Uma chance

Raphael Carneiro
Medium Brasil
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5 min readSep 4, 2015

- Só quero uma chance.

- Não — respondeu Deus.

- Deixa eu ir lá só uma vez.

- Disse que não era pra você insistir nisso. Foi a semana toda com essa história.

- Mas eles estão demais. Precisam de um corretivo.

- E é você o responsável por algum tipo de corretivo?

- Posso até não ser, mas, indiretamente, eu também sou responsável por isso.

- Já disse que não — voltou a afirmar Deus, sem tanta paciência.

- Não quero fazer nenhuma revolução. Só dar uma lição neles.

- Já estou me enchendo desse papo.

- Pesquisei e vi que essa cidadezinha é a que tem mais casos. Está todo mundo traindo. Uma loucura. Só vou lá, uma semana e pronto.

Silêncio.

- Deixa, vai.

- Tá bom. Se é para você parar de encher o saco, eu deixo. Mas eu já te disse que eles não fazem por mal. É algo que acontece na vida deles.

- Lá vem você com essa defesa de novo.

- Não é defesa. Para te provar que não fazem por mal, vou deixar você lá por uma semana e não poderá se envolver com ninguém. Você tem um relacionamento comigo e não vai poder me trair, tudo bem?

- Certo.

- Então fechado. Uma semana. Se me trair, vai ter o mesmo castigo que der a eles.

- Mas…

- Nada de “mas”. Pode ir.

Foi custoso, mas o cupido conseguiu vir à terra para tentar resolver o que considerava um problema entre os humanos. A infidelidade havia se tornado prática comum. Naquela cidade, então, os índices ultrapassavam qualquer expectativa. Ele não se continha de raiva. Havia a queixa ao comportamento dos humanos, mas havia também o medo de ter o próprio trabalho questionado.

Com tantas pessoas traindo, poderia ter ocorrido alguma falha no processo. Se o cupido era o responsável por juntar os casais — supostamente — apaixonados, por que tantas puladas de cerca? Ele não poderia deixar que começasse a surgiu o questionamento de suas flechadas. Elas sempre foram tão certeiras, não tinha como ter perdido a mira assim. Era preciso dar um jeito o mais rápido possível para voltar a colocar a casa em ordem.

Seriam somente sete dias para dar uma lição e retornar com a mente tranquila. Antes disso, era preciso se acostumar com a nova realidade. A visão macro do que acontecia à sua volta continuava. Ele ainda tentou se enturmar para entender melhor a mente da população. Saber a motivação das traições era uma estratégia para mudar o método de ação e evitar possíveis falhas no futuro.

Com a facilidade de saber quem estava traindo quem, o cupido começou seu trabalho na base da conversa. Primeiro sentou ao lado de um jovem na praça de alimentação do shopping. Ele estava ali à espera da amante. Os dois deixavam o carro no estacionamento e seguiam para o encontro secreto. No meio do papo, o cupido tentou extrair algo daquele rapaz.

- Vejo tanto casal feliz passando por aqui. Queria entender o que leva algumas pessoas a trair.

- São muitos motivos. Cada caso é um caso.

- É que eu sou contrário a isso. Sou uma pessoa muito fiel.

- Até te entendo, mas me perdoe, a vida é uma só. Temos que aproveitar enquanto ainda estamos por aqui — respondeu o jovem.

- Então pra que assume o compromisso com alguém?

- Ah, é o amor. Traição é só pra curtir o momento mesmo — brincou.

O cupido apenas balançou a cabeça negativamente e deixou o local. Ficou feliz em saber que, neste primeiro caso, a justificativa não era um erro seu, mas um capricho do traidor. Deixou o shopping e seguiu para uma praça próxima a uma das praias da cidade. Lá estava a namorada daquele rapaz que encontrou no shopping. Ganhou a forma feminina e se aproximou para uma nova conversa.

Assim como no primeiro caso, começou falando de temas gerais. Desta vez, ao invés de ir direto ao assunto, tentou mudar o foco aos poucos. Inventou uma história de vida e contou que estava tentada a trair o companheiro. Mostrou-se aflita e, com isso, justificou o pedido de ajuda a uma desconhecida.

- Olha, se eu fosse você, traía mesmo. Não custa nada e vai te dar prazer. É só fazer direito para que ninguém saiba.

- Você fala como se tivesse experiência — rebateu o cupido.

- Experiêêêência eu não tenho, mas também dou minhas puladas. É bom que até reanima o relacionamento.

- Mas se tem um compromisso não é para cumprir?

- Até que é, mas uma escapulida de vez em quando não mata ninguém, não é?

- Será? — questionou o cupido logo antes de a moça levantar para se encontrar com seu amante. Sim, ela também traía o namorado.

A sensação de felicidade havia se dissipado. O que abundava a mente do cupido agora era um desgosto completo. Os humanos queriam a estabilidade e os benefícios de um relacionamento. No entanto, não estavam dispostos abrir mão do que a vida de solteiro proporcionava. Passou dois dias matutando o que poderia ser feito. Observou o comportamento de algumas pessoas e, no quarto dia na terra, chegou a uma conclusão: como a moça disse, trair não matava ninguém. E se não fosse assim?

Foi o que ele começou a colocar em prática. Não concordava com as justificativas e precisava de uma lição. No quinto dia, com o prazo chegando ao fim, agiu. Seguiu o primeiro rapaz que conversou quando chegou à terra. Ele estava levando a amante em casa tarde da noite. Simulou um assalto e matou o rapaz.

Sem remorso, foi atrás da namorada. Ela também estava em uma noite de escapulida. A encontrou quando saía de um bar com o seu amante. Deixou ela entrar no carro e, do mesmo modo, se fez de ladrão. Empurrou o rapaz e fugiu com a mulher no banco do carona. Ela pediu clemência, implorou, chorou. Ele acabou com aquilo antes que mudasse de ideia.

No dia seguinte, o cupido acordou ansioso para ver o que os humanos iriam falar sobre o ocorrido. Inicialmente, sites e rádios diziam que o homem e a mulher haviam sido assaltados quando estavam com seus companheiros. A descoberta do relacionamento deles só aconteceu com o passar das horas. E aí as traições foram reveladas.

Ao passear pelas ruas, o cupido se deliciava com os comentários horrorizados dos humanos. Muitos diziam que aquilo era um castigo divino por conta do pecado. Outros, não citavam Deus, mas diziam que nunca mais iriam fazer o mesmo.

Quando a noite chegou, o cupido estava radiante de felicidade. Em seu entender, havia cumprido seu objetivo. Não via a hora de retornar para o lado de Deus para mostrar que valeu a pena sua insistência. E o melhor de tudo: passou até pelo desafio de não cair na tentação.

Aproveitou, então, as últimas horas na terra para se despedir em grande estilo. Entrou em uma boate para comemorar. Dançou e beber ao lado dos humanos. Cerveja, Whisky, Absinto. Quanta coisa maravilhosa. Que sensação gostosa. A cada gole, um novo prazer. A cada nova bebida, menos sensação da realidade. E a noite seguiu.

Não sabia o quanto bebeu naquela despedida terrestre. Não fazia ideia de quantas bebidas experimentou. Da mesma forma, não tinha a menor noção de como tudo aquilo terminou. Só se lembra de abrir os olhos, em um quarto completamente desconhecido. Mexeu os braços e viu que não estava sozinho. Ao virar o rosto, percebeu a silhueta de uma mulher.

- Merda! — foi a única coisa que teve tempo de dizer.

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Raphael Carneiro
Medium Brasil

Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).