Can’t take my eyes off you #22

Nickolas Ranullo
Memórias de um pianista de bordel
10 min readJun 8, 2018

Nós dois estávamos vendo um filme na sala do meu bagunçado — mas já não tanto — apartamento numa dessas noites de verão. Ela estava deitada com a cabeça no meu colo enquanto eu lhe fazia o cafuné que ela tanto gostava. Eu, por vezes, não sabia tirar os olhos da Gabi, era como se ela fosse boa demais para ser verdade. Nesse momento, porém, eu senti algo diferente. Algo parecia… Faltar.

Fazia pouco menos de um ano que eu e a Gabi tínhamos, enfim, “oficializado” todo o nosso relacionamento depois do casamento do Marco com a Isa. As “saídas de casal” entre nós e outros casais de amigos foram se tornando mais e mais frequentes, já tinham coisas dela na minha casa e vice-versa, eu sentia as nossas vidas estavam bem encaminhadas, mas… Faltava algo.

Eu fiquei com esse pensamento martelando na minha cabeça por dias e dias. Eu precisava falar com alguém. E justamente essa necessidade foi o que me levou até o sebo de um conhecido meu naquela sexta-feira. O trabalho home-office, por fim, tinha lá suas vantagens. Eu poderia fazer o meu serviço de qualquer lugar.

O sebo é localizado em uma rua de paralelepípedos no bairro de Pinheiros. Como se isso não bastasse para ser um canto aconchegante, ainda temos um jazz como fundo musical. Perfeito para que eu escrevesse os artigos que seriam publicados no dia seguinte. A taça de vinho, especial para amigos, foi o toque final no meu trabalho, além de ser exatamente que eu precisava para finalmente comentar sobre a minha situação.

O Ricardo, dono do sebo, era um jornalista como eu, mas tinha largado a profissão — ou quase isso — alguns anos atrás para tocar um negócio próprio, pequeno e que lhe fizesse ficar mais próximo de sua família.

Ele era bem mais velho do que eu, os fios grisalhos já tomavam um espaço considerável na barba e nos cabelos compridos. O estilo jovem de se vestir, porém, dava uma certa disfarçada na idade que tinha.

— E então, meu amigo, o que houve? — Ricardo me questionou enquanto me servia de outra taça.

— Eu e a Gabi — ele ficou me fitando alguns segundos, eu ainda não tinha comentado com ninguém sobre como eu estava me sentindo e, de vez em quando, tenho problemas em encontrar as palavras certas. Principalmente em algo pessoal assim. Ele piscou por detrás dos óculos, a pausa dramática talvez o estivesse matando, acho que a essa altura do campeonato ele já esperava que eu anunciasse um término ou algo assim — Meu velho, eu não sei o que “falta”.

— Como assim? — ele sentou-se ao meu lado num banquinho em frente ao sebo, isso permitia que ficássemos de olho no seu charmoso Fiat 600 verdinho que ele deixava estacionado no outro lado da rua, além, é claro, de aproveitar mais o clima de garoa que refrescava a cidade.

— Você entende… — tomei um gole do vinho — Faz quase um ano que eu e ela fomos ao casamento do Marco, nós estamos com uma vida ótima. Claro, vez ou outra temos uma briga, uma discussão, mas…

— Coisas da vida de casal.

— Exatamente! Sei lá, algumas coisas vem se passando pela minha cabeça.

— Que tipo de coisas?

— Eu não sei bem — eu franzi a testa, afinal de contas, realmente eu não sabia bem o que era que eu estava sentindo— É como se alguma página tivesse de ser virada, entende?

— E isso é ruim? Só um segundo, segure o pensamento que eu vou atender a moça aqui e já retornamos à conversa.

— Sem problemas.

Comércio tem lá suas peculiaridades. Tem dias que as coisas ficam paradas por horas, aí quando você simplesmente acha que não vai ter o menor movimento, aparece o primeiro cliente, o segundo, o terceiro, o quarto e, do nada, o ambiente já está cheio de gente.

O sebo não era lá dos maiores, é verdade, afinal de contas, ele era localizado na garagem de um condomínio e isso acabava ajudando com a sensação de estar lotado. Eu, vendo que o movimento começava a aumentar, fui ajudar o meu amigo com algumas vendas.

O acervo do Ricardo era bem eclético, eu diria. Isso permitia que muita gente diferente fosse por lá para buscar por produtos que variavam entre livros, cartões postais antigos, revistas; box de séries, alguns filmes… E olha só, ele tinha o “10 Coisas Que Eu Odeio Em Você”! Esse é um dos filmes favoritos da Gabi. Claro, a história até é bonitinha, mas eu sei que ela gosta mesmo é pela participação do Ledger.

Pensando sobre o filme, porém, me ocorreu um estalo. Uma ideia. E a repentina sensação de que, talvez, fosse exatamente isso o que eu precisava fazer para virar a tal página. A ideia era arriscada? Demais, mas… Poderia dar muito certo! Ou muito errado.

