Bangu Athletic Club: o time de operários, imigrantes e negros

Fundado em 1904, o alvirrubro da Zona Oeste carioca foi o lar de Francisco Carregal, primeiro jogador negro do Rio de Janeiro

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Bangu que enfrentou o Fluminense no dia 14 de maio de 1905. Em cima: José Villas Boas (presidente), Frederick Jacques e João Ferrer (presidente honorário); No meio: César Bochialini, Francisco de Barros, John Stark, Dante Delocco e Justino Fortes; Abaixo: Segundo Maffeu, Thomas Hellowel, Francisco Carregal, William Procter e James Hartley. Foto: Reprodução

O futebol chegou ao Brasil pelas mãos inglesas e durante alguns anos a baixa renda não pôde se quer sonhar em chutar uma bola. No Rio de Janeiro, no início dos anos 1900, não era muito diferente. Apesar disso, um funcionário de uma fábrica de tecidos na Zona Oeste da capital resolveu que ali surgiria uma equipe que se tornaria histórica. Deu-se ao time o mesmo nome da fábrica e do bairro: Bangu, e entre os funcionários e jogadores surgiu o primeiro negro do futebol carioca: Francisco Carregal.

A Fábrica de Tecidos Bangu foi fundada em 1889, ainda com o nome de Companhia Industrial Brasil. A manufatura foi uma das responsáveis pelo início da urbanização do bairro que surgiu de uma fazendo e por isso ainda era extremamente rural. Seus funcionários eram dos grupos mais variados, muitos deles imigrantes europeus e muitos outros, homens negros. Parte desses funcionários, técnicos ingleses, levaram para o subúrbio os conceitos do futebol, até então praticado apenas em bairros nobres de Rio e São Paulo.

Thomas Donohoe, no Brasil apelidado de “Seu Danau”, um dos funcionários estrangeiros, neste caso escocês, foi quem trouxe da Inglaterra a primeiro bola utilizada pela equipe. Faltava apenas o terreno que, com cessão da Fábrica Bangu, se instalou em um de seus jardins, ao lado das salas de trabalho. Apesar de normalmente sermos apresentados a chegada do futebol pelas mãos de Charles Miller, que teria realizado a primeira partida em São Paulo no ano de 1895, diversos historiadores defendem que a primeira partida de futebol do Brasil teria acontecido um ano antes, em Bangu, promovida por Thomas Donohoe.

— Thomas Donohoe foi o pioneiro do futebol brasileiro, mas Charles Miller ganhou esse título porquê organizou melhor as partidas e fazia parte da elite do país. Ele tinha mais dinheiro para fazer as coisas em um nível mais profissional, mas Donohoe foi quem teve a paixão e a alma de trazer o futebol para o Brasil — comentou a jornalista escocesa Storm Huntley, em entrevista a Rede Globo em 2014.

Estátua de Donohoe no estacionamento do Bangu shopping, que funciona nas antigas instalações da Fábrica Bangu. (créditos na imagem)

Bangu é um bairro suburbano, afastado do centro da cidade, e naquela época chegar ao local era uma verdadeira batalha. Além disso, nunca foi um bairro muito rico. Tudo isso foi parte dos motivos para que ao invés de se filiar a um clube, os britânicos criassem a sua própria equipe ali mesmo.

Como as peladas amistosas iniciadas por Seu Dadau foram se popularizando aos domingos, dia de folga dos tecelões, Andrew Procter, outro funcionário de origem inglesa, sugeriu a formação da equipe. Além de Andrew, outros nove funcionários, que se tornariam jogadores, assinaram a ata que funda em 17 de abril de 1904 o Bangu Athletic Club. No dia 24 de julho do mesmo ano, a primeira partida e a derrota por 5 a 0 para o Rio Cricket, clube de imigrantes também de origem britânica.

A equipe do Bangu era formada quase que exclusivamente por funcionário imigrantes da fábrica e se reforçou em 1905 com mais um jogador de nome Francisco Carregal. Sua estreia foi contra os reservas do Fluminense no dia no dia 14 de maio de 1905. Naquela ocasião o alvirrubro da Zona Oeste venceu a partida por 5 a 3 com um elenco formado por cinco britânicos (Frederick Jacques, John Stark, William Hellowell, William Procter e James Hartley), três italianos (Cesar Bochialini, Dante Delocco e Segundo Maffeu), dois portugueses (Francisco de Barros e Justino Fortes) e Francisco, único brasileiro da equipe.

