Green book: o pianista, o motorista e o guia do homem negro nos anos 1960

Munido do livro que mapeava a aceitação da presença negra dos Estados Unidos, Donald Shirley escolheu o sul racista para sua turnê de fim de ano. Um marco da luta negra por espaço

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(Reprodução)

O pianista negro Donald Shirley (Mahershala Ali) viaja em turnê acompanhado por seu motorista branco e racista, Frank Vallelonga (Viggo Mortensen), pelo sul dos Estados Unidos, região mais segregacionista dos anos 1960. Acompanhados pelo Green Book, livro guia para afro americanos com dicas de locais destinados ou que aceitavam pessoas de cor, viajam por dois meses encarando o preconceito em seus extemos velados e escancarados.

A trama de Green Book é baseado na história real de Donald Shirley e Vallelonga, conhecido também no Tony Lip. A viagem, que aconteceu em 1962, inspirou o filme dirigido por Peter Farrelly (diretor de filmes como Debi & Loide) e roteiro de Nick Vallelonga, filho de Frank, o motorista.

A viagem dos dois homens rende diversos debates quanto ao racismo. O próprio Tony Lip, por vezes, escancara seu racismo velado ao “apresentar coisas de negro” para Shirley. O pianista, por sua vez, pouco ligado a esses estereótipos, se vê obrigado a conviver já que Frank, além de seu motorista, era também seu segurança e, por ser branco, quase um passaporte para os estados sulistas.

O debate entre o homem branco pouco culto e o homem negro rico e estudado, por si só parece uma inversão de papeis aos olhos dos brancos do sul. Shirley, convidado para fazer os shows de fim de ano na região, era respeitado como pianista, mas recebia um tratamento escancaradamente racista quando tentava exercer direitos básicos como comer, dormir ou ir ao banheiro. Tudo que fazia referência a pessoas negras era separado.

É nesse contexto que o “The Negro Motorist Green-Book”, livro que de fato foi publicado pelo carteiro negro Victor Hugo Green entre os anos 1936 e 1967, entra na história. Muitos estabelecimento da época se aproveitavam das Leis Jim Crow, extremamente racistas e segregacionistas, para se negar a atender à população negra. Shirley e Vallelonga utilizam o guia para que o pianista fosse sempre levado aos restaurantes e hotéis onde negros eram aceitos. Assim poderia descansar após um show e seguir a viagem no dia seguinte.

O livro foi utilizado de fato por grande parte da população negra americana por muitos anos. Tendo expandido seu mapeamento iniciado apenas em Nova York para todo a país. Cerca de 2 milhões de exemplares chegaram a circular pelos Estados Unidos na época.

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Apesar de se basear em fatos reais, existem incoerências históricas e falhas narrativas devido a trama retratar apenas o olhar de Vallelonga. A família de Donald Shirley por diversas vezes criticou o longa que, para eles, coloca o branco no papel de salvador do homem negro, criando uma narrativa irreal. No programa 1A Movie Club, uma das sobrinhas do pianista, Carol Shirley Kimble, comentou que não houve respeito com os familiares e com o legado do artista, retratado do ponto de vista do homem branco.

— É mais uma vez uma representação da versão de um homem branco da vida de um homem negro. Meu tio era um homem incrivelmente orgulhoso e realizado, assim como a maioria das pessoas em minha família. Retratá-lo como menos que isso é dar o posto de herói a um homem branco. Para este homem negro incrivelmente talentoso é um insulto, na melhor das hipóteses — pontuou Carol.

A editora do site Shadow and Act, Booke Obie, também participou do programa em que Carol deu sua opinião. Para ela, a principal questão é justamente a centralização da experiência do homem branco, longe da temática negra que o título sugere. O próprio livro, que rende nome ao filme, aparece uma única vez no filme, na mão de três homens brancos.

— Acho que ver nossas histórias e nossos ícones negros constantemente filtrados pelas lentes de uma pessoa branca racista, como Tony Lip era, não faz nada para avançar a compreensão da história negra e serve apenas para perpetuar a supremacia branca. — comentou Booke.

Outro ponto que a família ressalta é que, na realidade, Shirley e Vallelonga não teriam a relação forte de amizade que se cria durante o filme. Em contra partida, Nick, filho do motorista, afirma que o longa conta a história real, sem qualquer alteração.

Apesar das críticas da família Shirley, o longa foi um sucesso de crítica. Lançado em 2018, faturou o Oscar por Melhor Ator Codjuvante, para Mahershala Ali, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme, categoria mais importante da premiação.

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Independente da percepção do espectador, o olhar do longa sobre um ponto histórico específico coloca luz sobre um marco importante da jornada negra americana. A história de Donald Shirley ocorreu na mesma década em que houve uma explosão do ativismo pelos direitos civis nos Estados Unidos.

Diversos outros artistas e anônimos, com atitudes pequenas como não ceder seu lugar no ônibus, ou um pouco maiores como se colocar em risco ao frequentar o olho do furacão racista do sul americano para expor sua arte. São pessoas como Donald Shirley que provam, de fato, que o negro pode estar em qualquer lugar.

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27