Camisas Negras: A resposta histórica e o ápice da luta vascaína contra o racismo

O time que se negou a jogar sem os negros de seu elenco e ergueu, com as mãos de seus torcedores, um templo para suas glória

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(Arquivos do Clube de Regatas Vasco da Gama)

No início do século XX o futebol só podia ser praticado por pessoas brancas e de ‘boa família’. Enquanto os times tradicionais do Rio de Janeiro seguiam essa tendência, o Clube de Regatas Vasco da Gama (CRVG) ousou se posicionar contra o racismo da liga que excluía negros e operários menos abastados. Os maiores troféus de sua história não foram conquistados em campo. Seu estádio e a carta conhecida como “Resposta Histórica”, documento em que abdica do campeonato para não perder seus jogadores negros, são os maiores marcos do tamanho histórico do clube cruzmaltino e hoje são cantados a plenos pulmões nas arquibancadas.

O esporte mais amado pelo brasileiro, assim como inúmeras outras atividades esportivas, em algum momento da sua história foi segregacionista. Nos anos de 1920, menos de três décadas após a abolição da escravatura no país, os primeiros times de futebol do estado do Rio eram não só compostos por branco, mas principalmente por pessoas e ideais elitistas.

À época o grande esporte do país eram as regatas, normalmente realizadas na Baía de Guanabara. Entretanto, o valor altíssimo dos equipamentos para prática do esporte aquático era algo que limitava a participação popular, mesmo da classe média-alta.

Com a chegada do futebol, importado por imigrantes ingleses, os tradicionais clubes cariocas tinham ali um esporte ainda elitista, porém, mais barato e acessível. O Fluminense montou seu primeiro time ainda nos anos de 1902, mesmo ano de sua fundação; Botafogo e América, fundados em 1904, também formaram logo em seus primórdios uma equipe futebolística; Flamengo e Vasco, fundados respectivamente em 1895 e 1898, só vieram a formar plantéis em 1911 e 1915.

O esporte ainda era amador e para ser jogador nas equipes futebolísticas do Rio de Janeiro era necessário ser sócio do clube, ou seja, pagar para jogar. Enquanto os grandes clubes da zona sul carioca e o América, da Tijuca, eram frequentados por sócios endinheirados, oriundos de famílias ricas, o Vasco montou seus primeiros elencos com negros e operários de São Cristóvão, grande colônia portuguesa no Brasil e bairro que abrigou a família real.

Equipe do Vasco que venceu o Mangueira por 3x0, no campo do Andarahy, em 27 de julho de 1924 (NetVasco)

O Vasco então iniciou o processo de profissionalização da equipe. Um pouco mais do esquema feito pelos descendentes portugueses do bairro imperial é apresentado e explorado no podcast História Preta.

— O esquema era o seguinte: Seu Manoel da padaria contratava um novo empregado que “por acaso” também era um excelente jogador de futebol, porém esse sujeito quase não trabalhava na padaria, porquê o seu Manoel liberava ele de bom grado para jogador futebol e treinar no Vasco, que “por um acaso” também era o time de coração do Seu Manoel. Os jogadores do Vasco se dedicavam quase que exclusivamente ao futebol, trabalhando as vezes meio período nos comércios portugueses — pontuou o criador, roteirista e locutor do História Preta, Thiago André, durante o episódio sobre os Camisas Negras da série “O Negro no Futebol”.

A verdade é que os comerciantes foram os grandes patrocinadores dos primórdios do Vasco da Gama e se tornaram o alicerce para um time que viria a ser tão competitivo. Naquele momento, não importava sua cor ou sua função. Desde que fosse bom de bola, tinha espaço. Isso era algo que ia contra todos os dogmas do futebol carioca na época.

