre a maneira como os temas da segurança pública são tratados por grande parte da mídia. Via de regra, a profundidade do tratamento é aquela oferecida por um pires.

A sensação de insegurança acontece por conta dessa falta de evidências?

Os crimes mais graves recebem a maior atenção da mídia. Se tivemos uma série de homicídios, como ocorreu em Pernambuco há alguns anos, e descobrirmos que o assassino triturava os corpos das vítimas e os transformava em empada, Isso irá atrair enorme atenção da mídia em todo o mundo. O motivo é que estamos diante de fato absurdo, estranho, cujo ineditismo lhe confere grande valor jornalístico. Quantos comerciantes no mundo mataram e transformaram os corpos de suas vítimas em empadas? Provavelmente só esse. Então, quanto mais incomum for o crime, maior e mais ampla será sua divulgação. É esta lógica do jornalismo que termina fazendo com que a noticia criminal acabe produzindo aquilo que, em meu livro “A Síndrome da Rainha Vermelha” eu chamei de “realidade invertida”. Para os quem acompanham as notícias criminais, os crimes mais graves são os mais comuns e os crimes mais comuns não existem.

As pessoas se amedrontam e quando isso acontece, o primeiro grande efeito é que elas procuram evitar sair de casa, especialmente à noite. Uma vez que as pessoas estão trancadas em casa à noite, elas têm menos poder de organização, elas não se reúnem mais. A comunidade perde poder, porque as pessoas se atomizam. Se a associação de bairro convocar uma reunião à noite, os residentes não comparecem por medo. Então se perde a mobilização e a organização coletiva naquela comunidade. Pessoas que estão assustadas em suas casas também deixam de frequentar os espaços públicos. Aquela praça onde as pessoas ficavam até mais tarde da noite para deixar as crianças brincar, para tomar um chimarrão, acaba ficando sem a presença do público. Uma praça vazia é ocupada mais facilmente por aqueles que pretendem praticar delitos. Isso ocorre sempre que não tivermos a vigilância natural que é oferecida pela presença da comunidade. Então, quando as pessoas refluem para suas casas por conta do medo, elas abrem o espaço público para a criminalidade. Em todo o mundo esta dinâmica é muito conhecida e essa é uma das razões pelas quais uma das formas de prevenção do crime é a ocupação dos espaços públicos pelas comunidades, pelos residentes. Porque aquelas pessoas que pretendem praticar um delito não irão fazê-lo na frente de muitas testemunhas.

“O medo vai agenciando novas oportunidades para o crime”

Quando as pessoas estão amedrontadas, imaginando que na sua região há muita violência, que a situação é a de um descontrole total, que “o crime tomou conta”, elas começam a pensar em sair dali. Todos passam a lidar com a ideia de se mudar para uma região mais segura. Quando uma comunidade pensa assim, os residentes param de cuidar do bairro e ninguém mais investe ali. Nessa circunstância, o valor venal dos imóveis e os alugueis tendem a cair, o que irá atrair para a região pessoas com menor poder aquisitivo e mais carecimentos. Claro que a maioria não irá embora, mas muitos irão. Irão se mudar aqueles que têm mais recursos; em geral aqueles que possuem seus negócios e suas empresas na região e que, quando se mudam, exportam também investimentos e empregos. Levam os empregos, não os empregados. O medo espanta capital, diminui investimentos na área e cria, portanto, um círculo vicioso: regiões amedrontadas tendem a ficar mais pobres e, por sua vez, agregar mais problemas de ordem social e produzir mais crimes. Então, o medo tem todos esses efeitos. Por isso uma mídia responsável não deve estimular o medo, deve estimular consciência, o conhecimento, mas não o medo. O medo quando estimulado tem esses efeitos deletérios que acabam sendo muito funcionais para a ampliação do crime.

Quais iniciativas ajudariam na inversão desse estado de medo?

Divulgar informações de prevenção, alertar as pessoas sobre riscos reais. Evitar, portanto, que as pessoas se atemorizem com riscos imaginários. Por exemplo, no começo do verão, é comum que a polícia em várias cidades europeias distribua folders avisando que a temperatura vai mudar e que as pessoas devem cuidar para não deixar suas janelas abertas. Isso fortalece a confiança nas polícias e promove uma cultura de prevenção ao delito.

