“O oposto da riqueza é a justiça”. A história por trás de Just Mercy

Um advogado no corredor da morte do Alabama e um homem negro acusado por um crime que não cometeu. O caso que inspirou Luta por Justiça

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(Reprodução)

Um homem negro condenado ao corredor da morte por um assassinato que não cometeu encontra um jovem advogado recém formado, também de cor, disposto a mudar as injustiças e violações dos direitos humanos praticadas pela polícia dos Estados Unidos. A história real de Walter “Johnny D.” McMilliane Bryan Stevenson , levada ao cinema no filme “Just Mercy” (Luta por Justiça) em 2019, coloca luz sobre o racismo que amplia o extermínio negro, mesmo que baseando-se em mentiras ou falhas processuais.

Em novembro de 1986 a cidade de Monteville, no Alabama, sofreu um baque ao ter conhecimento do assassinato de Ronda Morrison, jovem branca de 18 anos, em uma lavanderia na mesma cidade. O criminoso foi cauteloso e não deixou qualquer pista que pudesse ajudar na investigação, o que fez com que durante quase um ano o crime permanecesse qualquer solução.

Walter McMillan era um morador dessa mesma cidade. Casado e pai, trabalhava como madeireiro e usava seu carro para transportar a carga. Um homem branco, condenado a morte e que depôs em acordo para amenizar a própria pena, apontou Johnny D., apelido de Walter, como o assassino de Ronda, no ano anterior.

Baseado apenas na delação caluniosa de Ralph Myers (no filme interpretado por Tim Blake Nelson), o tal homem branco, em junho de 1987 a polícia prendeu McMillan. Johnny D ficou encarcerado durante 15 meses em uma penitenciária para condenados a pena de morte, até que finalmente fosse julgado. Considerado culpado mesmo sem provas concretas, Walter foi condenado a prisão perpétua e cerca de um mês depois teve sua sentença ampliada para pena de morte na cadeira elétrica.

Neste mesmo período, Bryan Stevenson, um jovem advogado negro de 28 anos, decide dedicar sua vida a advogar em defesa de prisioneiros no corredor da morte. Mudando-se de Delaware para o Alabama e começou a trabalhar como defensor público na mesma penitenciária onde McMillan aguardava a data da sua execução.

O cruzamento da história desses dois homens, que terminou em final feliz com a absolvição de McMillan em 1993, é contata em “Luta por Justiça”, com direção de Destin Daniel Cretton e protagonizado por Jamie Foxx no papel de Johnny D. e Michael B. Jordan na produção e na pele de Stevenson.

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O caso de Walter é mais um dos inúmeros marcos referentes a história negra americana que aconteceram no sul do país. Também no estado do Alabama, por exemplo, ocorreu o boicote aos ônibus de Montgomery, motivado pela prisão de Rosa Parks ao se negar a dar seu lugar no coletivo a um homem branco. Também por lá acontece a famosa turnê de Donald Shirley que origina o filme “Green Book” e outros tantos momentos semelhantes.

Há muitos anos esse é o território mais racista dos Estados Unidos e isso fez parte da investigação que levou Johnny D. para a cadeia. Walter estava com sua família no dia e horário do crime, mas nenhuma testemunha de sua parte foi ouvida em seu julgamento; ele jamais havia estado naquela lavanderia, mas isso foi ignorado também. Contudo, como McMillan havia tido um caso com uma mulher branca das redondezas meses antes do crime, foi utilizado o argumento de que ele e envolvia com meninas da cidade.

De fato, apenas os depoimentos de Ralph Myers e do Xerife da cidade, Tom Tate, foram o suficiente para embasar a condenação do madeireiro. a analise de caso de Bryan Stevenson foi o que permitiu a McMillan uma nova esperança de ser liberto. Ainda assim, com novas provas que inocentavam Walter, foram necessários quatro recursos até que fosse realizado o novo julgamento que absolveu Johnny D.

O verdadeiro Bryan Stevenson relatou todo o caso de Johnny D. no livro homônimo ao filme, lançado em 2015. Em uma apresentação sua no TED, em 2012, ele comentou um pouco do porquê a pena de morte ainda é aceita nos Estados Unidos e sobre o quanto ela é injusta. Para ele, as pessoas aprendem a julgar se outras merecem morrer pelos crimes cometidos, mas não observam a perspectiva se o estado tem o direito de matá-las.

