Dona Luzia e as regras do mercado

Daniel Muñoz
Mel de Vespas
Published in
4 min readJul 17, 2019

Antes de ser Dona, ela já era Luzia. A vida inteira se acostumou com a dificuldade em conseguir juntar os dinheirinhos que precisava para fazer suas pequenas coisas, ainda que tivesse gostos singelos. Queria no máximo algumas mantas para o sofá, uma ou outra imagem de santo e a chance de fazer comida para sua filha.

Acontece que o que sua filha mais gostava entre o que ela cozinhava, era a sua famosa carne de panela. O complicado era que carne, por mais simples que possa ser, sempre foi uma das coisas mais caras que se pode comprar em um mercado. O dono daquele pequeno mercado de bairro que Luzia frequentava tinha uma regra que dificultava ainda mais as chances da filha de Luzia ter a sua carne, ele só vendia as peças de carne inteiras.

Uma sorte veio alguns dias antes da sua filha fazer dez anos de idade, quando o dono do mercado decidiu que iria vender as peças de carne que recebia em partes. Portanto Luzia teria a chance de pedir apenas meia peça, podendo fazer carne de panela o suficiente para sua filha, com o dinheirinho que tinha para pagar.

Assim o fez, em uma surpresa de aniversário, Luzia ofereceu a sua filha, com todo o amor que poderia deixar em uma panela, aquele almoço que ela não veio a esquecer.

Os tempos passaram, e as coisas melhoraram muito, Luzia conseguiu mais dinheirinhos com seus pequenos trabalhos, e sua tão sofrida aposentadoria. Sua filha cresceu, casou e lhe deu a sua primeira netinha. Foi tanto sucesso, que aquela criança cresceu num mundo tão distante do que Luzia viveu, tornando difícil até que a criança pudesse gostar de algo que ela fazia.

Porém, talvez por capricho de algum fator genético, a netinha era apaixonada pela carne de panela da avó. Tantas vezes que Luzia ia no mercado, que já era gerenciado pelo filho do dono que conhecera, comprar até peças inteiras de carne para cozinhar para sua netinha. Afinal, os tempos haviam melhorado.

Luzia cresceu com a ideia de que não podia se acostumar com as coisas, afinal o mundo que ela viu no início do século passado, era um mundo onde sonhos não podiam crescer muito, pois sufocavam aqueles que sonhavam.

Só que a vida foi melhorando tanto que Luzia foi se deixando levar pela fé de que o mundo de sua filha e de sua neta havia mudado. Sonhos não eram mais tóxicos e as pessoas podiam voltar a pensar em fazer de suas vidas fontes de felicidade, além das dores e culpas de suas doutrinas.

E por muitos anos assim o foi…

Só que antes que Luzia se esquecesse que a Terra era redonda, o mundo deu voltas…

Vieram anos de recessão, os dinheirinhos passaram a já não mais valer como antes. Então sua filha, que chegava na idade que ela tinha quando se aposentou, não mais poderia parar de trabalhar nos seus dois empregos, pois não havia mais os luxos de pensões do governo.

Luzia tentava não olhar isso com mal olhos, afinal o desemprego era tanto que na verdade deveria ser feliz que sua filha, embora cansada, tinha formas de ganhar dinheiro para se sustentar. A netinha, já havia crescido e dava os primeiros passos para a vida adulta, havia estudado e se formado da melhor maneira, agora só faltava achar o seu emprego formal de qualidade, que mudaria a sua vida. Já estava mais de três anos na busca, mas ouvia de todos que precisava apenas perseverar, e deve ser verdade, por que alguém haveria de mentir sobre isso?

Pelas ruas só se falava de ser criativo e moderno para conseguir atingir mundos muito maiores do que aqueles que seus pais e avós sequer sonhavam. Só que aquela neta já estava cansada desta busca por uma perfeição que exigia dela uma fé num mundo que giraria de novo a seu favor.

O que ela mais queria, quando fosse finalmente voltar a visitar a sua avó, que já estava velhinha, era a chance de relembrar os seus tempos de infância. Afinal, em seus pais enxergou uma visão sobre trabalho que queria para ti, onde as oportunidades vinham para quem as buscava.

Já Luzia queria dar a sua neta uma surpresa de acalanto, e por mais que os tempos eram apertados, pensou que fazer a sua famosa carne de panela poderia animar a netinha para voltar para o mundo, e buscar o seu espaço.

Correu para a o mercado com tudo que tinha na sua conta bancária, na forma daquele cartão magnético. Infelizmente, pelo preço da carne, não daria para comprar uma peça inteira mais. Se fosse criativa conseguiria fazer com que meia peça rendesse bastante felicidade para a sua netinha.

— Gostaria de meia peça desta daqui, por favor.

— Ah Dona Luzia, infelizmente não podemos mais vender assim, agora só peça inteira.

— Verdade?

— Sim, o novo dono do mercado pensa que é melhor assim, são as regras do mercado, me desculpe.

Só restou a Luzia pedir desculpas a neta, que nem havia lhe pedido nada, por não ter conseguido oferecer uma carne de panela que a faria ter um mundo de esperanças.

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Daniel Muñoz
Mel de Vespas

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan