De Cassius Clay a Muhammad Ali: a luta dos negros por direitos

O menino que, convocado para a guerra, se negou a carregar armas enquanto seu povo ainda era negligenciado. Mudou de nome, mudou de religião, mas nunca mudou de índole.

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Foto: Marvin E. Newman/GettyImages

Para um atleta ser grande, as vezes é necessário bem mais do que conquistas. Muhammad Ali carregava a grandeza na alcunha de lutador, na força física e nas suas convicções. Considerado por muitos o melhor pugilista de todos os tempos, perdeu seus títulos e foi condenado a prisão após se negar a lutar pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Um menino que cresceu se negando a lutar por um país que assassina homens como ele.

Cassius Marcellus Clay Jr., Muhammad Ali ou “The Greatest”, nasceu em Louisville, no Kentucky, em janeiro de 1942. Filho de um pintor e uma empregada doméstica, ambos descendentes de escravos, era o mais velho dos dois filho do casal. Seu nome, assim como o de seu pai, era homenagem a um político abolicionista dos Estados Unidos no século XIX.

Ainda menino, conheceu o boxe através do técnico e policial Joseph Elsby Martin, que o levou para a academia após um garoto tentar roubar sua bicicleta. O casamento entre o esporte e o pequeno Cassius foi instantâneo e ainda muito jovem ele se tornou um dos melhores pugilistas do país. Foram mais de 100 lutas amadoras, até que em 1960, ainda aos seus 18 anos, chegou as Olímpiadas de Roma como o principal boxeador americano para a disputa do ouro na categoria dos meio-pesados.

Cassius venceu o belga Yvon Becot, o russo Gennadiy Shatkov, o australiano Anthony Madigan e por fim o polonês Zbigniew Pietrzykowski. The Greatest mal havia chegado a maior idade, mas já tinha conquistado o topo do mundo. Pode parecer muita responsabilidade para um menino, mas foi só o começo de uma trajetória vitoriosa.

Foto: Central Press/GettyImages

O lutador manteve seu nome de batismo até 1964. Influenciado pelo movimento dos direitos civis americanos e por Malcolm X, que via no islamismo não só uma religião, mas também um instrumento de resistência dos negros, Cassius Clay deixou de usar o nome que ele mesmo afirmava ser de um escravo. Daquele momento em diante, todos o conheceriam como Muhammad Ali-haj.

Ainda como Cassius Clay conquistou pela primeira vez o cinturão dos pesos-pesados da World Boxing Council (WBC) vencendo Sonny Liston em fevereiro de 1964. Aquela foi a última vez que entrou no ringue sobre a alcunha pela qual foi batizado, mudando de nome no dia seguinte. Já como Muhammad Ali, manteve o título até fevereiro de 1970, quando perdeu para Joe Frazier na primeira luta entre os dois. Recuperou o cinturão em outubro de 1974, vencendo George Foreman, e manteve seu reinado até fevereiro de 1978, quando foi derrotado por Leon Spinks

Pela World Boxing Association (WBA), foi campeão pela primeira vez na mesma luta onde aposentou seu nome, contudo, aceitou a revanche imediata de Liston, o que era proibido pelas regras da organização na época, por isso perdeu seu título em setembro do mesmo ano. Em fevereiro de 1967 ele voltou a vencer o campeão da categoria, que agora era Ernie Terrell, tornando-se novamente o dono do cinturão até abril do mesmo ano, quando foi destituído. Em outubro de 1974 recuperou o título na luta contra Foreman, se tornando o primeiro lutador a deter o cinturão dos pesos-pesados por três vezes. Ali se manteve no topo até a derrota para Spinks em 1978.

— Eu não tenho medo de ninguém. Será preciso um bom lutador para me vencer. Olhe para mim, eu estou confiante. Eu não posso ser vencido. Eu fiz 180 lutas amadoras, 22 profissionais e continuo lindo como uma donzela — Muhammad Ali antes de seu primeiro combate contra Liston.

Sonny Liston nocauteado após o famoso “soco fantasma” de Ali no segundo combate entre os dois pugilistas. Foto: Bettmann/GettyImages

A explicação para tantas reviravoltas e tentativas para que o campeão perdesse seus títulos é simples: Ali havia se negado a lutar na guerra pelos Estados Unidos.

A Guerra do Vietnã durou de 1955 até 1975 e inúmeros americanos foram convocados pelo exército para carregar armas e lutar pelo seu país. Em 1966, bem na metade do período dos conflitos, o lutador também foi chamado para viajar até outro país e atirar em pessoas inocentes. O campeão respondeu com a soberania da realeza.

— Eu não viajarei 16 mil quilômetros para ajudar a matar um outro povo só para que os feitores brancos continuem dominando os povos mais escuros. Eu não tenho nada contra os vietcongues. Nenhum deles jamais me chamou de nigger (termo racista usado para se dirigir a negros) — Muhammad Ali para a TV americana após uma das audiências de seu julgamento.

Já em 1967, após se apresentar por três vezes ao exército e se negar a fazer os testes necessários, Ali foi condenado a cinco anos de prisão por deserção, teve seu passaporte confiscado, foi grampeado pelo FBI, proibido de lutar e perdeu seu cinturão da WBA, que só viria a recuperar em 1974.

Após três anos de hiato, o campeão conseguiu liberação para voltar a lutar pela WBC e pouco tempo depois foi liberado pela justiça para retornar aos ringues também pela WBA. Não demorou muito para que o maior pugilista de todos os tempos retomasse seu posto.

Ali e Foreman se enfrentaram no antigo Zaire naquela que foi chamada de “A Luta do Século” ou “A luta na floresta”. O combate durou 14 rounds e Muhammad foi o vencedor por nocaute técnico. Foto: Horst Faas / AP

Muhammad Ali se aposentou em 1980, uma luta após perder seus títulos para Larry Holmes. Em 61 lutas disputadas oficialmente, seu cartel apresentou 56 vitórias, sendo 37 delas por nocaute, e apenas cinco derrotas, fora os inúmeros combates amadores realizados nos períodos pré-olimpíada.

Disléxico desde criança, foi diagnosticado também com Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), conhecida também como Demência Pugilística. Uma doença que se aproxima do Alzheimer e que levou o lutador ao quadro de Parkinson. Aos poucos o campeão foi se debilitando até que em junho de 2014, aos 72 anos, veio a óbito.

Uma das últimas grandes aparições de Ali aconteceu nas Olímpiadas de 1996, em Atlanta, quando o lutador, já tremulo pelo Parkinson, carregou a tocha e acendeu a pira olímpica na cerimônia de abertura dos jogos. Em 2012, em Londres, o pugilista também esteve presente na recepção dos atletas.

“Ali” (2001) se tornou filme protagonizado por Will Smith, “Quando éramos reis” (1996), documentário que conta a história da luta contra George Foreman, venceu o Oscar no ano seguinte a seu lançamento. Inúmeras outras obras também tentaram retratar o legado deixado por este homem.

Cassius Clay aprendeu muito cedo que ser negro a vista dos outros era ruim, entendeu que a cor da sua pele sempre seria motivo para ser tratado mal ou segregado, mas também foi muito precoce em compreender que seu povo era lindo e que sua força era muito maior que o preconceito. Entre ser um campeão com as mãos manchadas por sangue inocente ou perder seus títulos por não lutar por quem oprime seus iguais, Muhammad Ali escolheu orgulhar seus ancestrais e se transformou não só no maior pugilista da história, mas também em um dos maiores homens já conhecidos.

“Float like a butterfly, sting like a bee”

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27