A questão é, além da qualidade com a bola, o novo atacante do time do Bangu tinha outro grande diferencial para os praticantes do esporte naquela: era negro. Francisco nasceu no Rio de Janeiro em março de 1884 filho de pai branco e português e mãe negra brasileira. Aos 21 anos, sem saber, fez história se tornando o primeiro jogador negro a disputar uma partida oficial de futebol no Rio de Janeiro.

Francisco Carregal. (Reprodução/Bangu Atlético Clube)

Em um período histórico em que o preconceito se quer se escondia, com uma abolição da escravatura assinada apenas há oito anos, o Bangu e Carregal sofreram com a hostilidade. Sair de seus territórios era um problema pois quando a equipe ia jogar fora do bairro, as ofensas contra Francisco e os outros negros que vieram a figurar no time eram sem tamanho. Contudo, os alvirrubros não deixavam barato e quando o jogo era na fábrica de tecidos, os brancos eram tratados tal qual o negro no resto do Brasil.

Ainda assim, era bem complicado ser um jogador negro. Francisco Carregal era sempre o mais alinhado, mais bem vestido. Não podia se dar ao luxo de aparecer desarrumado para que não houvessem mais xingamentos ou estereótipo quando a seu desleixo. Quando chegava mais forte em uma dividida, estava formada a confusão. Ou seja, era necessário ser discreto.

O Bangu participou do Campeonato Carioca de 1906, porém, a permanência de negros na equipe ainda era um incomodo. No ano seguinte, a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, organizadora da competição na época, comunicou aos clubes associados que proibiria o registro jogadores de cor. Sem aceitar, o Bangu se retirou da competição, junto a alguns outros clubes.

Carregal seguiu na equipe até 1912, jogando ainda as divisões de acesso do carioca de 1909, quando a liga retirou as restrições, até o ano de sua aposentadoria dos gramados. Somente no ano seguinte o Bangu retornou a elite do campeonato estadual. Acredita-se que tenha atuado em 28 partidas e marcado seis gols nos anos em que serviu a equipe.

Após o fim da carreira, Francisco se tornou tesoureiro do clube e fazia parte do quadro de funcionários quando a equipe foi campeã Carioca em 1933 Faleceu em 1949, aos 65 anos. Sua história é contada pelo jornalista Mário Filho em seu livro “O negro no futebol brasileiro”, de 1964.

Ainda hoje o Bangu defende ter sido o primeiro clube a escalar um jogador negro, apesar da Ponte Preta defender que Miguel do Carmo teria entrado em campo já em 1900, ano de fundação da equipe Paulista. O clube do Rio do recebeu a Medalha Tiradentes por governo federal “pelo destemor e pioneirismo na luta para superar preconceitos discriminatórios contra atletas”. Além de Francisco, o documento também cita Manoel Maia, outro homem negro que atuou pela equipe no Carioca de 1906.

Bangu que enfrentou o Football & Athletic em 20 de maio de 1906. Em cima: William Wallace Hellowell, Manoel Maia e James Hartley; No meio: Raul Maranhão, John Farrington e Tom Harrison; Abaixo: Alfredo Victor Guedes de Mello, Alexander Leigh, Robert Cross, Charles Hill e Dante Delocco. (Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos)

A história do negro no futebol brasileiro tem diversos contrastes e dúvidas que são retrato do período histórico em que se iniciaram. Ainda assim, a pouco documentação de tempos tão longínquos retira a poeira de passagens importantes da chegada desse povo aos gramados. Carregal, Manoel e tantos outros homens pretos, sejam do Bangu, da Ponte Preta ou do Vasco são os responsáveis por levar para as massas e popularizar o esporte mais amado do país hoje.

Carregal foi, sempre que pôde, impecável para não permitir que o preconceito com sua cor pudesse sobrepor a sua qualidade futebolística, algo que ainda hoje se repete todos os anos nos estádios do mundo todo por parte de torcedores, jogadores e até mesmo árbitros.

Relembrar quem foi Carregal é mais do que reviver a história. Representa lembrar ao povo que lá no início, mesmo em maiores adversidades, os pés negros já transformavam um toque na bola em magia e a mágica de Francisco abrir caminho para o futebol negro no Rio de Janeiro.

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27