A Liga das Canelas Pretas e o surgimento de Dirceu Alves, o primeiro negro do S.C Internacional

A competição formada exclusivamente por jogadores negros, também é responsável pela ascensão preta nos gramados do Rio Grande do Sul

--

(Site S.C Internacional)

Nos anos de 1920 o futebol no Brasil atingia um público bem específico: homens de dinheiro, brancos e imigrantes europeus. O esporte inglês recebeu toques alemãs no Rio Grande do Sul, mas evoluiu ao reconhecer o talento negro retirado da Liga das Canelas Pretas. A competição, que teve início na mesma praça onde se localizou o o primeiro campo do S.C. Internacional, rendeu aos porto-alegrenses diversos craques. O primeiro deles foi Dirceu Alves, o negro pioneiro do Colorado.

O Rio Grande do Sul, dentro do mundo esportivo, é lembrado rotineiramente pelo clássico Gre-Nal onde Grêmio e Internacional se encontram. O primeiro confronto aconteceu em 1909 e o Colorado só venceria pela primeira vez seis anos depois. Apesar disso, segundo dados do site do Inter, até a publicação desse texto foram 430 jogos, com 157 vitórias do Inter, 137 do Grêmio e 136 empates. O tricolor não disponibiliza esses dados em seu site.

Parte da rivalidade entre os dois clubes foi construída lá na primeira década dos anos 1900, logo que o Colorado é fundado por três irmãos que não haviam conseguido entrar para o time do Grêmio. Entretanto, a disputa encontrou ainda mais sustentação na segunda década do século XX, com o contorno social além do futebolístico.

Contexto histórico

O Rio Grande do Sul sofreu grande influência alemã em sua colonização. Foi o próprio Dom Pedro I quem recrutou soldados germânicos para compor o exército brasileiro e proteger as fronteiras dos espanhóis que colonizavam os países ao redor da América do Sul. Ao mesmo tempo, os alemãs tinham o trabalho de incentivar a migração da Europa para o Brasil.

Enquanto os soldados recrutados viviam no Rio de Janeiro quando não estavam nas linhas de frente do exército, suas famílias eram mandadas para o Rio Grande do Sul, mais precisamente para Porto Alegre, por onde espalharam sua cultura.

No início dos anos 1900, com o espalhamento das ideias eugenistas e do racismo científico após o fim da escravidão, o Rio Grande do Sul buscou “higienizar” sua população, como era chamado o movimento de marginalização e até mesmo extermínio do povo negro. A limpeza passou pela capital, Porto Alegre, e empurrou os descendentes de africanos para bairros do subúrbio como Cidade Baixa, Areal da Baronesa, Menino Deus e Ilhota.

Essa colonização branca e os ideais racistas e eugenistas que se expandiram pelo Rio Grande do Sul geraram diversos frutos negativos que permeiam até os dias atuais. Foi no estado que surgiu a maior colônia nazista fora da Alemanha, por exemplo. Outro reflexo está no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que revela que em 2017 e 2018 o Rio Grande do Sul foi o estado que mais registrou casos de Injúria Racial no país.

A polêmica mais recente envolvendo o estado está em seu hino, que mesmo tendo sido alterado diversas vezes, mantém versos que diminuem a participação histórica e a raça negra. A versão atual, adotada em 1966, registra a estrofe:

“…Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo…”

— Nós não temos dúvidas que quando eles falam que o povo que não tem virtude acaba por ser escravo, estão falando das pessoas negras. Agora, vamos aceitar, mesmo que de forma momentânea, esse argumento de que isso é apenas um sistema de raciocínio. Mesmo que não fosse direcionado aos negros é inadmissível que um hino oficial naturaliza a escravização seja de qual povo. Nós negros não queremos que nenhum outro povo seja escravizado, então nós não podemos aceitar essa naturalização. Esse trecho diz que, por exemplo, os judeus que foram escravizados em campos de concentração não tinham virtudes. Meus bisavós e nós negros que fomos escravizados por mais de 380 anos não tínhamos virtudes. É absurdo que em pleno o século XXI tenha um símbolo de uma unidade federativa com a naturalização da sub-humanização de pessoas — é o que pontua o mestrando em direito e dirigente nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), Gleidson Renato Martins Dias durante um episódio do podcast Infiltrado na Cast, do autor e historiador Ale Santos.

