“Ele era um pilantra”: Hunter Thompson sobre a morte de Richard Nixon

Igor Nishikiori
Medo e Delírio

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16 DE JUNHO DE 1994
MEMORANDO DO ESCRITÓRIO DE ASSUNTOS NACIONAIS
DATA: 1º DE MAIO DE 1994
DE: DR. HUNTER S. THOMPSON
ASSUNTO: A MORTE DE RICHARD NIXON
NOTAS SOBRE O FALECIMENTO DE UM MONSTRO AMERICANO… ELE ERA UM MENTIROSO E UM FRACO, E DEVERIA TER SIDO SEPULTADO NO MAR…. MAS ELE FOI, ACIMA DE TUDO, UM PRESIDENTE

“Então, exclamou com potente voz, dizendo: Caiu! Caiu a grande Babilônia e se tornou morada de demônios, covil de toda espécie de espírito imundo e esconderijo de todo gênero de ave imunda e detestável” — REVELAÇÃO 18:2

Richard Nixon se foi e estou pior por causa disso. Ele era algo real — um monstro político saído de Grendel e um inimigo muito perigoso. Ele podia apertar sua mão e te esfaquear pelas costas ao mesmo tempo. Ele mentiu para seus amigos e traiu a confiança de sua família. Nem mesmo Gerald Ford, o infeliz ex-presidente que perdoou Nixon e o manteve fora da prisão, ficou imune das consequências do mal. Ford, que acredita fortemente em céu e inferno, já contou para mais de um dos seus célebres parceiros de golfe que “sei que irei para inferno por ter perdoado Richard Nixon”.

Tive meu próprio relacionamento de sangue com Nixon por muitos anos, mas eu não estou preocupado se isso vai me levar para o inferno com ele. Já estive lá com aquele bastardo, e sou uma pessoa melhor por causa disso. Nixon tinha a habilidade ímpar de fazer seus inimigos parecerem honrados, e nós criamos um forte senso de fraternidade. Alguns dos meus melhores amigos odiaram Nixon a vida inteira. Minha mãe odeia Nixon, meu filho odeia Nixon, eu odeio Nixon, e é este ódio que tem nos unido.

Nixon riu quando contei isso para ele. “Não se preocupe”, ele disse. “Eu também sou um homem de família e sentimos a mesma coisa sobre você.”

Foi Richard Nixon quem me levou para a política e, agora que ele se foi, me sinto sozinho. Ele era um gigante à sua maneira. Enquanto Nixon estava politicamente vivo — e ele estava, até o fim da linha — nós podíamos sempre ter a certeza que encontraríamos nosso inimigo na imoralidade. Não havia necessidade de procurar em outro lugar pelo maldito bastardo. Ele tinha os instintos de luta de um texugo encurralado por uma matilha. O texugo rola de costas e solta o cheiro da morte, que confunde os cachorros e os atiça para o tradicional massacre. Mas normalmente é o texugo quem faz o massacre. É uma besta-fera que luta melhor de costas: rolando pela garganta do inimigo e agarrando-o pela cabeça com suas quatro garras.

Esse era o estilo Nixon — e, caso você tenha esquecido, ele te mataria só para dar uma lição aos outros. Texugos não lutam limpo, Bubba. Foi por isso que Deus criou os dachshunds.

Nixon era um marinheiro, e ele deveria ter sido sepultado no mar. Muitos dos seus amigos eram pessoas do mar: Bebe Rebozo, Robert Vesco, William F. Buckley Jr., e muitos deles queriam um sepultamento naval completo.

Porém, há pelo menos duas maneiras de se fazer isso, e a família de Nixon se opôs veementemente a ambas. No estilo tradicional, o corpo do presidente seria embrulhado e costurado em lona de maneira frouxa e despejado da popa de uma fragata a pelo menos 100 milhas da costa e no mínimo mil milhas ao sul de San Diego, assim o mar jamais traria o corpo de volta ao solo americano de forma reconhecível.

A família optou pela cremação até eles serem avisados sobre as potenciais e onerosas implicações da queima estritamente privada e sem testemunhas do corpo de um homem que, apesar de tudo, foi presidente dos Estados Unidos. Perguntas constrangedoras poderiam ser levantadas, com alusões obscuras a Hitler e Rasputin. Algumas pessoas poderiam entrar com ações judiciais para botar as mãos no prontuário odontológico. Longas batalhas na Justiça seriam inevitáveis — alguns com excêntricos liberais reclamando sobre o corpo de delito e habeas corpus e outros com grandes companhias de seguros tentando não pagar os benefícios. De qualquer maneira, uma orgia de ganância e desonestidade certamente traçaria qualquer pista de que Nixon de alguma maneira teria falsificado sua própria morte ou que teria sido congelado e transferido para a China continental por interesse dos fascistas chineses.

