A culpa do teatro

Daniel Muñoz
Mel de Vespas
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4 min readAug 14, 2019

— Eu não me lembro!

— Como você pode não se lembrar?

Uma pergunta tola, afinal esquecer é o processo natural do nosso cérebro. São tantas as coisas que precisam acontecer corretamente para nos lembrarmos de algo. O menor dos desvios no plano da orquestra da nossa mente faz com que a sonata se apague completamente, sem a menor chance de ser revisada ou reproduzida num outro momento.

Foi até cruel da parte dele me fazer esta pergunta, afinal ele sabe dos tantos desvios que vivemos, ora, as chamas do inferno já batem no portão de casa. Se havia planos de contingência para os tempos ruins que poderiam vir, o maestro da minha mente não pôde prever que tantos erros sucessivos viriam a acontecer.

Olhando para a situação como está, é como se não houvesse nada que pudesse salvar o momento. Não há nem como parar a música e recomeçar, aliás, nem parar para pedir desculpas parecia apropriado. Como uma orquestra sem talento, a nossa vida evoluiu para o ponto em que a única coisa que poderíamos fazer em relação a plateia que nos assistia era ter evitado iniciar o concerto.

Acho que por isso não me lembro mais de nada, pois minha cabeça parece uma sala de música em que nada mais está afinado ao que deveria. É impossível praticar, entender melodias ou até mesmo pedir uma afinação no meio da bagunça dos timbres perdidos e vagantes pela sala, que ainda por cima não os deixa sair para o mundo.

Como eu poderia lembrar se já não lembrava a última vez que pude arrumar as partituras do meu pensamento? Como eu poderia saber lidar com mais uma nota dissonante que viria na nossa direção? Afinal já faz mais de um ano da primeira vez que pensei que as coisas iam tão mal que não podiam piorar.

Mas o mundo é infinito nas suas possibilidades, para as bonanças e tragédias, e a valsa triste da nossa vida não podia nem se formar em meio à chuva de mal agouros que chegou a nós.

Ele queria apenas que eu lembrasse aonde estava nosso último resguardo, nossa última chance de nos salvar da vida que fugia pelas janelas quebradas do teatro. Como eu pude esquecer onde estavam as últimas moedas? Os últimos vestígios de chance para tentar de novo girar a roleta do jogo de azar que virou a existência humana.

— Eu não durmo a dias pensando que tudo não podia ser pior, agora que piorou, como posso pensar que minha cabeça não sabe mais o que faz? O seu erro talvez tenha sido confiar em mim!

— Talvez tenha sido este o erro mesmo!

E com razão, como confiar num maestro que não sabe reger a sua orquestra?

Só que na verdade os erros vieram sucessivos, e não foram nem meus, nem dele, mas de todo mundo. Tudo deu errado para nós, mas tudo dá certo para outros, afinal é assim que funciona a vida, como eu já disse, como um jogo de azar. Não cabia mais destilar raiva pelos participantes desta tentativa frustrada.

Pois o que ninguém tinha visto, é que aquele teatro já era uma ruína quando entramos, não havia a menor condição de se tocar ali. Agora é tarde, nós tentamos fazer o show continuar e o povo estava lá para ver o concerto. Não há desculpas neste ponto, porque não existe culpa a se dar para ninguém.

Naquela última olhada que nos demos, sabíamos que juntos fizemos tudo que podíamos e que juntos teríamos que admitir, que a ópera daquela vida, não devia nem ter começado.

Nada a se fazer agora…

Talvez possamos tentar um jazz, uma nova composição pode dar nova vida às nossas cordas, sopros e percussões. Pelo menos dessa vez precisamos ter certeza que vamos treinar e montar o nosso espetáculo em algum lugar onde possamos realizar o concerto, do início ao fim.

Entre tudo que poderíamos fazer, decidimos culpar o teatro e seguir montando as nossas sonatas, buscando um espaço de harmonia.

Era melhor do que desistir.

Céu nublado e iluminação de rua clássica

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Daniel Muñoz
Mel de Vespas

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan