River #29

Nickolas Ranullo
Memórias de um pianista de bordel
6 min readJul 3, 2018

Caminhos. A vida é um gigantesco amontoado de caminhos. O motivo de eu achar isso? Vocês tem alguma noção de quantas vidas já tocaram? Não me refiro apenas aquele ciclo de pessoas com quem você tem contato. Esqueça família, amigos, colegas de trabalho… Falo sobre pessoas que não “pesam” na sua vida. Falo sobre aquela pessoa para quem você sorriu no ônibus ontem à tarde. Falo sobre a pessoa que você esbarrou na rua e derrubou a sacola que ela carregava e não se propôs a ajuda-la por estar com muita pressa até mesmo para se desculpar. Falo sobre o morador de rua que você, no caminho de volta pra casa, fingiu ignorar enquanto ele se protegia da chuva que caia. Essas pessoas, mesmo que você não saiba — ou, quem sabe, até mesmo não acredite — passaram pela sua vida. Traçaram, mesmo que por segundos, o mesmo caminho que você.

Caminhos. A gente parece que sempre sabe para onde vamos, não é? Tomamos nossa decisão acreditando fielmente de que ali, bem ali na frente, naquele espaço que temos o costume de chamar de “futuro”, nós estaremos lá, realizados. Infelizmente as coisas não são assim tão simples. Bem, para alguns, talvez, possa ser. Para a maioria das pessoas, porém, não costuma ser tão fácil. A gente vence obstáculos todos os dias. Uns grandes, outros pequenos. Eles sempre estão ali. Algumas pessoas, porém, enxergam uma pedra no meio caminho. Eu, muitas vezes, busco um caminho pela pedra. Isso é o que me fez chegar até aqui. Seja pelo lado bom ou pelo lado ruim.

— Água, senhor? — a comissária de bordo me tirou dos meus devaneios.

— Oi? — eu, mesmo depois desses anos todos, ainda demorava alguns segundos para voltar de minhas “viagens”.

— Água? — acho que comissárias estão acostumadas a tirar pessoas de devaneios, principalmente quando estavam como eu, sentadas na janela do avião. A vista era capaz de distrair qualquer pessoa.

— Ah sim, claro. Por favor.

Peguei o copo de água, agradeci e retribui o simpático sorriso da moça que logo tratou de seguir pelo avião.

Eu tinha escolhido um lugar junto à janela justamente para que eu pudesse ter aquela visão. São Paulo, com o céu limpo, proporciona um espetáculo quando vista lá de cima, sempre pensei em como era curioso pensar nas milhares de vidas que se seguiam ali, quilômetros abaixo de mim. A mulher que volta pra casa depois do dia cansativo no serviço. O pai que brinca com as crianças na rua. O casal que faz as primeiras juras de amor. O casal que faz sua última despedida. O choro do bebê que acabou de chegar ao nosso mundo maluco. A última batida do coração de alguém.

Esses meus devaneios sempre ficavam mais frequentes quando eu estava sozinho, da mesma forma que eu estava naquela noite. As luzes de São Paulo também são um espetáculo lá de cima. Os arranha-céus, as ruas iluminadas… Tudo isso estava me fazendo pensar demais nas coisas que tinham me feito chegar até aqui.

Desviei meu olhar da janela e prestei atenção no avião. As luzes baixas no corredor respeitavam as pessoas que aproveitavam a calmaria do voo para cochilar um pouco. A poltrona ao meu lado estava vazia. Ouvia algum cochicho vindo de direções diferentes. Olhei para a minha mão esquerda antes de tomar mais um gole d’água. Ver a aliança ainda no meu dedo serviu para mais um devaneio meu.

Silêncio.

Palavras machucam muito, mas para quem vive delas… O silêncio machuca mais. Parece que falta a reação, parece que falta o ponto final. É como se tudo o que levou até ali…

Viram? O silêncio parece não acabar com o que acontece.

A minha memória puxou, então, um dos mais dolorosos silêncios.

— Você não vai dizer nada? — eu a questionei ainda naquele quarto de hotel que decidimos passar as férias.

Os seus olhos puxados me encaravam. Eu tinha a impressão de que eles, se pudessem falar qualquer coisa, eles falariam. Os seus lábios, porém, permaneceram selados.