Isso também faria o jogo daqueles milhões de patriotas auto-estigmatizados como eu que já acreditam nestas coisas.

Se as pessoas certas estivessem a cargo do funeral de Nixon, seu caixão seria lançado num daqueles canais abertos de esgoto que desaguam até o oceano ao sul de Los Angeles. Ele era um canalha e um presidente ingênuo e tagarelante. Nixon era tão pilantra que precisava de serviçais para ajudá-lo a vestir suas calças toda manhã. Até seu funeral foi ilegal. Ele era esquisito na maneira mais profunda. Seu corpo deveria ser queimado em uma lata de lixo.

Estas são palavras pesadas para um homem recentemente canonizado pelo presidente Clinton e pelo meu velho amigo George McGovern — mas já escrevi coisas piores sobre Nixon, muitas vezes, e os registros mostrarão que eu o chutei repetidamente muito antes dele cair. Eu bati nele como um cachorro louco sarnento a cada oportunidade, e tenho orgulho disso. Ele era a escória.

Que não haja erros nos livros de história sobre isso. Richard Nixon era um homem mau — mau no sentido em que apenas aqueles que acreditam na existência física do demônio podem entender. Ele era completamente sem ética ou moral ou qualquer sentido básico de decência. Ninguém confiava nele — exceto talvez os chineses stalinistas, e os historiadores honestos o lembrarão principalmente como um rato que fica lutando para retornar ao navio.

É apropriado que o último gesto de Richard Nixon ao povo americano seja uma série ilegal de disparos de canhões que destruiu a paz em um bairro residencial e perturbou diversas crianças permanentemente. Vizinhos também reclamaram do enterro sem permissão no jardim da antiga casa de Nixon, o que é descaradamente ilegal. “Isso vai tornar toda a vizinhança um imenso cemitério”, disse um deles. “E isso vai foder com o senso de valores dos meus filhos.”

Muitos ficaram indignados com os morteiros — mas eles sabiam que não havia nada que pudessem fazer sobre isso — não com o atual presidente sentado a 45 metros dali e rindo com o rugido dos canhões. Foi a última guerra de Nixon, e ele ganhou.

O funeral foi um espetáculo melancólico, lindamente encenado para a TV e sagazmente dominado por políticos ambiciosos e revisionistas históricos. O reverendo Billy Graham, ainda ágil e eloquente aos 136 anos, foi chamado para ser o orador, mas ele rapidamente ficou na sombra dos dois candidatos republicanos das eleições de 1996: senador Bob Dole, do Kansas, e o governador Pete Wilson, da Califórnia, que sediou formalmente o evento e viu os números das pesquisas serem mutilados quando ele foi tirado do palco por Dole, que de alguma forma se agarrou à terceira opção do plantel e proferiu um auto-elogio tão descarado que até desabou em lágrimas no final.

As ações de Dole decolaram como um foguete e o levaram à dianteira da candidatura republicana para 1996. Wilson, falando em seguida, soava como uma imitação de Engelbert Humperdinck e provavelmente não será nem reeleito a governador da Califórnia em novembro.

Os historiadores foram fortemente representados pelo porta-voz número dois, Henry Kissinger, secretário de Estado de Nixon e ele próprio um zeloso revisionista com muitos eixos para moer. Ele deu o tom do dia com um sentimental e espetacularmente egocêntrico retrato de Nixon como alguém mais santo que sua mãe e um presidente com diversas realizações divinas — muitas delas reunidas em segredo por Kissinger, que veio à California como parte de uma imensa turnê para divulgar seu novo livro sobre diplomacia, genialidade, Stalin, H.P. Lovecraft e outras grandes mentes do nosso tempo, incluindo ele mesmo e Richard Nixon.

Kissinger foi apenas um entre tantos historiadores que de repente viram em Nixon mais do que a soma de suas esquálidas partes. Ele parecia dizer que a história não precisaria absolver Nixon, porque ele mesmo já fez isso em um imenso ato de bondade e arrogância enlouquecida que já o torna supremo ao lado de outros “super-homens” nietzschianos como Hitler, Jesus, Bismack e o imperador Hirohito. Esses revisionistas catapultaram Nixon ao status de Imperador César americano, afirmando que quando a história definitiva do século 20 for escrita, nenhum outro presidente chegará perto de Nixon em estatura. “Ele fará Roosevelt e Truman parecerem anões”, segundo um aluno da Universidade de Duke.

