Sobre Parasita

ou “há mais coisas entre a poltrona e a tela do que sonha nosso vão proselitismo ideológico”

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

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O celebrado vencedor coreano do Oscar de 2020 é um filme tão intrigante no aspecto geral quanto é interessante no aspecto cinematográfico. Trata-se de uma obra que cresce. Meio como um fungo imaginário, um agrupamento de esporos conceituais que vai se desenvolvendo num canto escuro da mente. Um negócio meio agárico que ao retornar-se a ele, é flagrado mais desenvolvido. O parasita brota por vários outros cantos do seu cérebro onde não estava antes, na hora em que você assistiu.

Há quem discuta os méritos específicos da disputa com outros filmes em certas categorias, mas se há algo indiscutível é o fato de que o ganhador dos Oscars de melhor filme, melhor filme estrangeiro, direção, direção de arte, montagem e roteiro original é uma obra impactante. E que mexeu não só com a cabeça do público, mas também pousou de maneira meio alienígena nas atenções da — normalmente bairrista — indústria Hollywoodiana. Afundada em uma crise não necessariamente financeira, mas de imaginação em termos de qualidade de roteiros e se comprometendo de forma açodada e irrefletida com um idealismo militante, limitante e cerceador de visões dissonantes da do seu mainstream, a academia da meca do cinema de certa forma demonstrou uma rendição ao filme. Capitulou diante do fruto de um talento estrangeiro que trouxe uma complexidade e uma visão rica em camadas e aspectos que há muito Hollywood deixou de privilegiar em prol de uma sinalização cansativa de virtudes, de blockbusters com retorno fácil porém cada vez mais previsíveis e de uma sonolenta regurgitação de remakes e adaptações. Parasita talvez seja — Hollywood escolhendo enxergar isso de forma consciente ou não — um sinal de alerta para que a indústria perceba que há roteiros e coisas novas a serem feitas, bastando que se deixe um pouco a obsessão representativista de lado. Até porque cinema e obsessão só combinam e dão jogo quando esta última está representada como assunto dentro da tela, e não fora dela.

Meu primeiro e grande impacto ao assistir o filme foi perceber que estava diante de uma obra poderosa em simbologias. Assim de primeira, acho refrescante poder assistir um filme que consegue romper com a premissa hipócrita e de “crítica social foda de cineclube tênis verde com um inescapável verniz de consciência social cuidadosamente estudada e cara de conteúdo blasé”, do insuportável simplismo maniqueísta e reducionista do “pobre bonzinho/rico malvadão”.

Pairando (graças a Deus) acima dessas pequenezas sectárias, o filme se apresenta (em uma de suas múltiplas facetas) como um exercício magistral de cinema sobre a sordidez humana e os limites (borrados ou não) a que ela pode chegar, ou ultrapassar. O filme fala (em certos momentos grita) a respeito da falta de empatia para com o semelhante estimulada por uma automática (e paranóica) fixação quantitativa e não qualitativa com lutas de classes e separação da sociedade em castas. Fala também sobre uma saudável quebra de estereótipos e sobre o fato da filhadaputice humana não ter cara, não ter conta bancária, não ter ideologia. Há uma oxigenação bastante interessante a respeito do assunto no campo conceitual, embora na camada dramática do filme essa questão se mantenha tensa: ou se é gente boa ou se é filho da puta, e como isso é independente de discursos sociais panfletários, seja dentro seja fora da tela. E isso determina como as pedras (e os caminhos pelos quais a sorte vai te levar) vão aparecer na sua vida.

A partir daqui, alguns spoilers, portanto se ainda não viu o filme, corre pra ver depois volta!

A questão da pedra eu achei muito, muito interessante, talvez o maior ponto focal de toda a tapeçaria de simbologias contidas no filme. Ela parece ter sido dada de presente pelo amigo do filho. Parece um gesto de amizade verdadeira e um presente desinteressado, dado como desejo de prosperidade, de melhoria de vida, etc. Um amuleto de sorte, coisa muito comum nas culturas orientais. Mais comum que aqui no ocidente, apesar de aqui também termos esse costume.

♫ Essa família é muito unida, e também muito ouriçada ♪

A pedra até funciona, mas funciona pra ajudar a família Kim a progredir na falcatrua, porque no fundo eles são uma família de 171 filhos da puta do caralho, como fica demonstrado pela construção dos personagens e em diversas dicas colocadas de maneira deliciosamente cuidadosa no roteiro em todo o decorrer do filme. O cambalacho evolui e à medida que as coisas vão melhorando (a família toda ganhando dinheiro com os trabalhos arrumados de maneira 171 na casa) o filho, o 171 original começa a encarar a pedra como um amuleto, mas de uma maneira mesquinha e desenvolve um apego a ela. Aquilo de andar agarrado com a pedra, de tirar a pedra do seu pedestal e ficar abraçado com ela, retrada de maneira poética a ganância, a ambição desmesurada e a disposição de não querer abrir mão das conquistas, mesmo que tenham vindo de forma desonesta.

A pedra vai sendo poluída, vai se sujando por essa sordidez e filhadaputice da família Kim. Até o momento em que vagabundo subverte a função da pedra. De amuleto de sorte ela vira arma.

A pedra ser usada para ferir é uma ruptura clara de sua premissa original e representa uma tremenda subversão de valores, uma decisão de desprezar a função original e bem-intencionada do presente, uma decisão de romper com a luz e abraçar definitivamente as trevas. Aí o mundo natural se vinga. É o ponto de virada para a família e é quando a natureza cobra a reparação para a família Kim. Ao perverter a pedra, a natureza (na forma da água), resolve se vingar. A vingança vem pela água suja. Leva tudo que eles tem embora. O vaso explode. A casa deles vira um rio de merda. A simbologia do contato entre duas instâncias da natureza, a pedra e a água, também é fortíssima, porque é marcada pela fúria da enchente, dos bueiros transbordando, o vaso cuspindo de volta a água “suja”.

No rescaldo moral desse episódio, o filho se livra da pedra. Deixa a pedra num rio. Cabe notar que ao devolver a pedra à natureza, ela é mostrada poeticamente repousada no leito do córrego, com água corrente passando por ela. É como se a pedra precisasse ser lavada não só do contato com a água suja e infecta da enchente, mas também da sujeira simbólica que a sordidez dos atos da família de filhos da puta deixou nela. Uma simbologia poderosíssima, entre muitas outras que tornam a experiência de assistir a esse filme realmente única.

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Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.