“Toque de recolher não é cultura de prevenção ao delito. Muito pelo contrário, a prefeitura tem que chamar eventos culturais na praça pública, fazer jogos com a gurizada até tarde, acender as luzes e ter atividades em espaços públicos para que as pessoas venham”

Isso acontece há alguns anos na Europa. Uma espécie de abordagem de prevenção que envolve inclusive o tipo de plantas urbanas que serão aprovadas. A prefeitura quer construir uma nova praça, por exemplo. Esse projeto da nova praça vai passar por técnicos das polícias que emitirão um parecer sobre a segurança do local. Os especialistas na área irão evitar, por exemplo, que o projeto paisagístico da praça não conte com arbustos baixos, que não oferecem sombra, mas esconderijos. Pelo contrário, irão sugerir árvores de copa alta, que oferecem sombra, o que será muito importante para atrair pessoas para a praça em dias quentes. É o tipo de orientação banal, mas que faz enorme diferença. Se eu tiver uma praça que atraia os residentes, terei menos crimes ou nenhum crime. Se eu tiver uma praça deserta, terei mais um espaço para que traficantes, por exemplo, exerçam seu negócio.

Além dessas, quais propostas serviriam para diminuir a criminalidade?

Essa ideia de quem vincula o tema criminalidade, ou mesmo a violência, à miséria, à pobreza ou à desigualdade social é uma visão muito limitada, muito simplificadora das coisas. Há muito tempo se sabe que as relações causais são bem mais complexas. Na verdade, a pobreza, o sofrimento de ordem material, constitui um fator de risco importante paro o crime e para violência, mas há muitos outros. Quem pensa que a desigualdade social explica o crime e a violência terá dificuldade em compreender as razões pelas quais a ampla maioria dos pobres é honesta. Também não conseguirá explicar porque há tantos ricos bandidos no Brasil.

O que ocorre é que as dinâmicas que conduzem algumas pessoas a uma vida criminal não são simples. Para compreender estas dinâmicas, é preciso lidar com conceitos como “fatores de risco” e “agenciamentos”. O paradigma dos fatores de risco nos permite identificar determinadas situações ou circunstâncias que operam muito precocemente na vida das pessoas e que aumentam os riscos de transgressão. Tais fatores operam com relativa independência diante das condições socioeconômicas. A negligência parental, o abuso sexual e a violência dos pais sobre os filhos são apenas alguns exemplos. Há temas de ordem familiar, de ordem escolar, há temas comunitários que constituem fatores de risco. Todos eles são importantes pra explicar atos disruptivos futuros, atos ilegais, atos indesejáveis, de incivilidade etc.

Então uma política de segurança pública eficiente deve focar em fatores de risco, pra prevenção do crime. Tem que identificar quais são os fatores de risco mais operantes em cada local e delinear uma intervenção que contraste esses fatores de risco. Pensar a prevenção apenas a partir de uma “chave” socioeconômica pode não produzir qualquer efeito apreciável. Só pra dar um exemplo concreto: imagine duas famílias vizinhas, cada uma delas com um casal e dois filhos. A prefeitura quer fazer um programa de prevenção à violência e à criminalidade, mas seus recursos são limitados. O prefeito decide, então, trabalhar com as famílias mais pobres. Fica estabelecido, assim, que as famílias elegíveis para o programa serão aquelas com renda de até um salário. No caso das duas famílias de nosso exemplo, apenas a primeira será selecionada, porque a segunda tem renda de três salários. Na primeira família o pai tá desempregado, mas é muito dedicado, vai à igreja, pega bicos na vizinhança. A mulher é doméstica, faz faxina. Os dois filhos estão na escola pública, os guris são super esforçados, estudam bastante e querem melhorar de vida. A família é muito pobre, mas é feliz e suas relações são harmônicas. A outra família tem uma renda de três salários, mas um dos filhos já não está na escola, os dois usam drogas, o pai é bêbado, a mãe bate nos filhos. Então tem um monte de fatores de risco aqui. Quem precisa estar no programa de prevenção é essa família e não vai adiantar melhorar sua renda com uma bolsa, por exemplo. Então a renda é um tema, mas há muitas outras coisas em jogo. Como a gente não conhece isso — no Brasil não se lida com esses diagnósticos — então o governo atua às cegas quando delineia programas do tipo.

As Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) funcionam?

A UPP é uma política aplicada no Rio de Janeiro e que tem muito a ver com a realidade específica do controle territorial de áreas de exclusão por grupos armados de traficantes, que dominam regiões e estabelecem ali uma lei própria. Há comunidades no Rio em que não se pode usar determinada cor de roupa, porque é identificado com a vertente adversária. Há toque de recolher, etc. A UPP é uma tentativa de fixar nessas regiões uma base policial-militar, com os policiais desligados do 190, do atendimento às emergências. A estratégia é conhecida no mundo inteiro como polícia comunitária, polícia de proximidade rompeu com o modelo tradicional de policiamento reativo que ainda temos no Brasil.

Pelo modelo reativo, os policiais não efetuam patrulhamento fixos em uma região. O patrulhamento é feito aleatoriamente em viaturas e toda a polícia é orientada para a ocorrência criminal, vale dizer para responder a chamados do 190. Esse modelo, criado nos EUA na primeira metade do século passado, produziu uma força policial estranha às comunidades. Os patrulheiros não conhecem as comunidades, não sabem da realidade concreta de nenhum lugar e não são conhecidos pelos residentes. (Aos repórteres) Eu pergunto pra vocês, residentes em Porto Alegre, vocês sabem quem são os policiais responsáveis pela segurança no bairro onde vocês moram? Não, ninguém sabe, porque não há alguém responsável. Esse modelo de duplas patrulhando dentro de carros, atendendo ocorrências é o que a gente chama de polícia reativa, quer dizer, uma polícia que não atua na prevenção do crime e que só aparece depois que o crime aconteceu. A estratégia da polícia comunitária é inverter isso, é tirar esses policiais do atendimento de emergência — que deve funcionar como um serviço especializado. Nas abordagens de policiamento comunitário, os policiais, em geral atuando em dupla, trabalham sempre no mesmo local. Com o tempo, eles começa a conhecer os residentes pelo nome. Saberão quais os moradores que costumam passar da conta na bebida, quem são os guris que fumam maconha, mas que são inofensivos; ou seja, eles vãoi identificando as relações sociais e as dinâmicas cotidianas daquela região. Os residentes irão conhecê-los, passam a tratá-los pelos nomes. Já não ligam mais para o 190, ligam para o celular dos policiais da região.

Esse é um ponto central que aponta para o mais importante recurso que a polícia pode dispor para a segurança pública. O mais importante recurso, de qualquer polícia do mundo, se chama informação. Se a polícia tem informação ela sabe o que fazer, se ela não tem informação ela está em um quarto escuro, ela não sabe para onde ir. A fonte mais importante para polícia receber informação é o povo, então uma polícia que mantém relação com o povo e conta com a confiança das pessoas tem informação.

Hoje as pessoas não informam a polícia porque não confiam na polícia, não conhecem os policiais. Se tem um ponto de tráfico no bairro e todo mundo sabe disso, porque as pessoas não relatam à Polícia? Não relatam porque temem sofrer represálias, porque não confiam, porque imaginam que essa informação pode chegar ao traficante, porque temem que alguns policiais sejam sócios do negócio.

O problema é como é que eu transformo uma polícia que é reativa, que é estranha, em uma polícia que está presente nas comunidades e que tem a confiança dela. Esse é o grande desafio. Para isso tem que mudar o modelo de polícia no Brasil. Se isso não for feito, as UPPs do Rio serão engolidas pelo modelo tradicional de polícia. A tendência é que passem a ser tão violentas, corruptas e ineficientes quanto outros setores da polícia.

A corrupção policial é um problema no modelo, no treinamento dos policiais?

Esse é um problema para o qual o treinamento contribui, a seleção mal feita de policiais também contribui, mas é essencialmente um problema do modelo. Porque é um modelo que não permite o controle externo e que não presta contas à população. Essa história da ponta que se corrompe no contato com o tráfico, por exemplo. De fato isso se tornou um problema disseminado no Brasil, quem disser hoje que o policial que está pegando dinheiro do traficante é uma exceção está mentindo. Tem muitos policiais que estão fazendo isso. Ninguém pode estimar o quanto é esse muito, mas quem conhece minimamente as polícias brasileiras sabe que não são casos isolados, sabe que são casos muito frequentes. Os policiais que não aceitam entrar nessa lógica sentem-se cada vez mais acuados. Pela Constituição Federal, quem deve controlar as polícias é o Ministério Público, mas isso não ocorre na prática.

O policial sempre é visto pela população como um inimigo, ela tem medo…

Infelizmente, parte importante da população mais pobre, mais excluída, vê a polícia como inimiga, não como parceira. Isso decorre do fato de que muitas das incursões das polícias em áreas de exclusão são realizadas de forma abusiva e, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, tornou-se comum que este tipo de “operação” termine com inocentes mortos, inclusive crianças. Que passou por isso, nunca irá reconhecer na polícia uma instituição amiga, óbvio. Também por isso, nunca irá colaborar com as polícias. Esta é a razão pela qual os abusos e a violência policial são um sinal inequívoco de falta de profissionalismo.