Quase uma hora se passou até que eu conseguisse me sentar novamente para conversar com o Ricardo.

— Então, onde estávamos? — ele questionou servindo-se de uma nova taça.

— Em como eu e a Gabriela estamos bem e em como eu não sei bem o que sentir em relação a isso.

— Sim sim, verdade. Acha que está faltando alguma coisa?

— Sim e não. Não acho que nos falte sentimento, hábitos ou algo assim, mas… Falta algo. E eu acho que já sei o que é.

— E o que seria, então?

Eu contei-lhe do meu plano. E pedi uma certa ajuda, ele conhecia muita gente, eu sabia disso e, no final das contas, uma mão amiga sempre cai bem. Na mesma hora em que terminei de explicar o que pretendia, o Ricardo começou a trabalhar com seus contatos e não demoramos em nada para que as coisas estivessem praticamente fechadas.

Para o meu plano funcionar, porém, eu precisava acertar algo com a principal pessoa envolvida. Sai do sebo e logo liguei para a Gabi.

— Boa tarde, amor!

— Boa tarde, amor — ela disse seguido de um bocejo — tudo bem?

— Eu tô bem, mas o dia de alguém é que não parece lá muito agitado. Tá tudo bem?

— Tá sim, o dia aqui no trabalho que tá meio morto, só consigo pensar na minha cama, na minha cama e na minha cama.

— Que beleza, hein? — eu devolvi, rindo — Então, tô ligando pra saber se você quer fazer alguma coisa no domingo.

— Domingo? Claro. O que tem em mente?

— Estava pensando em almoçarmos juntos e depois fazermos umas fotos ali no Beco do Batman e depois um cineminha ali pelos lados da Paulista, o que acha?

— Programa de casalzinho…

— Ideia ruim?

— Não, não, seu bobo! É bonitinho te ver com esses planinhos de casalzinho mesmo depois desse tempo que estamos juntos. E eu gostei da ideia, faz tempo que não faço algumas fotos também. Vamos só nós dois?

— Sim.

— Fechado então! Te espero no domingo.

— Fechado! Beijos!

— Beijos!

Agora sim, muito do meu plano estava fechado, mesmo assim, eu sabia que o meu sábado seria agitado.

E eu, definitivamente, não estava enganado. Liguei para o Ricardo para pegar alguns contatos, acertei alguns detalhes com algumas pessoas e agora só faltava o mais cansativo: Uma passada pelo centro velho da cidade. Apesar da minha corrida durante o dia, eu estava acompanhado do meu celular e apenas uma música tocou por todo o sábado. Eu tinha um bom motivo pra isso.

O domingo, graças a Deus, também seguiu como planejado. Eu apareci na casa da Gabriela um pouco antes do almoço, a ajudei com os últimos detalhes na cozinha, comemos e deixamos tudo no jeito para as fotos que viriam.

O Beco do Batman, para quem não conhece, fica na região da Vila Madalena. É um espaço “artístico” da cidade, vários grafites a céu aberto — e que têm certa periodicidade, o que ajuda a nunca fazer fotos muito repetidas por lá. Tem o Armazém da Cidade, um espaço onde rolam atividades culturais como workshops de fotografia, shows, exposições e coisas do gênero.

O dia, ensolarado, ajudou para que as fotos ficassem ótimas. A Gabi tem talento para fotografar qualquer coisa, pode ser uma pessoa ou uma paisagem, ela vai saber capturar uma beleza singular sobre o que vê. Eu, por minha vez, já tenho um olhar um pouquinho melhor para paisagens do que para pessoas.

Ela usava as roupas básicas que sempre usava quando saíamos e tínhamos de andar mais. A regata branca, a calça legging preta e tênis. Ver ela ali, entre todas as outras pessoas, fotografando os grafites e… Tudo isso apenas me fazia pensar em como eu estava prestar a dar um passo importantíssimo em nossa vida juntos. E se ela não pensasse o mesmo? Será que estaria tudo perdido? Não nego que, por algum momento, a ideia de cancelar tudo o que havia planejado me passou pela cabeça.

Em algum momento, porém, ela me olhou, sorrindo. Os olhos puxado transmitiam a felicidade de estar ali, de estar comigo e… Toda e qualquer dúvida que eu poderia ter, simplesmente sumiu.

Fizemos mais algumas fotos por ali, paramos pra tomar algo juntos — eu sempre com a cerveja, ela sempre com a caipirinha — e tomamos o caminho da Paulista.

A Avenida é fechada para carros em todos os domingos para que as pessoas ocupem um espaço que lhes é de direito. A pluralidade de atrações, obviamente, trazia um público ainda mais eclético que já atraia semanalmente. Essa era combinação perfeita pra mais e mais fotos.

Fomos ao cinema, assistimos a um filme e eu juro que realmente não me lembro do que assistimos. Isso aconteceu pois a minha ansiedade para o que estava por vir era gigantesca. O suor frio, por vezes, chegou perto de me entregar.

— Você tá tramando alguma coisa… — ela me parou na saída da sala do cinema e falou enquanto cerrava os olhos.

