Bonequinhos de barro

Daiane Jardim
Melancia
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3 min readSep 26, 2020

Há algumas semanas me veio à mente uma memória bem antiga. Porém, não sei porquê, eu quis guardar esse fio de recordação dentro de uma caixinha.

Eu tinha 4 anos, talvez mais, talvez menos, e fazia bonequinhos de argila. Nessa época eu vivia em uma fazenda na minha cidade natal no interior de São Paulo. Era uma casa de tamanho modesto, com um jardim imenso, e depois da cerca de arame havia um pasto muito grande com uma grama verde extensa.

Quando fazia frio eu gostava de ver aquele campo coberto de pequenos gelinhos que viravam gotículas horas depois. Pegava as folhas verdes com meus dedinhos gordos e tremia de frio.

Havia uma elevação de argila no quintal. Era um dia qualquer, chovia bastante e fazia muito frio. Minha mãe foi lá fora e pegou um pouco da argila em um pote.

Dentro de casa havia um fogão de lenha grande, pintado com cera vermelha. Ali com a minha mãe moldamos pequenas pessoas de barro e colocamos sobre o fogão, perto da madeira que queimava.

Não havia luz no momento, algum problema com a eletricidade devido a tempestade. O cheiro do lampião impregnava o ar. O fogão de lenha emitia seu brilho laranja e deixava a cozinha quentinha.

Enquanto modelava os bonecos, ouvia quietinha os estalinhos que a madeira queimada emitia, junto de pequenas faíscas. O cheiro da querosene entrava pelo meu nariz gelado e expirava como uma fumacinha branca que eu achava graça.

Eu gosto do frio, acho que sempre gostei na verdade, e observar a fumaça saindo do meu nariz gelado ainda me causa cócegas no coração.

A meia luz do lampião e do fogão de lenha, ouvia minha mãe contar que quando ela era criança não tinha brinquedos como eu podia ter agora. Ela tinha que fazer os próprios brinquedos e para isso usava milho, madeira, e transformava tudo através da imaginação.

Eu ouvia tudo quietinha enquanto fazia os bonequinhos. Deslizava meu dedo e tentava formar naquela bola de barro algo que parecesse um corpo com perninhas. Enquanto isso meu pai deixava as palmas da mão esticadas sobre o fogão para aquecer as mãos calejadas.

Embora eu sempre tivesse medo de tempestades e do escuro, para mim aquele dia estava sendo muito bom. E, até hoje quando tenho essa memória, consigo sentir o calor do fogão à lenha, o cheiro do querosene do lampião e os pequenos bonecos secando pouco a pouco.

Observo da minha janela que o frio voltou. O campo já não existe mais, e à minha frente há somente uma construção francesa em estilo alemão. Mas se eu fechar os olhos e respirar bem fundo, vou sentir o abraço quente daquele dia que eu aprendi pela primeira vez a brincar com argila e a agradecer pelos meus brinquedos.

E, assim, nos dias mais frios talvez eu me recorde novamente dessa memória que tanto me aquece a alma.

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Um dia me disseram que eu fui feita do barro

Moldada dedo a dedo

Cada fio de cabelo

Deus, grande e forte

Soprou seu espírito em meu nariz

Eu ganhei uma alma

E sob meus pés ficou a poeira

Da minha terra nascerão flores

E se um dia eu quebrar,

Ele me ajudará a me remendar

Colar barro, grudar na terra

Queimar em fogo alto até secar

Me disseram que do pó eu vim

E a ele retornarei

Mas queimo tanto, e tanto

Que peço aos céus perdão

Por somente desejar ser cinzas.

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Daiane Jardim
Melancia

English and Portuguese teacher. Master's in Literature and Education. Polyglot, passionate about teaching and writing.