Sonhos, cova, ação

Raphael Carneiro
Medium Brasil
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3 min readJul 23, 2015

P.H. sempre quis trabalhar na televisão. O sonho de criança era aparecer na telinha quadrada reluzente que lhe encantava todas as noites. Para isso, pensou, o melhor caminho seria tentar a carreira de ator. Fez curso de teatro, oficinas de interpretação, aulas de canto. Na teoria mandava bem. Mas o talento custava em se aproximar dele. A coleção de “nãos” que recebeu o fez apelar para o plano B. Podia até não ser ator, mas aparecer no fundo de uma cena lhe deixaria satisfeito.

Uma vaga como figurante não era fácil de achar. Descobriu que não era o único ator frustrado e que, como em boa parte das profissões, havia uma patotinha que não largava o osso por nada. Estava quase desistindo da ideia quando um anúncio grudado em um poste o surpreendeu. No papel amarelado pela cola de baixa qualidade era possível ler “Procura-se ator com pouca experiência. Valor a combinar”.

Ligou dali mesmo. Em pé, em frente ao poste, marcou a entrevista para o dia seguinte. Chegou ao local sem muitas informações do que fazer. Percebeu que se tratava de uma emissora emergente. Daquelas que não pegam em todos os aparelhos e que ganham fama por exibir a vida dos artistas. Identificou-se e recebeu um pacote com R$ 50 e duas folhas de ofício. Eram roteiros simples, mas que lhe geraram curiosidade.

Pelo que estava escrito no primeiro, deveria fazer o papel de um homem arrependido pelo fim do casamento. O texto exigia cara de coitado e de quem estava sofrendo com a separação. Achou que seria fácil, mas precisava se concentrar na hora de revelar o motivo da briga: ela teria jogado o controle do videogame no chão.

Não era uma novela, mas um programa de auditório. P.H. seria uma daquelas pessoas que tentam resolver problemas íntimos em cadeia nacional. No começo, se saiu bem. Só não entendia porque o apresentador saía correndo do meio do palco, pegava um produto novo e mudava o tom de voz e iniciava uma propaganda. Era difícil, para ele, manter a concentração no texto daquele jeito.

P.H. foi aceito de volta pela suposta esposa, a primeira cena chegou ao fim, ele retornou para o camarim e logo recebeu uma tintura no cabelo, um bigode postiço e novas roupas. Não teve nem tempo de rejeitar. “Vale tudo pelo sonho”, pensava ele. Com o novo figurino, foi ler o roteiro, que desta vez lhe arrumava um segredo para contar para a mãe.

No palco, o apresentador fazia um show à parte. Em uma bancada separou uma pá, vasos de flores e R$ 350. Dizia que aquilo tinha a ver com o segredo que o filho queria revelar para a mãe. P.H. entrou em cena e se manteve calado. A mãe, que ele viu pela primeira vez naquele momento, apareceu logo em seguida.

Entre comerciais, P.H. era orientado a ficar calado e não dar muitas pistas do segredo. Somente quando teve início o último bloco foi quando o apresentador autorizou o aspirante a ator a falar:

- Mãe, sabe o dinheiro que eu levo para casa?

- Sei.

- É que eu sou coveiro e quero que a senhora vá morar comigo.

A senha estava dada. Começou uma gritaria no estúdio, o apresentador disse que aquilo era um absurdo e retirou a senhora do palco. Olhando para a câmera, se despediu do público e disse que o desfecho da história seria conhecido no dia seguinte.

O programa acabou, o letreiro subiu e as luzes das câmeras se apagaram. A produção entrou no palco e se uniu ao apresentador e aos outros atores para comemorar a edição do dia. Pelos dados apresentados por eles, a receptividade tinha sido boa e a audiência correspondeu.

Foi quando o apresentador percebeu que P.H. continuava sentado no mesmo banco e com o microfone na mão. Com a mesma desenvoltura de quem ainda estava no ar, o apresentador se aproximou e questionou:

- Fala, garoto! Você é novo por aqui, não é?

- Sou sim. Foi meu primeiro dia.

- E não está comemorando? Você foi muito bem hoje. Parabéns.

- Até queria comemorar, mas queria mesmo era poder ser que nem o coveiro que eu era até agora. Pelo menos ele ganha o dinheiro sem mentir para ninguém.

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Raphael Carneiro
Medium Brasil

Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).