— Tramando? Eu? Não… O que eu poderia estar tramando? — o suor escorria na minha testa.

— Rodrigues, Rodrigues…

— Você gosta do meu sobrenome, não gosta?

— Não fuja do assunto! — ela riu

— Eu não tô fugindo, apenas fiz uma pergunta — duvido que ela tenha desencanado, mas né…

— Gosto, gosto… — já estava tão distraída que logo se desligou do que tinha começado a me perguntar e logo voltamos a caminhar.

Comemos alguma besteira enquanto a noite já caia pela cidade.

— Vamos dar outra volta na Paulista?

— Mas agora?

— É! Vamos?

— Amor, eu tô cansada.

— É só uma última volta, prometo. Você sabe que gosto de tirar fotos aqui a noite.

— Eu sei, eu sei… — ela suspirou e me encarou mais uma vez, antes de sorrir — Tá bom, tá bom… Vamos lá então.

A Avenida, em determinado horário, volta a permitir a circulação de carros, isso, porém, não impede que muitos artistas invadam as calçadas e passem a se apresentar ali mesmo.

Uma banda parecia se arrumar em frente ao Conjunto Nacional.

— Amor, vamos ver o que eles vão tocar?

— Tudo bem, tudo bem. — eu sentia o cansaço na voz dela, mas eu não deixaria o meu plano de lado aos 48’ do segundo tempo.

Caminhamos até onde o grupo se ajeitava. Eu logo reconheci um ou outro rosto ali no meio. A Gabriela, então, começou a se ajeitar para fotografar as pessoas que passeavam por ali, deixando de prestar atenção em mim por dois minutos. E era só isso que eu precisava.

A banda, então, começou a tocar. Ela, como eu logo imaginei, logo reconheceu o ritmo da música e se virou para vê-los tocando. A surpresa no rosto dela, porém, foi ver que eu estava no microfone.

— Talvez eu tenha de te pedir desculpas depois disso — eu sorri — You’re just too good to be true, can’t take my eyes off of you.

Quem diria que apenas essas poucas palavras fariam seus olhinhos se encherem de lágrimas. Li em seus lábios ela dizer que não acreditava no que eu estava fazendo. Até hoje eu não sei se ela chorou por ter puramente se emocionado ou por eu ser um péssimo cantor, um dia eu talvez a questione sobre isso. Eu segui cantando — tentando — algumas pessoas começavam a parar pra ver o motivo da cena, algumas sacavam o celular para fotografar, outras filmavam.

Oh pretty baby, now that I found you stay and let me love you, baby. Let me love you…

A banda seguiu tocando mesmo depois que eu parei de cantar. Ela veio em minha direção e me deu um dos beijos que eu jamais vou tirar da minha memória. O público, então, aplaudiu sem saber que…

— Eu te amo, eu te amo tanto.

— Então eu não tenho de pedir desculpas por ter estragado a música? — ela me deu um soco no ombro.

— Não, não precisa. Você não estragou nada, seu bobo.

— Ótimo — eu sorri — você só precisa se afastar um pouquinho. Eu ainda não acabei — a cara dela, confusa, foi uma das melhores coisas que eu já vi, não posso negar.

— Não? — ela se afastou alguns passos.

— Não.

Dentro do chapéu que um dos integrantes da banda havia colocado no chão para que as pessoas depositassem qualquer quantia, estava a minha real intenção. Eu tirei uma caixinha azul — sua cor favorita — de dentro dele.

Me ajoelhei. Existem clichês, meus amigos, que realmente precisam ser seguidos.

A Gabriela chorava, mesmo que carregasse um sorriso bobo em seus lábios. Isso, é claro, mexia comigo.

— Eu, desde que te vi, realmente não consegui tirar os meus olhos de você. Você é boa demais pra ser verdade e, por ser assim, eu por vezes acho que não te mereço. Você, porém, faz questão de me mostrar, todos os dias, o quanto o meu amor por você é muito mais do que recíproco. Eu nunca vivi algo assim antes. E isso é tão bom que eu não quero te ver longe de mim nunca mais, quero que você fique sempre ao meu lado. Então, Gabriela Sakamoto, você aceita casar comigo?

O público que gravava a cena — e que já era um pouco maior do que eu imaginava que poderia se reunir — não sabia se comemorava já ou se esperava a resposta dela. Os 10 segundos que ela demorou foram, talvez, os mais longos de toda a minha vida.

— É claro que eu aceito! — ela correu pra mim, recebi cada um dos seus beijos enquanto ouvia os aplausos das pessoas que assistiam a cena.

A nossa vida juntos acabava, agora, de encerrar um capítulo e de começar outro tão importante quanto o anterior. Só que, sendo bem sincero, eu não estava tão preocupado naquele momento, apenas queria aproveitar a noite ali, com ela, da forma que eu havia imaginado e, de fato, realizado. Não faltava nada. Na realidade, com ela, nunca me faltou nada.

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Nickolas Ranullo
Memórias de um pianista de bordel

"Não digam a minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel".