Os desafios de realizar testes de usabilidade em zonas rurais

Crícia
Senior Mega
Published in
7 min readDec 5, 2019

Pouco se fala dos desafios de realizar testes de usabilidade em zonas rurais, então neste artigo vou elencar alguns dos principais desafios que encontrei ao realizar validação de uma jornada proposta para nosso aplicativo voltado para o Campo, o Mob Agro.

#ParaCegoVer —Alguns camponeses realizando colheita em uma plantação.

Nos últimos meses atuei em um projeto de reestruturação de um dos nossos aplicativos que se chama Mob Agro. Esse produto foi prototipado por um de nossos antigos colaboradores, o Andrey Duarte, com a sua saída fiquei responsável pela etapa de validação da jornada de identificação de doenças e pragas.

Inicialmente, realizei um entendimento com os envolvidos nos projetos e também assisti a gravação feita por um funcionário de um de nossos clientes que nos ajudou explicando como realizavam esse processo já que não fizemos pesquisa de descoberta para esse produto, devido algumas decisões estratégicas de negócio. Após a compreensão desse projeto, iniciei o planejamento dos testes de usabilidade. Caso você ainda não conheça o que é um teste de usabilidade e como ele funciona, recomendo ler os seguintes artigos:

Para os testes gerei um link no Adobe XD do protótipo da primeira versão da jornada e levamos um tablet da empresa, no entanto por conta da internet nas fazendas em todos os testes tivemos dificuldade com o link, mesmo utilizando a versão mobile do Adobe XD, por isso testamos na versão inicial compilada pelo desenvolvedor (que estava estudando a linguagem). Apesar de não termos planejado isso, foi muito interessante que os usuários puderam testar como seria a maior parte das interações e pudemos validá-las com eles.

#ParaCegoVer — Jornada Principal do Mob Agro, onde é realizado a identificação das doenças e pragas de uma determinada planta, localizada em um determinado talhão.

Ao longo do planejamento e execução destes testes, me deparei com alguns desafios e estes trouxeram diversos aprendizados. Abaixo listei os três principais:

#1 Recrutamento: O triste desafio de falar com o usuário final

Durante a etapa de planejamento dos testes, estabeleci que meu usuário final seria os Inspetores de Doenças e Pragas, os quais são as pessoas responsáveis pelo trabalho de controle e monitoramento das doenças e pragas presentes em determinadas plantas, de uma ou mais fazendas. E o meu maior desafio foi conseguir falar com esses usuários. Para nós, era crucial testar a jornada proposta com as pessoas que realmente realizariam o processo no aplicativo, na realidade e contexto deles. Isso quer dizer que precisávamos ir até as fazendas e realizar os testes de usabilidade no campo e esse era um grande desafio, devido a distância e condições de trabalho dos inspetores.

Por este motivo, a minha primeira abordagem foi entrar em contato com pessoas chaves em nossos clientes (TI, Agrônomo e Gestores) e explicar o que precisávamos realizar (o teste de usabilidade) e a importância dessa atividade para que o desenvolvimento desse produto fosse baseado nos Inspetores de Doenças e Pragas.

Confesso que obtive pouquíssimo sucesso inicialmente e os retornos que consegui eram de pessoas que acreditavam que conseguiriam me passar tudo sem precisarmos ir até às fazendas para falar com os Inspetores. É claro que eles tinham um motivo para isso, ? Então busquei compreender isso e entendi que é muito difícil parar um Inspetor já que normalmente as fazendas não possuem mais que dois profissionais. E como eles realizam seu trabalho em campo, nas quadras, a condição climática também tem alto impacto e por isso buscam realizar o trabalho com rapidez, para evitar que deixem de realizar a quantidade média diária por conta de alguma chuva ou por conta do sol extremamente quente.

Sabendo desse impeditivo, resolvi pedir auxilo para a nossa Gerente Comercial, que entrou em contato com alguns destes clientes e explicou que precisávamos entender a realidade dos nossos clientes e como seria importante para a evolução do produto. Sugerimos também que caso não fosse possível pararmos um Inspetor, nós observaríamos apenas como eles realizavam suas atividades. Com essa abordagem, conseguimos visitar 4 clientes e realizamos os 5 testes de usabilidade com nossos usuários finais. Na maioria dos testes abordamos os usuários nas quadras mesmo. Não foi um trabalho simples, mas foi extremamente importante para vermos como tínhamos falhado miseravelmente durante a etapa de ideação.

Digo que não foi fácil, pois as fazendas são muito grandes e na maioria dos testes eu precisei encontrar os Inspetores em meio centenas de plantações, enquanto eles estavam realizando suas atividades de inspeções nas plantas. Então tive que ter todo um cuidado com a abordagem e com a explicação do teste.

O que aprendi com isso, foi que apesar do recrutamento ser cansativo e um pouco frustrante, é extremamente necessário realizar o teste de usabilidade com o usuário final. E para isso, é bom sempre rever a abordagem e buscar pessoas chaves para ajudar nessa etapa.

