Arthur Friedenreich: O talento negro do primeiro craque da Seleção Brasil

Ídolo ao marcar o gol do primeiro título e excluído pelo racismo dois anos depois. A vida de um preto de olhos e pele clara

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(Reprodução/CBF)

O esporte mais amado do Brasil é negro, apesar de negado a esta parcela da população em seus primórdios. Nas primeira décadas do século XX, quando ainda eram poucos os jogadores de pele escura na maior parte dos times, saiu dos pés de de um preto o gol que rendeu o título do Sul-Americano de 1919 para a seleção. Assim, Arthur Friedenreich, se tornou o primeiro ídolo do futebol brasileiro.

Arthur Friedenreich, “El Tigre” ou “Fried”, como era conhecido, nasceu em 18 de julho de 1892, em São Paulo. Com apenas quatro anos da escravidão da escravatura, ele era filho de Oscar Friedenreich, descendente alemão e desenhista técnico, e Mathilde de Moraes e Silva uma professora negra. A mescla rendeu ao menino os olhos claros do pai e a pele escura da mãe, ainda que também clareada pelos genes alemães.

O nômade Friedenreich , ainda muito garoto, em 1909, iniciou sua carreira no antigo Germânia/SP, atual Clube Pinheiros, clube para o qual retornaria em 1911. Esse foi apenas o começo de uma carreira de 26 anos marcada pela participação em outros 10 clubes.

Arthur jogou por Ypiranga/SP (1910, 1913 até 1915 e 1917), Paulistano (1916 e do final de 1917 a 1929, maior período por um mesmo clube), Flamengo/RJ (uma partida em 1917 e 1935, onde encerrou sua carreira) e Santos (1930 e 1935), além de uma por Mackenzie/SP (1912), Americano/SP (1913), Paysandu/SP (1915/1916), Internacional/SP (1929), Atlético Santista/SP (1929) e São Paulo (1930 até 1935).

Entre as estadias mais marcantes pelos clubes estão o amistoso entre Flamengo e Sportivo Barracas, da Argentina, em 1917, onde Friedenreich se tornou o primeiro jogador negro a disputar uma partida pelo clube carioca, além de sua aposentadoria em 1935; a excursão pela Europa que realizou com o Paulistano em 1925, onde ganhou o apelido de “El Tigre”; e o período no São Paulo, onde fez parte do Esquadrão de Aço campeão paulista de 1931.

Leônidas da Silva, o inventor da bicicleta; Friedenreich, primeiro ídolo da seleção; e Pelé, rei do futebol (Reprodução/Blog Terceiro Tempo)

O Sul-Americano de 1919

Foi também no Paulistano que Friedenreich foi convocado para a sua maior conquista da carreira: O Sul-Americano de 1919, competição hoje conhecida como Copa América. Aquela era a terceira edição do torneiro e acontecia no Brasil com a participação dos anfitriões além de Argentina, Chile e Uruguai.

Naquele campeonato o Brasil, que havia tomado duas goleadas na edição anterior por 4 a 0 para Uruguai e 4 a 2 para Argentina, estava longe de ser um dos favoritos, mas fez valer o fator casa vencendo o Chile por 6 a 0, a Argentina por 3 a 1 e empatando com o Uruguai em 2 a 2.

O caminho da seleção uruguaia, que havia sido a campeã do ano anterior, não foi muito diferente. Além do empate com a seleção canarinho, ganhou da Argentina de 3 a 2, do Chile de 2 a 0. Como o número de pontos de Brasil e Uruguai foram iguais, foi necessário um jogo desempate. Uma final realizada no dia 19 de maio daquele ano no estádios das Laranjeiras.

O Brasil entrou em campo com Marcos; Píndaro, Bianco, Sérgio e Amílcar; Fortes, Millon, Heitor e Neco; Arthur Friedenreich e Arnaldo. Do lado uruguaio foram a campo Cayetano Saporiti; Alfredo Foglino, Manuel Varela, José Pérez e Alfredo Zibechi; José Vanzzino, Rogelio Naguil, Carlos Scarone e Rodolfo Marán; Ángel Romano e Isabelino Gradín.

Foram 90' minutos de tempo normal onde o gol não saiu. A primeira prorrogação, que naquele tempo tinha 30 minutos, também passou. Apenas aos 137' minutos de bola rolando é que o gol brasileiro saiu. Em rebote dado pelo goleiro uruguaio, Arthur Friedenreich, na entrada da pequena área, colocou a bola para dentro dando o primeiro título da história da seleção brasileira de futebol.

A festa foi grande e a popularização do futebol se tornou ainda maior a partida da primeira vitória em competições internacionais. Foi a vitória que inspirou Pixinguinha e Benedito Lacerda a lançar, naquele mesmo ano, o chorinho Um a Zero, que conta a trajetória do jogo até o gol histórico. A melodia ainda ganhou letra de Nelson Ângelo nos anos 1990.

O racismo argentino, o pedido presidencial e o Sul-Americano de 1921

A alegria contagiante não durou muito. No ano seguinte, no Chile, havia expectativa de que o Brasil repetisse o feito e vencesse o Sul-Americano outra vez. Mas não foi isso que aconteceu. A Canarinho venceu os donos da casa por 1 a 0, mas perdeu por 6 a 0 para Uruguai e 2 a 0 para Argentina.