— Naquele tempo o futebol era estritamente amador. Ninguém vivia exclusivamente do futebol até então. Um time como o Bangu tinha em seu elenco trabalhadores da fábrica de tecido, que não deixavam de ser operários durante a semana. Assim como os nobres jogadores da zona sul tinham suas profissões, eram estudantes e jogavam futebol também de maneira amadora. Era um requisito básico daquele tempo. O Vasco começa a quebrar esse paradigma ao estabelecer uma espécie de vínculo empregatício com seus jogadores — conclui Thiago em seu podcast.

O estádio de São Januário, construído em 1927 (Blog Memória Vascaína e Site oficial do Vasco da Gama

Levou apenas oito anos para que o Vasco da Gama saísse da terceira divisão da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (entidade responsável pelos primeiros campeonatos cariocas do estado) e chegasse a primeira divisão do campeonato em 1923. A competição daquele ano contou com oito times. Além do Vasco, Andaraí, Bangu, Botafogo, Flamengo, Fluminense, São Cristóvão e América, atual campeão.

Quando a bola rolou, o Vasco foi avassalador. O preparo físico dos jogadores se mostrou hegemônico em quase todos os jogos da competição e a equipe empilhou vitórias, em sua grande maioria, de virada. Foram 14 jogos até o título inédito e apenas dois resultados diferentes da vitória. Uma derrota para o Flamengo e um empate com o Bangu, na última rodada.

O Vasco havia se tornado popular, arrastava multidões de torcedores, normalmente menos endinheirados, para todo lugar onde ia. O time com uniforme todo preto, onde apenas as golas brancas e a cruz de malta vermelha no peito contrastavam, rapidamente ganhou o apelido de Camisas Negras.

Essa não era a primeira vez que o clube se tornava vanguarda no Rio de Janeiro. Ainda em 1905, o Vasco da Gama já havia tido o primeiro presidente negro entre os clubes fluminenses, e provavelmente o pioneiro no Brasil, Cândido José de Araújo, em 1905. É claro que os times mais abastados não gostavam da ideia de perder espaço para pretos e pobres, principalmente em uma equipe criada tão recentemente. Com isso, surgiram diversas conspirações e falácias para danificar a imagem do clube. Uma das fortes fofocas que se espalharam era que o Vasco, em campo, era Portugal. O Brasil vivia ainda um momento pós colonialismo, que rendeu o surgimento de estereótipos contra os portugueses como burro, avarento, careiro e outros mais. Isso se tornou um combustível para que os torcedores dos outros times ficassem contra os cruzmaltinos. Quando a bola rolada, todos os times eram o Brasil, mas o Vasco não. Na prática, de nada adiantou.

As rotineiras viradas foram a base para a criação, nos anos 1970, de uma das músicas mais cantadas na arquibancada cruzmaltina:“O Vasco é o time da virada. O Vasco é o time do amor”, canção inspirada no samba-enredo da Beija-flor de 1978, “A criação do mundo na tradição nagô”, que rendeu o primeiro tricampeonato da escola de Nilópolis.

Dados: Site oGol

O título cruzmaltino ficou engasgado para os grandes clubes da época, o que rendeu uma a mobilização que resulta na fundação da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA) em 1924, contando com Botafogo, Fluminense, Flamengo e América. Foi formado um novo campeonato com regras extremamente restritas.

Entre as condições para jogar a competição estavam: ser alfabetizado, possuir condições sociais apropriadas para o convívio esportivo, não ter profissão “duvidosa” e ter um estádio próprio para a realização dos jogos. Em um momento onde a abolição tinha menos de 35 anos e 7 em casa 10 brasileiros não sabiam ler, entre eles quase todos os negros do país, também em sua maioria operários, as restrições representariam a expulsão de 12 jogadores do elenco cruzmaltino. Todos de pele escura ou brancos pobres.

O presidente do Vasco na época, José Augusto Prestes, obviamente abominou a decisão e retirou o Vasco do campeonato. Em repúdio redigiu e assinou o documento conhecido até hoje como “resposta histórica”, negando-se a afastar seus jogadores.