Surge o S. C. Internacional

Dentro desse contexto, o futebol chegou ao Sul ainda em 1900, quando surgiu o Sport Club Rio Grande, fundado em 19 de julho e considerado por muitos o primeiro time de futebol do Brasil. Em 1903 vieram o Fussball Club Porto Alegre e Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e daí em diante o esporte se tornou popular no Estado.

À época haviam duas obrigatoriedades para se entrar em um clube de futebol: Ser uma pessoa de posses, assim como em todo o resto do país, e ser alemão ou descendente. As características estavam longe de serem as apresentadas pelos irmãos cariocas Henrique, José e Luiz Poppe que chegaram ao Rio Grande em 1908.

Os três, que já haviam passado por São Paulo e conhecido o futebol, trataram de resolver o problema da impossibilidade de jogar bola no Sul. Juntaram alguns amigos e fundaram em 4 de abril de 1909 o Sport Club Internacional. O foi inspirado no homônimo paulista e carrega a simbologia de que ali se aceitariam jogadores de todas as nacionalidades, não só os alemãs. Todavia, “todas as nacionalidades” ainda não incluíam negros.

Henrique, José e Luiz. Os irmãos Poppe(Twitter S.C. Internacional)

A Liga das Canelas Pretas e Dirceu Alves

Todo time de futebol precisa de uma casa e a primeira do Internacional foi justamente no bairro da Ilhota (hoje como Azenha, bairro ao lado da Cidade Baixa), um daqueles para onde os negros foram empurrados. Os primeiros jogos do time foram disputados onde hoje é a Praça Sport Club Internacional, nome obviamente dado em homenagem a equipe. Aquele que viria a ser seu maior rival, o Grêmio, mandava seus jogos no Moinhos de Vento, bairro de luxo da elite financeira porto alegrense.

A permanência no bairro da Ilhota durou pouco. Devido aos fortes alagamentos que o terreno sofria, o Internacional se viu obrigado a encontrar outro lugar para treinar e migrou para o Parque Farroupilha (ou Parque da Redenção), onde passou a mandar seus jogos.

O campo que ficou abandonado foi logo tomado por uma enormidade de negros que queriam praticar o esporte. É nesse espaço que surge, em 13 de maio de 1920, a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense (LNFP), nome que, assim como o do Colorado, expunha a clara contrariedade quanto aos futebol dos alemães. A competição viria a ser conhecida popularmente anos depois como a Liga das Canelas Pretas.

Praça Sport Club Internacional (Twitter Museu do Inter e Google Maps ))

Na década de 1920 o futebol em Porto Alegre se dividia em três principais ligas: “Liga do Sabonete”, disputada por pessoas de “boa família” e grandes posses; a “Liga do Sabão”, frequentada por pessoas de classe média, com menos dinheiro, mas ainda privilegiadas; e a “Liga dos Canelas Pretas”, formada quase em sua totalidade por jogadores negros. Enquanto o nome da primeira surgiu em referência ao artigo de limpeza que era luxo na época, o apelido da última surgiu como forma preconceituosa de se referir a esses atletas de origem africana.

Como times de Bagé e Rio Grande já contavam com jogadores negros, o Inter passou a colher talentos em seu antigo campo. Uma solução boa e barata que moldou o futuro do clube. E foi assim que, dos lamaçais da Ilhota, surgiu um jovem Dirceu Alves. De nascimento desconhecido, se destacou pela sua habilidade e velocidade, características que brilharam aos olhos Colorados.

Dirceu foi recrutado em 1925 como novo meia-direita da equipe alvirrubra, mas somente em 1928 viria a estrear em uma partida oficial. Dirceu Alves falecer em 1952, devido a complicações no fígado. Sua carreia não foi longa e tão pouco rendeu muitas vitórias, mas abriu espaço para entrada de vez do negro no futebol porto-alegrense. A série de contratações de jogadores da liga culminou em um dos mais vitoriosos elencos da história do Internacional, o Rolo Compressor dos anos 1940.