#2 Contexto: Sua interface precisa considerar todo o contexto do usuário

Durante a fase inicial desse projeto não foi realizado nenhuma pesquisa de descoberta e isso teve alguns impactos que somente observamos a partir dos testes de usabilidade.

Durante o teste de usabilidade descobrimos que nossos usuários realizavam cerca de 40-50 inspeções por quadra/talhões e no dia chegavam a realizar 3–4 quadras/ talhões por dia. Além disso os inspetores normalmente enfrentavam desafios como a locomoção até as quadras/ talhões assim como, o sol muito quente. Outro ponto que coletamos foi que apenas um de nossos usuários tinha familiaridade com tecnologia. Isso evidenciou que a maioria deles realizavam todo o processo em uma ficha de papel, como a ficha apresentada abaixo:

#ParaCegoVer — Ficha de Inspeção em papel,baseada no padrão Verbena.

Todas essas descobertas foram essenciais para os ajustes na interface já que inicialmente não havíamos considerado essa quantidade de inspeções, nem os desafios relacionados às condições de trabalho e escolaridade. E isso trouxe uma série de modificações no fluxo do usuário no aplicativo.

Imersos nos nossos escritórios, muitas vezes nos esquecemos ou não imaginamos como é o contexto das pessoas que vão utilizar nossos produtos. E isso pode ser determinante para o sucesso ou fracasso de um produto. Além disso, por diversas vezes não consideramos os impactos das nossas projeções nas pessoas e quando vamos a lugares externos, principalmente em zonas rurais, nos deparamos com situações adversas que, por não cogitarmos o contexto, podemos estar, tornando os dias dessas pessoas ainda mais difíceis.

Deixo uma reflexão: Será que seu design está considerando o contexto dos seus usuários? Será que seu design facilitará a vida de seus usuários ou as tornará ainda mais complicada? Você já conheceu quais são os principais desafios dos seus usuários para o produto que está criando, no momento?

#3 Linguagem: Cuidado com a intimidação

No primeiro teste que realizei, fui até a quadra que estava uma das inspetoras e ela não foi avisada pelo seu colega de trabalho por conta de não ter internet no local que estava inspecionando. Ao chegar, percebi que ela ficou intimidada e acanhada. Então resolvi antes do teste pedir para ela me contar um pouquinho como era um dia comum dela. Dessa forma, ela começou a se abrir e contar seu dia e logo surgiu outras conversas sobre sua vida, sobre seus filhos e sobre seu antigo trabalho.

Apesar de ao longo do teste ela demonstrar certa preocupação e nervosismo, principalmente porque eu estava observando-a utilizar um aplicativo em um tablet — algo super novo para ela — eu senti que a abordagem e a linguagem foi essencial para que eu tivesse espaço para poder realizar o teste de usabilidade.

Um dos maiores aprendizados que tive foi que antes de nos preocuparmos em atingir os objetivos dos testes, antes dos insights e antes de nos preocuparmos com os dados, precisamos lembrar que estamos falando com pessoas.

Pessoas essas que tem uma história, tem desafios, medos e também estão, assim como nós, fazendo o trabalho delas. E por esse motivo, precisamos nos atentar para a forma como nos comunicamos com elas. Cuidado também com a linguagem corporal, ela transmite muito sobre nossos objetivos e nossa atenção.

Então sempre que falar com um usuário em seu teste de usabilidade, lembre que além do seu trabalho (de coletar dados ou insights), você está conversando com uma pessoa e ela necessita ser ouvida e respeitada.

Considerações finais

Ir a campo é desafiador, mas é também recompensador pela quantidade de aprendizados e experiências que você adquire. Realizar estes testes de usabilidade em uma Zona Rural, me lembrou também da necessidade de sairmos dos escritórios e de conhecermos as histórias das pessoas que utilizam nossos produtos, assim como entender os impactos que nossas projeções podem causar à realidade dos nossos usuários.

#ParaCegoVer — Fotos das plantações de laranjas e de uma laranja partida, todas tiradas durante a visita a alguns de nossos clientes.

Ah, quase esqueci de mencionar! Que outra coisa bem bacana de realizar algum tipo de pesquisa em Campo, é poder apreciar as belezas naturais existentes nas redondezas das fazendas e também poder experimentar uma fruta maravilhosa, como esta da imagem ao lado.

Para finalizar,te convido a sempre que idealizar um produto ou serviço envolver os seus usuários na etapa inicial para que estes contemplem as reais necessidades e desafios das pessoas que os utilizarão.

E você, tem alguma experiência de alguma pesquisa realizada em lugares externos ao seu escritório? Quais foram seus principais desafios e aprendizados?

Deixe aqui seus comentários e se essa publicação te ajudou de alguma forma, por favor me deixe saber :)

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Crícia
Senior Mega

Pesquisadora - UX Researcher, Facilitadora e Consultora de Projetos Socioculturais https://linktr.ee/cricia.silva