Vitor, o carregado

Raphael Carneiro
Medium Brasil

--

Vitor é um menino normal como qualquer outro de sua idade. Ou quase isso. Cabelo ao estilo do jogador de futebol preferido, letras da moda decoradas e visual, na medida do possível, de acordo com a tendência. Ele se comunica bem, sabe tratar bem as pessoas e tem bom senso de humor. Mas não consegue se manter em uma turma de amigos por muito tempo. De mês em mês é deixado de lado, encostado e, até mesmo, evitado.

Tudo começou com um passeio da escola para o interior. A tradicional viagem era o ponto alto do ano letivo. As conversas durante meses se passavam na expectativa do destino. Vitor nunca pôde ir. Doença um ano, falta de dinheiro no outro, um braço quebrado no anterior. As justificativas eram as mais variadas e sempre com conotação pessoal. Até aquela vez em que nada atrapalhou e ele embarcou na inédita excursão com os companheiros. Não se passaram nem duas horas na estrada e, em uma reta, o ônibus virou. Alguns ficaram feridos, nenhuma vítima fatal. Mas a viagem encerrou-se ali.

- Vitor é muito pesado, véi. Foi só ele vir que acabou com tudo — acusou um amigo.

A fama logo se espalhou. Não sem justificativa. A cada encontro com Vitor presente, um imprevisto acabava com tudo. Os amigos, mesmo aqueles que frequentavam a casa, optaram por afastar o garoto. Após rodar alguns meses entre os grupos mais extremos, restou-lhe a solidão.

Uma vizinha percebeu o garoto solitário e tristonho na porta de casa e apontou-lhe o possível caminho da salvação.

- Vamos no culto comigo. Hoje é a sessão do descarrego!

Vitor não tinha nem ânimo para negar. Sem esperança de reverter seu quadro e voltar a ter uma vida comum — como qualquer garoto de sua idade — ele sequer respondeu. Mesmo de cabeça baixa, levantou-se e passou a seguir os passos da vizinha.

No templo, aguardou toda a sessão entre as últimas fileiras. Antes de o pastor dar por encerrada a pregação, a vizinha o puxou pelo braço e o levou para o palco. A pedido do celebrante, cotou sua história longe dos microfones. Era essa a condição para receber a “libertação”.

Já ciente do que Vitor sofria, o pastor segurou firme a cabeça do garoto com a mão esquerda e, com a direita, levou o microfone na direção da boca.

- Sai deste corpo, encosto. Deixa o menino viver livre. Sai deste corpo que não te pert…

Foi então que se ouviu um estouro na rua e todo o bairro ficou sem energia.

--

--

Raphael Carneiro
Medium Brasil

Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).