O que ninguém vai te contar sobre um intercâmbio

Daiane Jardim
Melancia
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4 min readApr 4, 2019
Foto: Daiane Jardim — Fevereiro/2018

Fazer um intercâmbio é o sonho de muita gente, e foi o meu por muitos anos. Até que em 2018 chegou o meu momento, ganhei uma bolsa para estudar um semestre do meu curso, Letras, na Universidade do Porto, em Portugal. Não consigo nem descrever a sensação que foi ver o maior sonho da minha vida se tornando realidade.

Antes de ir, mexi com tanto papel que poderia ter escrito um novo Os Lusíadas.

Cartório, dinheiro, visto, passagem, onde vou morar? Será que o visto vai sair a tempo? Ufa! Passaporte na mão, hora de ir. Tudo resolvido, afinal, até aí você encontra 897 tutoriais na internet para te ajudar.

Só que ninguém te conta como vai ser quando você chegar lá, quando cruza o oceano e você veste a pele do estrangeiro.

Chegar em uma terra diferente é ter de aprender tudo de novo, mas sem o aconchego do turista. Eu não ia embora depois de 15 dias, tinha que ficar por um semestre todo, sozinha e longe de tudo que conhecia.

Tive que aprender a chamar esse novo lugar de casa e até chegar a esse ponto a gente sofre por dentro e por fora.

Em alguns momentos batia a sensação de impotência. Não conhecia as leis, as regras, às vezes até da língua apanhava. Não havia para quem correr, a não ser gritar de raiva por dentro e tentar resolver a situação.

Você tem que aprender tudo de novo, desde as coisas mais simples como sacar dinheiro ou “levantar” dinheiro no Português de Portugal. Um novo número de celular, se perder várias vezes no transporte público, pedir algo do cardápio que nem você entendeu direito quais ingredientes têm, tentar ler o rótulo das embalagens no mercado a procura de algo mais parecido o possível com Toddy ou entender as 10 opções diferentes de arroz.

O encanto inicial do turista vai passando, e a paisagem cartão postal se torna rotina.

Criar um próprio ritmo leva tempo.

Foram tantos meses esperando por aquilo, numa expectativa tão grande que no meu segundo mês pensava se realmente estava aproveitando a cidade como eu deveria aproveitar. Afinal, foi tanto tempo e esforço investido, que ficar em casa vendo série às vezes parecia um crime.

Mas não se engane, ninguém consegue ficar entusiasmado 100% do tempo, e as transformações que vão ocorrendo internamente não são tão ágeis e práticas quanto as externas.

A mudança interna, aquela que não conseguimos ver, é o que mais nos influencia em todo o processo.

A saudade de casa também aperta. Nas ligações com a família tudo está sempre perfeito, eu não contava os perrengues que passava, pois não queria ninguém preocupado comigo. As decepções, os momentos difíceis, muita coisa ficou para mim mesma e às vezes compartilhava uma coisa ou outra com os amigos mais próximos que conheci no Porto.

Às vezes também contava para alguns amigos aqui do Brasil que estava triste com algo, e a respostas eram sempre as mesmas “você não pode estar triste, você está na Europa”.

Mas há algo que nós não contamos, que é sobre a nossa expectativa da volta. Não somente porque sabemos que vamos sentir falta do lugar que aprendemos a chamar de lar, mas também porque entendemos que mudamos como pessoas.

Não somos mais os mesmos, e ficamos curiosos em como encaixar o novo “eu” numa realidade já conhecida e que agora parece tão distante.

Tocar os planos antigos quando nossa mente já é outra, encarar uma rotina que já não nos encaixamos. Chegamos pensando que estamos realizando um sonho e isso basta, mas ninguém conta que voltamos com a bagagem ainda mais pesada, com novos sonhos e novos olhares sobre o mundo.

Olhamos para todos os momentos: bons e ruins, lágrimas e risos, enrascadas, medos e suspiros, e vemos que estamos frente a uma versão de nós mesmos que nem imaginávamos existir.

Eu vivi mais nesses seis meses do que vivi nos últimos dois anos da minha vida.

Ninguém vai te contar que nem tudo são flores, e pode ser que você se sinta sozinho, com medo ou impotente durante muitas situações. E está tudo bem…

Você pode e deve sentir suas emoções sem medo.

Ninguém vai te contar que você vai mudar muito e deixar a casca do velho eu para trás, e constantemente se questionará como encaixar toda essa novidade na sua “vida real”.

Ninguém vai te contar que terão coisas que você vai guardar apenas para você: momentos, frases, sentimentos, paisagens, que serão sempre o lugar seguro das suas memórias para você visitar quando o saudosismo chegar.

Ninguém vai te contar como é viver a pele de um estrangeiro latino-americano.

Mas tudo, simplesmente tudo, valerá a pena.

Lembro-me que quando cheguei em casa, logo dormi dominada pelo cansaço e no outro dia acordei com meu velho travesseiro, com o cheirinho de café da mamãe, a cama da minha irmã ao lado, as malas no canto, e pensei: será que acordei de um sonho?

Desde então sigo acordada, com uma saudade que não cabe no peito, e tentando encaixar na minha realidade essa nova pessoa que me descobri ser, transformando e criando novos sonhos que eu nem sabia que um dia sonharia.

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Daiane Jardim
Melancia

English and Portuguese teacher. Master's in Literature and Education. Polyglot, passionate about teaching and writing.