Tudo não passa de baboseira, é claro. Nixon não foi mais um santo do que um grande presidente. Ele foi mais um Sammy Glick do que um Wiston Churchill. Ele foi um pilantra aproveitador e um impiedoso criminoso de guerra que bombardeou e matou mais pessoas em Laos e no Cambodja do que todas as perdas do exército americano durante a Segunda Guerra Mundial, e ele negou isso até o dia de sua morte. Quando estudantes da Universidade do Estado de Kent, em Ohio, protestaram contra o bombardeio, ele convenientemente os deixou serem atacados e brutalizados por tropas da guarda nacional.

Algumas pessoas irão dizer que palavras como escória e podre são incorretas segundo a objetividade jornalística — o que é verdade, mas eles não entenderam o ponto. Em primeiro lugar, foram os pontos cegos construídos pelas regras e dogmas da objetividade jornalística que permitiram Nixon chegar à Casa Branca. Ele parecia tão bom no papel que você poderia quase votar nele de olhos fechados. Ele parecia tão americano, tipo um Horatio Alger, que isso o permitiu penetrar através das rachaduras da objetividade jornalística. Você precisa de um olhar subjetivo para ver Nixon claramente, e o choque de reconhecimento era quase sempre doloroso.

A ascensão meteórica de Nixon da linha do desemprego até a vice-Presidência em curtos seis anos jamais aconteceriam se a TV tivesse chegado 10 anos antes. Ele escapou com seu desprezível discurso “Meu cão Checkers” em 1952 porque a maioria dos eleitores o ouviram no rádio ou leram sobre isso nas manchetes dos jornais locais republicanos. Quando Nixon finalmente teve que enfrentar as câmeras de televisão para os debates da campanha presidencial de 1960, ele apanhou como uma mula. Mesmo os mais ardorosos republicanos ficaram chocados com sua persona cruel e incompetente. Interessante como a maioria das pessoas que ouviram o debate acharam que Nixon ganhou. Mas a crescente audiência televisiva o enxergou igual a um vendedor de carros usados mentiroso, e assim eles foram às urnas. Foi a primeira vez em 14 anos que Nixon perdeu uma eleição.

Quando ele chegou à Casa Branca como vice-presidente aos 40 anos, ele era um jovem esperto em ascensão — um monstro louco e cheio de confiança saído das entranhas do sonho americano com o coração cheio de ódio e um presunçoso desejo de se tornar presidente. Ele venceu todas as disputas que concorreu e, como um nazista, pisou em cada um de seus inimigos e até mesmo em alguns de seus amigos.

Nixon não tinha amigos, exceto George Will e J. Edgar Hoover (e ambos o abandonaram). Foi a morte de Hoover em 1972 que levou Nixon para sua queda. Ele se sentiu desamparado e sozinho sem Hoover. Ele não tinha mais acesso ao diretor e seu medonho Banco de Arquivos Pessoais de praticamente todo mundo de Washington.

Hoover foi o braço direito de Nixon, e quando este morreu, Nixon soube como Lee se sentiu quando Stonewall Jackson foi morto em Chancellorsville. Isso expôs as fraquezas de Lee e levou ao desastre de Gettysburg.

Para Nixon, a perda de Hoover levou inevitavelmente ao desastre de Watergate. Isso significava contratar um novo diretor — que acabou sendo um infeliz bajulador chamado L. Patrick Gray, que abriu o bico como um porco em óleo quente na primeira vez que levou uma pressão de Nixon. Gray entrou em pânico e apontou o dedo para o Conselheiro da Casa Branca, John Dean, que se recusou a virar bode-expiatório e, em vez disso, botou a culpa em Nixon, que caiu na armadilha como um rato pelo implacável e vingativo testemunho de Dean e ficou aos pedaços em frente aos nossos olhos pela TV.

Isto é Watergate, em uma casca de noz, para pessoas com sérios problemas de déficit de atenção. A verdadeira história é muito maior e pode ser lida como um compêndio sobre a traição humana. Eles eram todos uns lixos, mas apenas Nixon ficou livre e viveu para limpar seu nome. Ou pelo menos foi isso que Bill Clinton disse — e ele é, apesar de tudo, o presidente dos Estados Unidos.

Nixon gostava de lembrar as pessoas sobre isso. Ele acreditava nisso, e é por isso que ele caiu. Ele não era apenas um pilantra, mas um idiota. Dois anos após deixar o cargo, ele disse à um jornalista de TV que “se o presidente faz, não pode ser ilegal.”