— A pena de morte nos Estados Unidos é definida pelo erro. Para cada nove pessoas executadas, identificamos uma inocente que foi absolvida e libertada do corredor da morte. Uma taxa impressionante. Um inocente a cada nove pessoas. Na aviação, jamais permitiríamos que as pessoas voassem se de cada nove aviões que decolassem, um caísse — comentou Bryan.

Bryan e Walter no dia da soltura de Johnny D. (Equal Justice Initiative)

Utilizar a mídia foi uma das armas de Bryan na defesa de Walter. A história de Johnny D foi parar no programa “60' minutes”, da CBS, em novembro de 1992. A transmissão contou, por exemplo, com a participação e entrevistas do próprio McMillan, Bryan Stevenson, de Ralph Myers, Tom Tate e até mesmo dos pais de Ronda.

Um dos pontos importantes revelados pelo programa foram as inconsistência no depoimento de Myers e Tate na acusação. Enquanto defendiam que o corpo de Ronda foi encontra caído, virado para cima, Quando acusou Walter, próximo ao caixa do local, foi revelado pelo primeiro policial a entrar na lavanderia que, na verdade, a menina estava caída de bruços, em outro canto do salão principal do local. O programa também abriu espaço para os álibis de Walter, que confirmaram que o madeireiro estava em sua vizinhança, concertando a própria caminhonete no momento em que o crime ocorreu.

Essas são apenas algumas das falhas processuais que mantiveram McMillan na cadeia. Essa tipo de injustiça, para Bryan, representa o caráter da sociedade e principalmente dos representantes da lei em parte dos EUA.

— O oposto da riqueza não é a pobreza. Não acredito nisso. Penso que em muitos lugares o oposto da riqueza é a justiça. Você não julga o caráter de uma sociedade pelo modo como ela trata seus ricos, poderosos e privilegiados, mas sim como ela trata os pobres, condenados e encarcerados — reforçou Bryan em 2012.

McMillan no corredor da morte (Reprodução)

Após a soltura de Walter, uma nova investigação apontou um homem branco como provável assassino de Ronda. Apesar disso, o caso não foi continuado e jamais foi solucionado. A experiência no corredor da morte pesou sobre Walter por toda a vida, culminando em sua morte em 2013, vítima de uma demência precoce. Ralph Myers, o homem que cometeu perjúrio ao acusar Johnny D., deixou a cadeia em 2017. Já o xerife Tate, jamais foi penalizado.

A Equal Justice Initiative, fundada por Bryan quando chegou ao Alabama, ainda hoje é responsável pela assistência e absolvição de diversos réus no corredor da morte. Até o lançamento do filme, mais de 140 presos já haviam sido libertos, tido suas penas revogadas ou diminuídas com a ajuda do advogado e da sua organização. No mesmo período, cerca de 65 pessoas foram executadas no corredor da morte no Estado.

— Eu passei a entender e acreditar que cada um de nós é maior do que a pior coisa que já fizemos. Acredito nisso para todas as pessoas do planeta. Se alguém mente, ele não é só um mentiroso. Se alguém subtrai algo que não lhe pertence, ele não é apenas um ladrão. Até mesmo se você mata alguém, você não é apenas um assassino. E por isso há essa dignidade humana que deve ser respeitada pela lei — afirmou Bryan em 2012.

A pena de morte é uma tortura cruel e que, por vezes, tira a vida de pessoas que se quer são culpadas. Em sua apresentação no TED, Bryan comenta que os Estados Unidos são o único país a levar crianças para a cadeira elétrica e tratá-las como adultos diante de situações que, por vezes, se quer são de fato culpa delas. Para Stevenson, essa cultura tem a ver com uma invisibilidade dada pelo próprio país a sua história, não apontando seus próprios erros e ignorando o verdadeiro significado do que a pena de morte representa para a população americana.

— Como nos sentiríamos em um mundo onde uma nação como a Alemanha executasse pessoas, especialmente se elas fossem, em sua maioria, judias? Eu não toleraria. Seria inconcebível. Contudo, nesse país nos estados do antigo sul, nós executamos pessoas. Onde a chance de se obter pena de morte é 11 vezes maior se a vítima for branca ao invés de negra e 22 vezes maior se o réu for negro e a vítima branca — pontuou Bryan.

— Quando você é pobre e está condenado à morte, você se preocupa com muitas coisas. Uma das maiores preocupações é se você terá o tipo de assistência jurídica necessária para salvá-lo da execução. Para muitos presos no corredor da morte, leva anos para obter o tipo de representação legal e investigação necessária para provar sua inocência. A justiça é destruída para sempre quando matamos um homem inocente — Walter McMillian, 1993.

(Equal Justice Initiative)

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27