E a prática do “bico” nas polícias?

O “bico” é uma forma de reforçar o salário. A lei não permite que os policiais desempenhem este tipo de trabalho, mas, como regra, são situações toleradas pelos comandos e pelos governos por conta dos baixo salários. O problema é que o bico produz várias distorções. A mais importante é a seguinte: se eu sou policial e sou participante no mercado informal, privado, eu passo a ter interesse que a segurança pública não funcione bem naquela área, porque aí aumentam as chances de ter trabalho particular. Há policiais (inclusive oficiais das PMs e delegados), por exemplo, que são sócios ocultos de agências de segurança privada. Essa agência de segurança privada vai faturar mais quanto pior for a segurança pública. Esse é um conflito de interesse evidente, entre segurança pública e privada. Quer dizer, eu sou um funcionário da segurança pública, se a segurança na área pública melhora meu faturamento na área privada diminui. Então isso é muito grave, mas, para variar, não há ninguém preocupado com o problema.

E vai por aí também esse medo instituído pela mídia?

Sim, o medo, estimulado pelo tipo de cobertura sensacionalista de setores da mídia, aumenta os espaços para o mercado privado de segurança. Tem muita gente ganhando dinheiro em cima do medo. O próprio Poder Público compra gato por lebre. O monitoramento eletrônico de presos, é um típico exemplo de uma iniciativa deslocada de qualquer racionalidade e que emplacou por falta de discernimento do gestores e pela ausência de uma crítica elementar. Nesse sentido, a mídia, que não foi capaz sequer de fazer as perguntas necessárias, terminou ajudando o Estado a gastar dinheiro em algo que não produz qualquer resultado concreto. O recurso de monitoramento à distância existe há muito tempo. Eu acompanhei um programa do tipo para jovens envolvidos em delitos em 1999, nos Estados Unidos. Em todo o mundo, o monitoramento é usado para se evitar a prisão. Diante de um crime de menor gravidade, procura-se evitar que o autor seja encaminhado à prisão. A alternativa é, muitas vezes, uma pena de limitação da liberdade pela qual o condenado deverá se deslocar dentro de um perímetro determinado, não podendo ultrapassar aqueles limites por alguns meses, por exemplo. Se faz isso também para evitar os efeitos criminogênicos do encarceramento como a associação criminal na cadeia e o estigma sobre os egressos. Assim que funciona no mundo inteiro. No Brasil, esse recurso chega com vinte anos de atraso e é apropriado pela lógica do encarceramento. Então, ele não é usado para se evitar o cárcere, mas para exercer um controle adicional sobre aqueles que já foram presos. Aqui, então, o recurso foi vendido para que, com o monitoramento, fosse possível reduzir o crime. E a história foi comprada sem perguntas. É evidente que o monitoramento eletrônico não reduz o crime, porque o recurso permite saber por onde o monitorado anda, mas não o que ele faz. Então o sujeito é traficante por exemplo, está no semiaberto e trafica monitorado. Então esse recurso não produz efeito na diminuição do crime, mas custa muito. Os recursos empregados em monitoramento poderiam financiar um programa de apoio aos egressos, com efeitos extraordinários na prevenção como vem ocorrendo com o POD socioeducativo, um programa de apoio aos egressos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) no RS.

Como pensar a segurança?

Talvez o desafio mais importante da cidadania no Brasil hoje seja cobrar dos governos medidas racionais, não se satisfazer com conversa fiada e com demagogia. Então, por exemplo, nós temos a Lei de Acesso à Informação (LAI) hoje no Brasil que permite que a cidadania solicite informações aos órgãos públicos que tem, por sua vez, a obrigação de responder. Quando saiu a LAI, solicitei ao governo do Estado (na época era o governo Tarso), que me fornecesse cópia do diagnóstico que o governo tinha sobre segurança pública e cópia do documento com sua política de segurança pública. A resposta foi totalmente evasiva, porque não havia nem diagnóstico, nem política. O mesmo acontece hoje, com o o governo Sartori, e ocorria antes.

