Marli Pereira: sinônimo de coragem contra a Ditadura Militar

A mulher que, sozinha, encarou o regime ditatorial para prender os assassinos e torturadores do seu irmão

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Marli no reconhecimento da tropa do 20º batalhão da PM. Alberto Jacob — 1980

A Ditadura Militar (1964–1985) é conhecida como um dos período mais obscuros da história do Brasil. Com incontáveis denúncias de abuso de poder, violação de direitos, tortura e assassinato, os anos de chumbo também marcaram a luta de pessoas que não sucumbiram ao medo e a violência. Marli Coragem viu seu irmão, seu filho e até mesmo seu afilhado serem assassinados pela Polícia Militar do Rio, mas não descansou, encarou a repressão e foi atrás de justiça para sua família.

Marli Pereira Soares nasceu em 25 de outubro de 1954, na Favela do Pinto, antigo terreno próxima ao Leblon. Em 1969 viu sua casa e aproximadamente outros mil barracos serem destruídos após um incêndio que acredita-se ter sido criminoso. O território era uma das principais áreas com previsão de remoção por parte dos militares.

Após o incêndio, Marli e sua família se muraram para Vila Pauline, em Belford Roxo, onde começou a trabalhar como empregada doméstica em casas de família. Também foi na nova morada que viveu os piores dias da sua vida.

Em 12 de outubro de 1979, Marli viu sua casa ser invadida enquanto jantava com seus dois filhos e seu irmão, Paulo Pereira Soares. Os invasores eram seis policiais militares do 20º batalhão, na época, também situado em Belford Roxo. Paulo foi espancado e sequestrado, sendo encontrado cerca de dois dias depois, cravejado por 13 tiros no Morro Santa Maria, em Vila Pauline. Ele tinha 18 anos e sonhava ser militar. Acusado inicialmente de envolvimento com o tráfico, algo que jamais foi provado, foi posteriormente apontado como estuprador por um dos policiais que confessou o assassinato meses depois.

Marli viu tudo, cada rosto e os gravou na mente para sempre. Ela e seu pai foram a 54º Delegacia de Polícia prestar queixa direto ao delegado. Lá, reencontrou três dos homens que levaram seu irmão naquela noite. Mesmo os reconhecendo, não conseguiu garantir a prisão de ambos.

Daquele dia em diante a mídia explorou o caso a fundo. A cobertura em tempo real de cada novo acontecimento deu a Marli uma proteção. Enquanto estivesse nas TVs e jornais estava segura e isso a ajudou a ter coragem para continuar indo ao batalhão. Foram mais de 30 visitas de reconhecimento durante cerca de seis meses.

Um mês depois do início das denuncias, sua casa havia invadida, saqueada e incendiada. Seu marido fugiu com medo de represálias. Neste período, Marli, que estava grávida, viveu com o dinheiro que recebeu dos movimentos feministas enquanto se escondia da polícia todas as vezes que não estava no batalhão. no fim da gestação se internou em uma casa de saúde comandada por amigos de seu advogado, onde deu a luz seu terceiro filho.

Por diversas vezes Marli sofreu coerção para que reconhecesse militares que não eram de fato os responsáveis pelo assassinato. Em entrevistas da época, ela contava que os policiais que eram levados ao reconhecimento se repetiam, impossibilitando que o caso fosse a frente.

— Eu não tenho inimigo nenhum, não devo nada a justiça. Se acaso eu aparecer morta, foi o 20º batalhão — Marli em entrevista a Globo após uma das sessões de reconhecimento. Sua história se tornou parte de um documentário da emissora.

Em 1980, cinco homens se entregaram assumindo a autoria do crime. Marli os reconheceu, mas o sexto homem apontado por ela nunca foi encontrado. No dia 12 de maio do mesmo ano os assassinos foram a julgamento, sendo quatro condenados com penas entre 23 e 12 anos e um absolvido. Apesar disso, apenas um foi realmente preso e voltou as ruas após quatro anos.

“Bem aqui onde estou em pé eu encontrei meu irmão, já morto”. Foto: Reprodução

Quando a luta de Marli parecia ter chego ao final, 14 anos depois, ela voltou as manchetes em situação quase idêntica. Em 9 de janeiro de 1993 seu filho do meio, Sandro, foi assassinado, ainda aos 15 anos de idade. Mais uma vez os culpados foram a polícia militar.

O corpo do menino foi encontrado baleado em um terreno baldio na Estrada Arroio da Pavuna, em Jacarepaguá. Ao seu lado haviam outros dois garotos, de 15 e 17 anos. A polícia os acusou de fazer arrastões em ônibus da região, algo que também nunca foi provado. Três meses depois de seu filho, seu afilhado, Luiz Carlos Fusco, de 18 anos, também foi assassinado, desta vez por policiais do 18º batalhão.

Desde então Marli nunca mais foi encontrada.

A luta da mulher negras do subúrbio carioca rendeu a ela o famoso apelido: Marli Coragem. Sua história se tornou livro, escrito por suas próprias mãos na autobiografia “Marli Mulher: tenho pavor de barata. De polícia não” e música em letra composta por Ivan Lins chamada “Coragem mulher”.

Marli foi um marco pouco lembrado na busca por garantias de direito e respostas durante a ditadura. Infelizmente foi apenas mais uma a perder um irmão ou um filho durante o regime militar. A decisão de encarar o poder vigente abriu caminho para que outras mulheres fizessem o mesmo e se tornou exemplo para movimentos feministas.

— No dia que aconteceu, se pensasse no que já passei e no que ainda vou passar, acho que teria deixado só por conta da justiça de Deus. Mas senti aquela revolta: ver tirarem meu irmão de dentro de casa dormindo, espancarem na minha frente, na frente dos meus filhos, pouco adiante matar igual a um cachorro! Podia ter ido à delegacia e dizer que não sabia quem matou, mas disse: foi a polícia civil e militar. Agora não penso em desistir. Vou até o fim, só paro no dia que morrer. Vou. Acho que só não crio coragem é pra ter medo de barata!(…) Minha mãe falou: ‘Toma vergonha nessa cara! Mulher que é símbolo da coragem no mundo inteiro correndo por causa de barata…’ Tenho pavor de barata, de polícia, não — “Marli Mulher: tenho pavor de barata. De polícia não”, 1981

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27