Merda. Nem mesmo Spiro Agnew foi tão burro. Ele era um bandido batedor de carteiras com a moral de uma fuinha em alta velocidade. Mas ele foi vice-presidente de Nixon por cinco anos, e só renunciou quando foi pego em flagrante aceitando subornos sobre sua mesa na Casa Branca.

Diferente de Nixon, Agnew não argumentou. Ele deixou o cargo e voou de noite para Baltimore, onde ele compareceria na manhã seguinte ao Tribunal Distrital dos Estados Unidos, que o permitiu ficar em liberdade por suborno e extorsão em troca de uma confissão de culpa (sem contestação) por sonegação fiscal. Depois disso, ele virou uma celebridade, jogou golfe e tentou adquirir uma distribuidora de cerveja Coors. Ele nunca falou com Nixon novamente e foi um convidado indesejado no funeral. Falaram para ele que isso seria rude, mas ele compareceu mesmo assim. Era como um daqueles Imperativos Biológicos, tal qual um salmão nadando contra uma cachoeira para desovar antes de morrer. Ele sabia que era uma escória, mas isso não o incomodava.

Agnew era o Joey Buttafuoco da administração Nixon, e Hoover era seu Calígula. Eles eram brutais e insanos degenerados, piores que qualquer matador de aluguel saído de O Poderoso Chefão, e ainda assim eles eram os homens de confiança de Richard Nixon. Juntos eles definiram sua Presidência.

Seria fácil esquecer e perdoar Henry Kissinger por seus crimes, assim como nós perdoamos Nixon. Sim, nós podíamos fazer isso — mas isso seria errado. Kissinger era um pequeno demônio, um vigarista de classe mundial com um leve sotaque alemão e um olhar aguçado para pontos fracos no topo das estruturas de poder, e Nixon era um desses, e Super K o explorou sem perdão, até o final.

Kissinger completou o quarteto: Agnew, Hoover, Kissinger e Nixon. Um foto em grupo desses pervertidos diria tudo o que precisamos saber sobre a Era Nixon.

O espírito de Nixon estará conosco pelo resto de nossas vidas — seja eu ou Bill Clinton ou você ou Kurt Cobain ou Bishop Tutu ou Keith Richards ou Amy Fischer ou a filha de Boris Yeltsin ou o irmão alcóolatra de 16 anos da sua noiva com seu cavanhaque trançado e toda sua vida como uma nuvem passando em sua frente. Não é uma questão de geração. Você nem precisa saber quem é Richard Nixon para ser vítima de seu espírito nazista.

Ele envenenou nossa água para sempre. Nixon será lembrado como um clássico caso de um homem esperto cagando no seu próprio ninho. Mas ele também cagou no nosso ninho, e este será o crime pelo qual a história queimará em sua memória como uma marca. Por desgraçar e degradar a Presidência dos Estados Unidos, por fugir da Casa Branca como um vira-lata doente, Richard Nixon partiu o coração do Sonho Americano.

É o próprio Nixon quem representa aquele sombrio, violento e incurável lado violento do caráter americano que quase todo país do mundo aprendeu a temer e desprezar. Nosso presidente boneca Barbie, com sua esposa boneca Barbie e seus filhos boneca Barbie. é também a resposta americana ao monstruoso Mr. Hyde. Ele fala aos lobisomens dentro de nós; ao tirânico, ao impostor charlatão que se torna algo impronunciável, cheio de garras e verrugas sangrentas, em noites em que a Lua se aproxima demais…

Ao chegar a meia-noite em Washington, uma besta de olhos avermelhados com pernas humanas e uma gigante cabeça de hiena rasteja para fora da janela de seu quarto na asa sul da Casa Branca e salta 15 metros acima do gramado… para por um momento para estrangular o cão de guarda e então corre para a escuridão… em direção a Watergate, rangendo os dentes com luxúria, galopando através dos becos por detrás da avenida Pennsylvania e tentando desesperadamente se lembrar qual das 400 sacadas é a do quarto de Martha Mitchell.

Ah… pesadelos, pesadelos. Mas estou só brincando. O presidente dos Estados Unidos nunca agiria dessa maneira estranha. Pelo menos não durante a temporada de futebol americano. Mas como os eleitores reagiriam se soubessem que o presidente dos Estados Unidos estava, segundo o editoral do New York Times de 12 de outubro, presidindo uma “complexa, poderosa e sinistra operação com apoio da Casa Branca e da organização da campanha de Nixon… envolvendo sabotagem, falsificação, roubo de documentos confidenciais, espionagem dos candidatos democratas e de seus familiares e esforços permanentes para criar bases para possíveis chantagens e intimidações”?

Original

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