Uma noite em Miami: a reflexão sobre o encontro que marcou a luta contra o racismo nos anos 1960

O primeiro mundial de boxe e a conversa histórica que uniu Cassius Clay, Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown. Quatro ícones do movimento negro

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(Reprodução)

Na noite em que o maior boxeador de todos os tempos se tornou campeão mundial pela primeira vez, ele e outras três grandes figuras negras se encontraram para comemorar. Cassius Clay, Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown foram até o Hampton House Motel, um dos poucos hotéis onde pessoas de cor podiam ficar na cidade naquela época., e o que de fato aconteceu lá é uma incógnita que nunca será sanada. A premissa do filme “One Night in Miami” (Uma noite em Miami” é justamente permitir ao público imaginar o que se passou no encontro entre essas quatro grandes lendas.

Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), o ativista negro que aproximou Cassius do Islã e que foi uma das principais liderança na luta pelos direitos civis americanos; Jim Brown (Aldis Hodge), o jogador do Cleveland Browns, time de futebol americano, e posteriormente ator, três vezes MVP e uma vez campeão da NFL. Considerado por muitos o maior de todos os tempos, contribuía financeiramente para negócios de proprietários negros; e Sam Cooke (Leslie Odom Jr), cantor e compositor conhecido como rei do Soul, foi o primeiro artista negro a estabelecer sua própria produtora e responsável por letras sobre a jornada do povo negro durante o período segregacionista da história americana.

Esses foram os três grandes nomes que se juntaram a Cassius Clay (no filme interpretado por Eli Goree) na noite de 25 de fevereiro de 1964, quando o jovem de 22 anos, no Miami Convention Hall, venceu Sonny Liston na disputa do cinturão mundial de boxe peso pesado. O primeiro título do garoto falastrão foi considerado a zebra da noite e claro, isso pedia por uma grande comemoração. Malcolm X estava hospedado no Hampton House Motel, localizado em Brownsville, Miami, onde o encontro foi realizado.

Esse momento, contado por alto em uma biografia de Ali e que ainda é relembrado em raras oportunidades por Jim Brown, foi o que levou Ken Powers, diretor do filme Soul, a imaginar o que teria acontecido nessa festividade. Surgiu assim em 2013 a peça “Uma noite em Miami”, homônima e que deu origem a ideia do filme, lançado no fim de 2020.

Com a direção da ganhadora do Oscar de atriz coadjuvante de 2019, Regina King, o filme, assim como a peça, busca reviver, mesmo que de forma totalmente fantasiosa, o que de fato foi vivido naquela quarto. Quatro importantes homens negros, bem sucedidos em suas áreas e que estavam ou se envolveriam com a luta pelos direitos civis americanos. Apesar de objetivos semelhantes, dentro do filme, as visões distintas de como iniciar as mudanças necessárias são justamente o que causa o movimento da trama.

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No longa, as quatro personalidades debatem pontos de vista diferentes sobre a importância da atuação de cada negro dentro do ativismo. Exemplificando de forma bem resumida e rasa, Malcolm, que é conhecido por um temperamento e militância explosivos, acredita que todos devem estar envolvidos com os movimentos de libertação do povo negro; Sam, que tinha um talento nato para fazer dinheiro, imagina que se todos os negros estiverem com os bolsos cheios, pouco importa a opinião dos outros; Jim Brown, transita entre o ouvinte passivo e o conselheiro, usando o tempo todo argumentos que não contrapões, mas reestabelecem os ânimos em um patamar menos acalorado; e Cassius, mais novo entre os amigos, colhe um pouco de cada uma dessas visões. Por um momento, o menino que se intitulava o rei do mundo, cheio de autoestima, abaixa a cabeça para aprender e compreender as ideias que formam o ativismo de cada uma daqueles personalidades. Isso não tira dele a certeza de que sonha em ver seu povo livre, apenas amplia sua maneira de pensar como isso deve ser feito.

O filme retrata esse encontro como o ponto de partida para mudanças na carreira e no ativismo dos quatro homens e de fato os anos seguintes marcaram grandes mudanças na vida de todos eles. Sam foi assassinado no final daquele ano e Malcolm no início de 1965. No mesmo período, Jim Brown largou o futebol americano para viver apenas do cinema. Clay, que havia se tornado o campeão naquela noite, anunciou no dia seguinte sua conversão ao Islã e mudança de nome para Mohammad Ali. Poucos anos depois teve seu título tomado pela confederação de boxe americana por se negar a lutar na Guerra do Vietnã pelos Estados Unidos.

Para a produção e direção, cada uma das visões desses homens foi modificada após o encontro. É claro que toda a conversa é baseada em imaginação e alguns fatos foram redirecionados no espaço, como o lançamento da canção de Sam Cooke “A Change Is Gonna Come” em um programa de TV, algo que não aconteceu de fato, pois a música foi lançada dias após sua morte no fim de 1964. Apesar disso, é inspirador sonhar que aquela conversa foi real.

Hoje, apenas Jim Brown continua vivo, já que Mohammad Ali veio a óbito em 2016. No documentário “As duas mortes de Sam Cooke”, lançado em 2019, o ex-jogador fala um pouco de como foi aquela noite e como era incomum que os quatro estivessem no mesmo lugar ao mesmo tempo.

— A resistência era importante para todos nós, porque desafiávamos a cidadania de segunda classe e o fato de sermos considerados inferiores. Ao nos pronunciarmos, o risco era de perder dinheiro, perder popularidade no país. Mas os que estavam lá naquela noite não se importavam com isso. Conversamos sobre nosso posicionamento e a exigência dos nossos direitos — Pontuou Jim Brown.

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A trama de “Uma noite em Miami” e a adaptação do teatro para o Amazon Prime Vídeo colocaram o filme na lista de indicados ao Oscar de 2021 nas categorias Melhor roteiro adaptado e Melhor canção original, com “Speak now”. O ator Leslie Odom Jr, que da vida a Sam Cooke, concorreu como melhor ator coadjuvantes. Infelizmente o filme não garantiu nenhuma estatueta.

Uma noite em Miami serve não só como inspiração como também um direcionador de onde os negros devem se colocar na luta por seus direitos e contra o racismo. O encontro metade real e metade ficcional apresentado por Regina King se torna mais do que uma imaginação baseada em fatos reais e se torna facilmente crível. Trazer a tona esse encontro com quatro ícones incontestáveis do movimento negro não é só importante. É necessário.

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Igor Santana
Paginas em preto — Memórias de um Griot

Jornalista, assessor da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e programador de jogos digitais nas horas vagas. @santanaigor27