O Rolo Compressor de Tesourinha

A profissionalização do futebol foi acabando com a liga das canelas pretas, mas entre os inúmeros craques que surgiram daquele lamaçal, se destacou Osmar Fortes Barcelos, o Tesourinha, outro negro que saiu da Ilhota para jogar pelo Internacional em 1939, aos 18 anos.

À época, parte do seu pagamento era um quilo de carne e dois litros de leite por dia, mas ainda assim, junto a outros jogadores de múltiplas cores, Tesourinha ajudou o Inter a vencer oito Campeonatos Gaúchos seguidos (de 1940 até 1948), deixando o time em 1949, 10 anos depois de sua estreia. Nesse meio tempo, ainda deu tempo de disputar duas Copa América pela seleção brasileira em 1945 e 1949, ficando com o título da segunda edição e marcando sete gols, incluindo dois na final.

Em 1950 Tesourinha estreia pelo Vasco. Na época, os valores oferecidos pelos cariocas eram melhores e o jogador também afirmou que, não fosse para um clube com tamanha história com os negros, jamais deixaria o Internacional, que também era seu time de coração. Jogou dois anos na equipe e venceu o Carioca no ano de sua estreia.

Em 1952, Tesourinha retorna para Porto Alegre, mas dessa vez para jogar pelo Grêmio. Muitos acreditam que ele tenha sido o primeiro jogador negro da equipe, mas entre 1912 e 1915 os tricolores contaram com Armando Luiz Antunes. Contudo, após sua saída, somente com o já consagrado craque de Inter, Vasco, seleção e Liga das Canelas Pretas é que o clube voltar a dar visão a pessoas de cor.

A falta da representatividade negra no Grêmio em contraste com a sobra no Inter, gerou inclusive diversos acontecimentos racistas. Entre os exemplos está o “Credo do Bom Gremista”, transcrito e declamado por Aurélio de Lima Py, o Dr. Py, patrono do time em 1946. Nele constam versos tão racistas quanto os expostos no hino do estado.

“CREIO no Grêmio porque, trabalhando pelo aprimoramento da raça, colabora na formação de uma raça eugênica para o nosso futuro.
CREIO no Grêmio porque a tradição mantém a família gremista unida, forte e entusiasta.
CREIO no Grêmio porque ele cultua a tradição dos seus feitos através de várias gerações”

Ludopédio, página 11

(Reprodução)

Outro ato gremista que marcou história no Internacional foi a associação das constantes vitórias coloradas na década de 40 a magia negra. Isso, na década de 1960 e até os dias atuais refletiu no mascote da equipe, o Saci Pererê. Personagem do folclore brasileiro e negro.

Também neste período surgiram as provocações aos torcedores alvirrubros, que assistiam os jogos em cima das árvores e ganharam a alcunha de macacada. O Inter ganhou o apelido de clube dos negrinhos, ou dos macacos, algo que hoje a própria equipe adere na representação de Time do Povo. Ainda hoje a torcida do Grêmio chama os torcedores colorados de macacada.

Hoje, por mais que alguns torcedores do Grêmio usem a aparição de Antunes em 1912 como forma de “provar” que o tricolor já contava com negros em seu plantel antes do rival, as redes sociais da equipe ignoram totalmente a existência do jogador e também de Tesourinha, que é lembrado ano após ano nos Twitters de Internacional e Vasco.

A chegada do negro no futebol do Rio Grande do Sul foi demorada e é cercada de uma complexa história que envolve o racismo em diversas vertentes. A construção social que permeia a evolução colorada em comparação ao histórico preconceituoso do lado tricolor de Porto Alegre, é explorado mais a fundo no podcast História Preta, do escritor e roteirista Thiago André.

O surgimento de Dirceu Alves no antigo bairro da Ilhota e a sua chegada pioneira ao Internacional, são responsáveis quase diretos pela ampliação de de espaços para outros jogadores de cor que ainda hoje surgem nas equipes do Sul. E a evolução, que se provou possível pelos pés de Tesourinha anos depois, expandiu ainda mais essa tendência para o lado tricolor de Porto Alegre.

Esses são dois exemplos que saíram literalmente da lama para fazer história no futebol e confirma que, citando Racionais, “até no lixão nasce flor”.

--

--

Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27