Então esse é o ponto, para mudar é preciso esclarecer o que não está sendo feito. Às vezes os gestores não fazem, porque não sabem, ou porque tem outras prioridades que não a política pública, mas só vamos mudar o jogo, quando as pessoas começarem a cobrar resultados. Hoje, a maioria se contenta com o discurso ideológico sobre o crime. Isso acontece com a direita e com a esquerda, não é privilégio de uma concepção ideológica. A chegada de Temer ao poder irá, entretanto, agravar em muito esta situação por conta do perfil do senhor Alexandre de Moraes, indicado para o Ministério da Justiça.

A polícia militar do Brasil é estruturada a partir de onde?

O problema que temos não é da polícia militar, mas também da polícia civil e dizem respeito ao modelo de polícia. Temos no Brasil um modelo de polícia muito particular. Em todo o mundo, se compreende que a atividade policial envolve um ciclo com tarefas básicas como o patrulhamento, a investigação, a repressão policial, a manutenção da paz pública etc. Isso tudo diz forma o ciclo de policiamento. Todas as polícias no mundo fazem o ciclo completo de policiamento. Pouco importa quantas são as polícias, se duas, se mil, se vinte mil (como nos EUA). O que importa é que todas trabalham com ciclo completo.

No Brasil a gente criou, por razões históricas, isso vem lá de Dom João VI, duas polícias em cada estado que, na verdade, não são duas polícias, são duas metades de polícia. Uma polícia tem metade do ciclo e outra polícia tem a outra metade. Então nós temos as Polícias Militares, que só podem fazer o policiamento ostensivo, o patrulhamento, enquanto a outra metade, a investigação, é prerrogativa das Polícias Civis. Quando a PM prende, ela tem de encaminhar o detido para a delegacia da Polícia Civil. As PMs não podem investigar e as PCs não podem patrulhar. Essa bipartição do ciclo de policiamento só existe no Brasil e em mais uma ou duas nações africanas. Criamos um Frankstein e, não satisfeitos com isso, enfiamos este modelo na Constituição Federal de modo que, para mudá-lo, será preciso reformar a Lei Maior.

Essa é a razão original pela qual essas duas metades são hostis entre si. A polícia militar e a polícia civil se detestam. Em público, elas não dirão isso, evidente, mas quem conhece polícia sabe que uma fala mal da outra o tempo inteiro, uma não confia na outra, uma boicota a outra. Nossas polícias não compartilham informações e têm muita dificuldade em trabalhar juntas. Não raro, a casos de tiroteios entre policiais envolvidos em uma mesma operação.

O que ocorre é que cada uma das metades de polícia — assim como ocorre com uma laranja cortada ao meio — não para em pé sozinha, ela precisa da outra metade. Cada metade sabe que precisa das prerrogativas da outra. Observe, por exemplo, que a polícia militar conta com a PM 2 que é o setor de inteligência que analisa informação e que faz investigações. Aí a polícia civil diz: pô, vocês tem um setor de investigação, mas investigação é nossa responsabilidade. Aí a PM responde: “sim, mas vocês são polícia de investigação e isso é algo que se faz discretamente, sem identificação, por que então tem policial civil que usa colete escrito “Polícia Civil”? Por que então tem o carro da polícia civil identificado? Não devia ter, isso é ostensividade, isso é atribuição das PMs”. Ora, as PMs precisam de um setor que analise informações e que investigue, assim como as PCs precisam ser reconhecidas pela população, o que pressupõe símbolos, uniformes e atuação ostensiva.

Para piorar o quadro, nosso modelo de polícia ainda criou outra divisão, deste vez interna a cada uma das polícias. Refiro-me ao fato de que nossas polícias — ao contrário do que ocorre com as polícias de todo o mundo, não possuem carreiras únicas. Em cada polícia temos uma parte “de cima” — que manda- e uma parte “de baixo”, que obedece, cada uma delas com suas próprias portas de acesso. O ponto de corte é, nas PCs, delegados e não delegados e, nas PMs, oficiais e não oficiais. Essas duas metades também convivem em um clima tenso e desigual, com práticas autoritárias e desrespeitosas ainda comuns nas relações hierárquicas, especialmente nas PMs.

