Vivo não entra
Deitado em uma superfície dura e fria eu penso em você. Mas até que ponto eu posso chamar isso de pensamento? O que acontece depois desse ponto não está em nenhum livro ou estudo. É aqui que as pessoas normalmente encontram o fim da linha.
Estou imóvel, mas ainda sinto dentro de mim uma vontade incontrolável de gritar. Não tenho mais controle sobre isso. Perdi o timing e agora é tarde demais. O que quer que eu estivesse pensando em gritar, ficou entalado no meu peito.
O que eu sinto é culpa. Mas pelo quê? Tento me lembrar, mas meu cérebro parou de funcionar. Ele escorre como óleo de motor. É uma enxurrada de lembranças e sentimentos sendo despejados para fora do meu corpo.
Entre eles, ainda sinto as últimas gotas de felicidade escapando por entre as feridas. A física e a metafórica. Posso dizer que uma levou à outra, como uma sucessão de eventos catastróficos antes do fim.
Estou de olhos fechados, mas ainda vejo você. Não escuto a sua voz, mas também não tenho certeza se você está falando comigo. O que eu escuto é o estalo, alto, próximo dos meus ouvidos, que me leva ao nada. E o nada pode ser bonito. A sensação de flutuar sem direção, livre de todo o peso que carreguei nos últimos anos, é contagiante.
Agora já está chegando ao fim. Vejo a fina linha que me prende aos detalhes. Ela começa a se partir à medida em que sigo em direção ao nada. Seu rosto é apenas uma lembrança distante. Tudo o mais é uma lembrança distante.
Me dou conta que, daqui pra frente, não sei o que vai acontecer. Ninguém sabe. Quem chegou até aqui não contou pra ninguém. Não podemos levar nada a partir daqui. E isso inclui minhas lembranças. Mas, mais importante que isso, é preciso deixar a vida pra trás.
Desse ponto em diante, vivo não entra.