Ponte preta: a macaca de Campinas e o nascimento da democracia racial

O clube que nasceu em 1900, tendo como um de seus fundadores , diretores e jogadores Miguel do Carmo, o primeiro jogador negro do país

--

Foto: Arquivo CPEF/A.A. Ponte Preta

O futebol no Brasil é reconhecido em grande parte pelo talento de jogadores negros, mas em suas origens foi negado aos afrodescendentes o direito de jogar bola. Em 1900, período onde apenas pessoas brancas e bem afortunadas poderiam praticar o esporte, a Ponte Preta, time de Campinas conhecido hoje como Macaca, deu início a primeira democracia racial da história, tendo como um de seus fundadores e diretores Miguel do Carmo, o primeiro jogador negro do Brasil.

Era ainda 1870 quando a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) construiu uma ponte para cruzar os trilhos da da ferrovia que ligava Campinas e Jundiaí. Toda em madeira, a travessia recebia tratamentos com piche, uma resina de cor negra e pegajosa, para conservar a estrutura. Não demorou para que recebesse o apelido de Ponte Preta, nome que em 1972 se tornou também alcunha do bairro em seu entorno.

Em 10 de abril de 1885, 15 anos depois, nascia em Jundiaí Jorge Araújo Miguel do Carmo, o Migué. Ainda jovem mudou-se para a Rua da Abolição, via que cruza o bairro Ponte Preta, onde cresceu, trabalhou e constituiu família. Durante alguns anos trabalhou na CPEF em Campinas, até ser transferido de volta para sua cidade natal em 1904.

<a href="https://www.g1.com.br/" target="_blank">
Estado atual da ponte que deu origem ao nome do bairro e do clube, localizada ao lado da rotatória que liga a Rua da Abolição e a Rua Proença. Imagens: Google Maps e Google Earth

Durante o período em que permaneceu em Campinas, Miguel se tornou amigo de alguns outros homens do bairro com quem jogava bola constantemente. Migué ainda tinha apenas 15 anos quando assinou ao lado de Alberto Aranha, Antônio de Oliveira, Dante Pera, Luiz Afonso, Luiz Garibaldi Burghi, Pedro Vieira da Silva e Zico Vieira, além do alemão Theodor Kutter e do austríaco Nicolau Burghia ata de no dia 11 de agosto de 1900, em homenagem ao aniversário da CPEF, fundaram a Associação Atlética Ponte Preta (AAPP), um dos primeiros clubes de futebol em atividade ininterrupta no Brasil.

A primeira equipe de jogadores da Ponte Preta contava com operários, ferroviários, imigrantes alemães, austríacos, portugueses e outros trabalhadores do bairro. As origens e cores eram diversas, o que rendeu a equipe a alcunha de “democracia racial”.

Esse caráter popular da equipe campinense ultrapassou os gramados e chegou a torcida, que se formou também através das camadas mais populares do bairro. É claro que, apenas 12 anos após o fim da escravidão, a cor e trabalho daquelas pessoas que jogavam ou apoiavam o novo time passou a incomodar e por isso os torcedores rivais apelidaram a equipe de macacada.

A “brincadeira” extremamente racista se tornou alguns anos depois o apelido e mascote oficial da equipe, que escolheus a Macaca para representá-los.

Foto: Site Ponte Preta

Miguel do Carmo jogou na equipe até 1904, ano também em que se mudou para Jundiaí. Infelizmente ainda são escassos registros do jogador, sabendo-se apenas que era um meio-campista. Migué morreu em 1932, aos 47 anos, após complicações durante uma cirurgia no estômago, mas sua família ainda está dentro do mundo do futebol. Um de seus 10 filhos, Geraldo do Carmo, se tornou um importante zagueiro do Guarani, grande rival da equipe pontepretana. Seus bisnetos, Gabriel e Lucas do Carmo, também tentaram seguir os mesmos passos, mas sem muito sucesso.

O historiador José Moraes dos Santos Neto, que pesquisa a fundo a história da Ponte Preta e principalmente de Migué do Carmo, ainda luta para conseguir apoio e fomento para aprofundar a procura por mais registros que comprovem a participação do jogador em partidas da equipe.

Além de Miguel, Santos Neto acredita que outros jogadores que deram início ao clube também eram negros. O historiador já visitou diversas famílias com os sobrenomes dos atletas listados nas primeiras atas da Ponte Preta, assim inclusive encontrando os familiares de Migué.

A pesquisa rendeu o pedido do clube a FIFA, entidade máxima do futebol, para que a equipe fosse de fato reconhecida como a primeira a permitir a participação de negros e aplicar o conceito de democracia racial.

— Embora outros clubes reivindiquem esse pioneirismo, como o Vasco da Gama, por exemplo, a documentação histórica confirma cabalmente que a Ponte foi a primeira democracia racial do futebol brasileiro. Outros clubes apenas divulgaram a informação que foi aceita como verdadeira por muita gente, apesar de ser improcedente — pontuou José Moraes dos Santos Neto em entrevista ao site da Ponte Preta durante o lançamento do selo postal em homenagem a Migué

Em evento festivo em 2014 a Ponte deu a Geraldo do Carmo (esquerda) o título de cidadão pontepretano, em homenagens aos feitos de seu pai. Na imagem, Geraldo está ao lado de sua filha, a jornalista Raquel do Carmo. Foto: Site Ponte Preta

Seja para o bem ou para o mal, pautas envolvendo os negros ainda rodeiam a Ponte Preta. Em 2014 o goleiro Aranha, um dos maiores atletas da história da Macaca, na época jogando pelo Santos, sofreu com ofensas e coros racistas por parte da torcida do Grêmio em um jogo da Copa do Brasil. Na ocasião, as denúncias do jogador resultaram na exclusão do clube gaúcho da competição.

Já na temporada 2020, que se estendeu até o início de 2021 devido a pandemia de Covid-19, a Ponte Preta foi a única equipe entre os clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro a ter um presidente afrodescendente. Tiãozinho, como é conhecido Sebastião Arcanjo, se tornou também o primeiro negro da Macaca.

— Em qualquer organização, nós, negros, estamos a quilômetros das tomadas de decisão. No futebol, não somos notados além das quatro linhas. Vivemos em um país que está acostumado a mandar em nós e não a receber nossas ordens, por isso tenho um grande desafio pela frente — pontuou Tiãozinho em sua posse.

O esporte mais popular do país surgiu na Inglaterra durante os anos de 1830. Em terras tupiniquins, apenas em 1895, houve a realização do primeiro jogo oficial. Levaram-se anos para que fosse comum assistir pessoas de pele escura nos gramados correndo com a bola, mas quando tudo ainda era negado ao povo preto, a Macaca de Campinas, sem saber, já havia dado início a uma história de glórias.

Hoje, grande parte dos maiores jogadores do país são pretos, incluindo Pelé, o maior de todos os tempos. Mas tudo teria sido mais difícil se lá atrás não houvesse, em um bairro de Campinas, ao lado de uma ponte, surgido o clube e crescido o primeiro negro da história do futebol brasileiro.

--

--

Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27