No retorno pós-competição, a seleção passou por Buenos Aires para disputar um amistoso contra a Argentina. Os atletas foram recebidos pelo racismo escancarado dos moradores e jornais locais. Ainda hoje os “hermanos” carregam traços desse racismo e por muitas vezes se referem aos brasileiros como “Monos”, que significa macaco em espanhol.

Alguns jogadores do Brasil se negaram a participar dos jogo após a recepção e a partida acabou sendo improvisada. Há relatos que dizem que jogaram 7 contra 7, outros dizem que alguns jogadores argentinos precisaram completar o plantel brasileiro para que o jogo acontecesse. A partida acabou saindo de forma improvisada, disputada com sete atletas de cada lado. O jogo acabou em 3 a 1 para os argentinos.

Capa do Jornal “A Crítica” de 1920 (Reprodução)

Em 1921, em nova edição do Sul-Americano, disputada na Argentina. O Brasil novamente esteve presente, contudo, sem nenhum jogador negro na equipe. A escolha foi um pedido do presidente do país, Epitácio Pessoa, que se reuniu com os diretores da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) — hoje Confederação Brasileira de Futebol (CBF) — pedindo que apenas jogadores brancos participassem do torneio para preservar a reputação brasileira.

Friedenreich pode parecer um homem claro quando visto em fotos em preto e branco da época, contudo, quando em contrate com outros jogadores arianos, fica evidente a sua descendência negra. Por isso, o craque de dois anos antes, foi um dos não convocados.

Mais uma vez o Brasil ficou pelo caminho, perdendo para Argentina por 1 a 0 e Uruguai por 3 a 1, além de vitória sob o Paraguai por 3 a 0. A segregação aos homens de cor e principalmente a ausência de seu maior craque sem dúvidas fizeram a diferença naquela competição

Friedenreich ao lado de Moderato, jogador que marcou primeiro gol da Seleção Brasileira em uma Copa do Mundo (CBF)

Friedenreich e a Revolução Constitucionalista de 1932

O Sul-Americano de 1921 não foi a única polêmica envolvendo Friedenreich e o governo federal vigente. Após a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder e revogou a constituição de 1891, o Estado de São Paulo, insatisfeito com a perda do controle político nacional que mantinha durante a República Velha, rompeu ligações com o presidente.

Em 1932, durante o início da Ditadura Varguista, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Democrático de São Paulo (PD), se uniram para formar a Frente Única Paulista (FUP). Segundo artigo da historiadora Regina da Luz Moreira, publicado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), órgão da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a FUP uniu-se a militares e entidades das classes mais altas na criação de movimentos armados para combater o governo provisório e “se tornou a porta-voz das reivindicações de reconstitucionalização e de autonomia administrativa para o estado.”

No da 23 de maio daquele ano, após a morte de quatro supostos estudantes durante um confronto armado em frente a sede do Partido Popular Paulista (PPP), braço do Governo Vargas no estado, estava formado o cerco para a Revolução Constitucionalista, que teve início oficialmente em 9 de julho.

É dentro deste contexto que Arthur Friedenreich se tornou parte do exército Paulista na Guerra Civil contra Getúlio Vargas. Usou sua influência e, aproveitando as ondas do rádio, principal meio de comunicação da época, convocou outros companheiros de profissão para as frentes de batalha. Acredita-se que mais de 1500 atletas formando o Batalhão Esportivo.

O confronto teve fim em 1º de Outubro daquele mesmo ano com a rendição do Estado de São Paulo aos conflitos, mas rendeu frutos como a constituição de 1934. Apesar disso, Getúlio seguiu no poder, instaurando uma Ditadura que durou até 1945.

(Jornal Folha da Noite, edição de 19 de julho de 1932)

Apesar das polêmicas, Friedenreich foi um dos mais respeitados atletas do Brasil e teve uma carreira repleta de façanhas conquistando oito campeonatos paulistas (1916, 1918, 1919, 1921, 1926, 1927, 1929 e 1931) e as Copas América de1921 e 1922.

Além disso, perdurou por muito tempo a lenda de que tivesse marcado mais de 1300 gols, o que o colocaria a frente até mesmo de Pelé, algo que foi de fato noticiado em diversos jornais. Contudo, existem pesquisas que apontam cerca de 600 gols e outras com média de 400.

Como os dados da época não eram contabilizados de maneira confiável, obviamente se tornou impossível ter certeza sobre esses números, mas sabe-se que era um goleador nato, tendo sido artilheiro do Sul-Americano de 1919 e de nove edições do Paulistão (1912, 1914, 1917, 1918, 1919, 1921, 1927, 1928 e 1929).

Friedenreich morreu em 6 de setembro de 1969, aos 77 anos, deixando um legado incomensurável por todos os times que passou, principalmente na seleção. O primeiro craque da Amarelinha, que na época ainda vestia branco, é um homem negro que ficou marcado na história. Essa é uma marca que o racismo não pode apagar.

(Reprodução/OCanarinho)

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27