“Resposta histórica” foi escrita pelo Vasco em 1924 e é considerada um marco contra o racismo no futebol brasileiro (Site oficial do Vasco)

“Rio de Janeiro, 7 de Abril de 1924.
Ofício nr. 261
Exmo. Sr. Dr. Arnaldo Guinle
M.D. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos

As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação a que V.Exa tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa tal situação de inferioridade, que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.

Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma por que será exercido o direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.

Quanto à condição de eliminarmos doze (12) dos nossos jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

Estamos certos que V.Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923.

São esses doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias.

Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V.Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA. Queira V.Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever, de V.Exa. At. Vnr. Obrigado

(a) Dr. José Augusto Prestes
Presidente”

Naquele ano o Vasco, junto a outros clubes que deixaram a AMEA devido as restrições, participaram de um campeonato paralelo ao carioca, onde o clube cruzmaltino foi o campeão invicto vencendo todos os 16 jogos que disputou. A continuidade das vitórias e o apelo popular do clube gerou comoção suficiente para que no ano seguinte fosse convidado novamente para fazer parte da elite do futebol do Rio de Janeiro.

Apesar da retirada de grande parte das restrições que tirariam os negros de seu time, a falta de um campo próprio ainda era um empecilho para que participasse das competições, por isso, a equipe inicia uma campanha de financiamento com seus torcedores, com vendas de carnês destinados a construção do estádio Vasco da Gama, mais conhecido como São Januário.

O campo fica na colina histórica de São Cristóvão, na região norte do Rio, em um terreno que pertencia anteriormente a Marquesa de Santos. Finalmente inaugurado em 21 de abril de 1927, à época se tornara o maior estádio da América do Sul. Hoje, 94 anos depois da construção do templo, as arquibancadas de São Januário tremem ao ouvir a história dos camisas negras, eternizada em uma canção da torcida.

Tantos anos depois, o Vasco da Gama se tornou um dos maiores times do Brasil ostentando quatro títulos Brasileiros da série A (1974, 1989, 1997 e 2000), um título Brasileiro da série B (2009), uma Libertadores da América (1998), uma Mercosul (2000), uma Copa do Brasil (2011) e 24 Campeonatos Cariocas, sendo o primeiro aquele longínquo de 1923.

O sentimento do vascaíno é genuíno e representa uma histórica única que talvez, não fosse a coragem do time cruzmaltino em combater as injustiças dentro do futebol, poderia ter se tornado ainda maior. Apesar disso, para a torcedora e fundadora dos movimentos Vascaínas contra o assédio e Rosálinas, Júlia Moreira, a luta por justiça não se repetiria hoje.

— O Vasco tem uma história contra o racismo que é um orgulho para todo vascaíno. A gente bate no peito pra dizer que se orgulha da respostas histórica. Todo vascaíno canta a peitos abertos a música “Camisas Negras”, mas se hoje em dia o presidente do Vasco tivesse que assinar uma resposta histórica abrindo mão do Campeonato Brasileiro e falando que o Vasco vai jogar a série B, você acha que eles iam querer? Eles iam falar “você é maluco. Vai desistir da nossa principal fonte de renda, do Brasileirão só por conta de um caso de racismo?”. Vocês acham mesmo que a torcida do Vasco ia comprar essa briga? Gente, eu acho muito difícil principalmente porque a torcida é um reflexo do que a gente vê na sociedade. Jamais, em hipótese alguma o Vasco escreveria e assinaria uma resposta histórica atualmente. Isso eu falo com propriedade — Júlia Moreira no Podcast Por trás dos Microfones.

Ainda assim, nada apaga o fato de que as duas maiores conquistas do Clube de Regatas Vasco da Gama surgiram das mãos, pés e do suor do povo negro. A luta contra o racismo e a discriminação do clube cruzmatino campeão repleto de negros e operários provou no Rio de Janeiro que sua classe social ou a cor da sua pele não faz a menor diferença dentro do campo de futebol. Tudo que você precisa é saber jogar bola.

(O episódio completo com Júlia Moreira falando sobre o Vasco e os movimentos de torcida está disponível no Spotify 👇🏿)

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27