Em nosso modelo, se alguém for investigador de polícia nunca chegará a delegado, ainda que seja o mais destacado e competente investigador da história das polícias. Isso ocorre porque para chegar a delegado é preciso ser bacharel em Direito e ser aprovado em um concurso específico. Então, de repente, um jovem de 23 anos, que tenha se formado em um bom curso de Direito, passa no concurso para delegado. Aí, esse guri que nunca entrou numa delegacia, nunca botou um pé no presídio, não sabe nada de segurança pública, irá chefiar um grupo de 20 policiais, que estão há 20 anos na polícia, que ganham cinco vezes menos que ele. A chance disto dar certo é muito pequena. O mesmo ocorre nas PMs. Para chegar a coronel da PM, o posto mais alto da hierarquia, não é preciso ter entrado na corporação como patrulheiro. Posso entrar na PM como oficial, direto, sem nunca ter exercido uma função de patrulha. Nas polícias modernas, a regra é que só há uma porta de entrada. Todos os chefes de polícia, portanto, um dia foram patrulheiros. Isso faz uma enorme diferença e permite a construção de instituições fortes. No Brasil, temos polícias fraturadas por conta do modelo.

Nas polícias modernas, as lideranças policiais têm maior legitimidade exatamente porque chegaram lá depois de exercerem funções subalternas. Além disso, quando há uma carreira única, com boas definições a respeito das promoções por mérito, todos os policiais sabem que se forem bons servidores poderão alcançar as posições mais altas na hierarquia. Em nosso modelo, os soldados e os investigadores olham para o que suas carreiras lhes reservam e não identificam alternativa.

Aqui tem outro problema que em geral não é compreendido. Fala-se muito, por exemplo, na necessidade de contratar mais policiais. O ponto é: por que nunca completamos os efetivos policiais? Isso ocorre porque as aposentadorias são precoces nas PMs e porque muitos policiais se evadem das suas instituições em busca de melhores carreiras. O tema, portanto, não diz respeito apenas a salário, mas à carreira policial. Hoje, um soldado da PM deve esperar sete anos antes que tenha a chance de fazer um curso para sargento. Por isso, os governantes podem contratar dois mil policiais, cinco mil, dez mil. Ali adiante, estará faltando policiais porque não lhes asseguramos uma carreira atrativa.

É claro que a mudança do modelo é essencial, mas isso não significa que não se possa fazer nada sem esta reforma. Para termos um bom projeto de policiamento comunitário náo precisamos mudar o modelo. No Rio Grande do Sul, como em vários outros estados, se fala em polícia comunitária, mas os projetos consistentes são uma raridade. Quando vai se examinar de perto o que é chamado de “polícia comunitária”, se percebe que são poucos policiais envolvidos, via de regra pela dedicação de uma ou duas pessoas que lutam contra os limites e a cultura institucional. Recentemente, tivemos um projeto no governo Tarso em que o policial morava no bairro em que fazia o patrulhamento, recebendo reforço salarial. Esta é o tipo da ideia que desconstitui o Policiamento Comunitário. Ora, a ideia não é a de que o policial more no bairro, a ideia é que ele trabalhe no bairro, porque, se ele morar no bairro, isto significa que sua mulher e seus filhos estarão morando no local onde ele trabalha. A tendência é que ele não se envolva com determinadas situações com medo de que seus familiares possam sofrer represálias. Aí o cara fica por conta do reforço salarial, não porque tenha vocação para o trabalho comunitário ou porque tenha sido ganho pela natureza distinta do trabalho a ser feito, o que é totalmente equivocado. Parece que, mais uma vez, as intenções foram as melhores, mas o projeto foi mal concebido.

Durante a copa, algumas zonas de Porto Alegre, as zonas mais nobres, tinham policiais que estavam sempre ali e eram sempre os mesmos.

Sim, porque ali a gente fez um processo de adensamento no policiamento, com policiais que vieram de outras cidades para prestar serviço durante aquele mês da Copa, mas isso não é a ideia de policiamento comunitário. Esse é um recurso de condensação em mega evento. Para o policiamento comunitário, o principal é que o policial crie vínculos com a população e que as prioridades de policiamento passem a ser definidas pela população. Então tem que trabalhar com conselhos comunitários que se reúnam com os policiais e definam qual é a prioridade de policiamento das comunidades. No modelo de polícia que temos, há uma relação excessivamente verticalizada e centralizada que dificulta em muito a implantação de projetos que envolvem necessariamente uma maior autonomia na “ponta”, na prestação do serviço. O soldado não tem nem autonomia de seguir a determinação de um conselho, é o chefe dele que manda o que ele vai ter que fazer ou não, então isso também precisaria ser alterado, flexibilizar mais essa relação, que envolve também maior qualificação entre os policiais. Um soldado da PM não pode ser só “bem-mandado”, ele tem que ter capacidade de raciocínio, bom senso, noções jurídicas elementares, capacidade de diálogo, empatia e habilidades de liderança.

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