Ana Marta M. Flores
Memória em obituário
4 min readOct 28, 2014

--

♥ Passarinha ~

28 de outubro. 28/10. Hoje.

São poucos os aniversários que sei decor. O da Lívia eu sempre guardei. O motivo é a união de uma amizade especial e de um número bobo de telefone. Uma vez, ao chamar um táxi, ela disse:

— Esse número de táxi é fácil, termina com a data do meu aniversário: 28 — 10.

Nunca mais esqueci.

A gente concordava que passar muito tempo juntas não dava certo. Talvez fôssemos muito parecidas ou muito diferentes, nunca chegamos a pensar mais detalhadamente sobre isso.

Vaquinha, a gata. 2007.

Apesar disso, o carinho entre nós era enorme. No tempo de colégio, não chegamos a ser colegas de sala de aula, mas descobrimos que tínhamos muito em comum. O nosso jeito de se sentir diferente no meio de tantos adolescentes e o gosto por coisas que pareciam meio eruditas e também por bobagens tão populares, combinava bem.

A gente gostava de Chico Buarque mas isso não impedia que gostássemos de Avril Lavigne. Assistimos aos filmes bobos da Bridget Jones tomando quentão no inverno. Fazíamos um sotaque fake inglês para rir. Ela gravou um CD para mim intitulado: "Preppy Songs" — que eu ainda tenho. Pouco tempo depois, gravou um dos "The Dharma Lóvers".

2002. Nessa época eu já dizia que a gente era bem uma versão de Mafalda y Libertad: nas ideias e na figura.

Lembro de algumas vezes em que ela veio a Santa Maria me visitar. Na primeira vez, veio com uma mala de rodinhas vermelha e cheirava ao seu perfume preferido na época, um Ralph Lauren azulzinho. Na segunda vez, chegou com sandalinhas de crochet, mochila de acampamento e cheiro de flor.

Mudamos. De cidade, de estilo, de rotina. Nos afastamos, é verdade, mas costumávamos lembrar uma da outra com frequência. Depois de ela trocar o curso de arquitetura, em Florianópolis, pelo de psicologia, no Recife, ficamos períodos ainda maiores sem nos falar.

Uma coisa que sempre tentei respeitar foram as diferenças, e eu a a Lívia tínhamos várias. Houve um período em que ela passou totalmente desligada do mundo virtual, sem perfis ativos e sem telefone. Mas ainda assim trocávamos "cartas" por e-mail. Brincamos algumas vezes se teria sido assim entre Fernando Sabino e Clarice Lispector. Eu sentia falta de saber os detalhes da vida por lá, mas nos "pousos" para os lados do Sul, nos víamos.

E quando acontecia, a sensação era de que nenhum dia tinha passado. Eu me sentava curiosa frente àquela menina, ouvindo as histórias, os detalhes, os nomes das pessoas, das vilas e de cidades tão longes. Era como um bom livro sendo contado da melhor maneira possível.

A Lívia contestava. Sempre contestava. Falava de força. De poder feminino. De direitos da natureza. De sustentabilidade. De relações humanas.

2007. Na varanda da casa dela cascas de laranja, limão e maracujá para serem usadas como potinhos mais tarde.

Em uma noite, no sofá da minha sala, em Santa Maria, contei alguma verdade doída minha e acho que foi a única vez em que vi a compaixão tão próxima de mim. Foi um choro pela dor alheia e isso me comove até hoje.

A letra inconfundível de forma (de máquina, eu dizia) e os bilhetinhos sempre gentis, escritos quase sempre em papeis roxinhos me faziam lembrar da essência da minha amiga. Independentemente de onde estivesse.

Há pouco tempo, uma cantora jovem chamada Birdy me lembrou da Lívia na mesma hora, pelo trocadilho de "Passarinha" que eu costumava chamá-la.

Nunca contei pra ela, por achar que ela pensaria que isso era uma besteira.

Quando soube da morte da Lívia, estava sozinha e viajando. Chorei muito e em silêncio no caminho. Em um dos percursos ouvi Birdy, que apareceu de surpresa na lista e, agora, não consigo ouvir essa música sem lembrar dela.

Mesmo achando que poderia usar qualquer outra música da qual eu sabia que ela gostava, mas resolvi deixar para lá.

Birdy — Wings (2013)

Hoje é aniversário da Lívia e eu queria que ela pudesse ouvir essa música para me dizer se estou sendo boba ou não.

Haribol!

--

--

Ana Marta M. Flores
Memória em obituário

PhD in journalism, fascinated by #trendstudies #innovation #fashion #digitalmethods ⨳ writes for iNOVA Media Lab | Nephi-Jor | Trends and Culture Management Lab