Uma partida para a eternidade

Caio Araújo
Medium Brasil
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4 min readApr 20, 2017

Ouço um ruído agudo e contínuo cada vez mais baixo.

Do breu, uma lâmpada foi acesa. Daquelas antigas, de tungstênio, penduradas pelo fio no teto. A mão que iluminou tudo era coberta por pelos brancos. Na verdade, não sei se era uma mão ou uma pata.

Acompanho o movimento do membro peludo e vejo um coelho humanoide. Ele pegou as cartas que estavam à sua frente, observou-as e jogou duas fichas vermelhas sobre a mesa.

Ao lado do coelho, Frida Kahlo franze as sobrancelhas e, apesar de ter um monte proeminente de fichas, dessa vez passou. Ela joga as cartas à mesa, ajeita sua tiara com flores recém-colhidas e olha para mim, como se esperasse que fizesse algo.

– Doutor! Doutor! Pelo amor de Deus, doutor. Vem aqui! Eu acho que ela… eu acho que ela morreu, doutor…

Todos olham para mim. Com um par de dois, eu passo. Tinha quase nenhuma ficha e não entendi bem porque Nietzsche sorria enquanto enrolava seu bigode. Certamente era um blefe.

À direita do Prussiano, uma cadeira assentava garrafas de cerveja sem marca. Entre nós havia uma sombra. Um vulto negro não iluminado.

Não desdenhe da sombra. Ela dobrou as apostas.

Entretanto, o coelho ganhou. Foi um all in.

– Mãe?! Mamãe!

Enquanto ele tenta empilhar, com suas patas peludas e fofinhas, as fichas conquistadas, minhas pupilas dela se adaptavam à iluminação ambiente. As paredes de cimento no reboco tinham algumas infiltrações; uma ou outra goteira pingavam; um jukebox piscava, indicando curto circuito ou coisa parecida.

Nada que pudesse interferir na partida.

Um tapa na mesa chama minha atenção. Era Frida, ajeitando sua tiara e franzindo a sobrancelha. Minha vez de jogar. Um par de dois.

Eu passo. All in. O coelho ganha.

Os apitos ritmados começaram a desacelerar lentamente.

Na minha terceira rodada, a sombra paga o blind. Nietzche percebe que não cabem mais garrafas na cadeira e arremessa a que acabara de esvaziar na cabeça do coelho. Suas orelhas fofinhas amortecem o impacto, mas não impedem que os respingos da cerveja atinjam Frida. Ela passa, apesar da pilha voluptuosa de fichas.

Eu pego duas fichas para colocar na mesa. Com mais um dois, tenho uma trinca.

Nietzsche começa a gargalhar. Seu bigode está pingando gotículas de cerveja.

Eu passo. All in. O coelho ganha.

– Mamãe, e eu ainda vou convencer o papai a vir aqui. Ele disse que talvez venha amanhã. Você sabe como ele é, né?

Pedi para embaralhar. A sombra me passou o maço de cartas. O coelho acendeu um charuto — o que justificava seus dentes amarelados e pelos do rosto não tão brancos. Frida tomou o charuto do coelho e tragou antes que eu pegasse minhas cartas.

Espero minha vez de jogar. Não jogo. Frida olha para mim. Nietzsche pega uma garrafa e abre-a com os dentes.

– Eu trouxe o quadro da Frida pra tirar um pouco dessa cara de hospital. Você gostava… gosta tanto dele.

Frida dá uma baforada tão grande que cobre minha visão por um instante. A fumaça branca é sugada pela sombra.

Nietzsche contempla e não acredita no fenômeno que presencia. Seus olhos parecem não direcionar o olhar a qualquer ponto fixo. Era a última golada de cerveja não descendo para ser eliminada como deveria e, depois de um momento, um soluço.

Nietzsche está muito bêbado. Tão bêbado que aumenta a aposta. A sombra aumenta a aposta. Todos apostam.

Eu tenho um par de dois. Frida tem um cinco e um sete de copas. O coelho tem um par de seis. A sombra tem um par de ases.

Nietzsche tem um full house. O coelho perde.

– Pode falar com ela. Sua mãe sabe que você está aqui.

Era uma convenção permitir sempre, e sob quaisquer circunstâncias, a vitória do coelho. Nietzsche, bêbado, contudo, não se lembrava de muita coisa e, naturalmente, jogou uma garrafa de cerveja nas orelhas do derrotado.

O coelho ficou irritado. Seus dentes estavam bem proeminentes. Os olhos pareciam dois rubis reluzentes.

Frida acendeu seu charuto e caminhou até o jukebox, que começou a tocar La Vie en Rose.

– Vou à recepção fazer o pedido para uma dose maior da medicação dela.
– Certo, doutor. Obrigada.

O coelho atacou a jugular de Nietzsche, que não ficou ferido por não acreditar em nada do que acontecia ali. Entretanto, toda sua cerveja fora derramada sobre mesa, cartas e fichas de pôquer.

A sombra fez a única coisa que lhe cabia: sugou. As vestes coloridas e pintadas a mão de Frida deixaram-na. Nua, entretanto, não ficou constrangida.

Garrafas de cerveja quebravam na testa de Nietzsche antes de serem obliteradas pela altíssima força gravitacional exercida pela sombra. Ao ser sugado, ele disse algo em alemão, que acredito ser um “ah, de novo não”. Mas, como não entendo o idioma, ele poderia estar só dando boas-vindas ao inferno.

E da luz, fez se a escuridão.

– …despedir e assinar a papelada. O irmão dela já está vindo de São Paulo. (…) Tá certo. Olha, eu já cheguei. Quando sair daqui eu te ligo. (…) Beijo. Tchau.

Do breu, uma lâmpada foi acesa. Daquelas antigas, de tungstênio, penduradas pelo fio no teto. A mão que iluminou tudo era coberta por pelos brancos. Na verdade, não sei se era uma mão ou uma pata.

Acompanho o movimento do membro peludo e vejo um coelho humanoide. Ele pegou as cartas que estavam à sua frente, observou-as e jogou duas fichas vermelhas sobre a mesa.

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