— Tudo. Tudo o que fizemos até hoje… E você não tem nada a falar em um momento como esse? — eu me lembro de sentir os olhos marejarem, a voz embargar, mas… Eu não choraria.

O silêncio dela, naquele quarto, era ensurdecedor. Ela permanecia firme, sentada na cama e me encarando firmemente. Eu não sabia desvendar o que se passava ali dentro de sua cabeça e, sinceramente, talvez fosse melhor não saber.

— Eu vou embora — ela piscou — Chega! — eu finalmente tive um pouco mais de noção do meu tom de voz. Não que eu gritasse com ela, mas… Como já me falaram certa vez, eu não precisava levantar muito o tom de voz para que ela fosse ouvida ao longe. Hora do meu silêncio se fazer presente também.

Eu puxei as minhas duas malas e comecei a jogar as minhas coisas dentro. Vez ou outra eu olhava para a Gabriela buscando qualquer resposta, qualquer traço de reação, mas… Ela permanecia sentada na cama, calada, os olhos firmes, as pernas e braços cruzados.

Ela permaneceu assim até que eu terminasse de arrumar tudo.

— Você não vai falar nada mesmo?

Silêncio…

Eu fiz a menção, então, de tirar a aliança.

— Deixa pra você fazer isso em casa. Não precisa fazer aqui na minha frente. — ela finalmente se manifestou.

— Pensei que não fosse falar nada.

— E o que você quer que eu fale?

— Não sei. Qualquer coisa.

— Qualquer coisa… — ela devolveu, com tom debochado.

— É, você realmente não se importa mais.

— Você que pediu pra falar qualquer coisa. Agora é que parece que nada te satisfaz mais.

— Nada me satisfaz? São anos com você. Anos. E veja só onde estamos agora! Uma viagem que deveria ser para nos juntar mais, nos separou.

— Nos separou por você querer assim.

— E sou só eu?

Silêncio, novamente.

— Viu? Você não reage mais. Eu não sei mais o que fazer com a gente. Acho que, sei lá, depois de tantos problemas — aqui, leitor, assumo uma culpa. Eu não gosto de trazer problemas até vocês. A realidade já é recheada deles, por qual motivo, então, eu traria os meus problemas com ela até vocês? Nunca valeu a pena e, se querem saber, continua sem valer — A gente se desgastou mais do que podia, mais do que deveria.

Eu finalmente vi alguma emoção naqueles olhos. Vi eles se encherem d’água.

— Eu amo você. Isso é inegável. Tudo o que eu já fiz, tudo o que já vivemos… Tudo isso apenas pode provar a você que eu sempre lutei por nós dois, mas hoje… Eu não tenho mais forças pra lutar sozinho. Você, além de tudo, não mostra que quer que eu lute por nós.

O silêncio inundou aquele quarto enquanto eu ia para a porta.

— Adeus…

Sai do quarto sem bater a porta. Não preciso de uma cena. Paguei o que tinha de ser pago, chamei o táxi, tomei o rumo do aeroporto e comprei minha passagem de volta para São Paulo. Na minha cabeça, por todo esse tempo, um zunido me deixava incomodado, mas ao mesmo tempo, em um estado de incredulidade.

Agora eu estava ali, naquele avião, olhando pela janela e pensando em tudo.

Vi, então, uma cena que eu não esperava ver daquela forma. Brilhos e mais brilhos no céu da cidade. Os fogos aconteciam. Era meia-noite do dia 1 de Janeiro.

O piloto desejou feliz ano novo para os passageiros, as comissárias de bordo passaram reforçando a mensagem pelas fileiras do avião. Alguns se levantaram para um abraço. Eu ouvia as conversas ao meu redor.

Eu tirei a aliança suavemente. Olhei a mensagem escrita ali dentro. Uma promessa antiga.

Deixei que a aliança caísse da minha mão. Não a peguei quando pousamos.

Caminhos. A gente nunca sabe onde eles começam, o motivo pelos quais eles começam, mas sempre desejamos que exista, ali na frente, naquele lugar que chamamos de “futuro”, um final feliz. A grande surpresa, porém, é quando ele não se encontra ali. Isso não é motivo para se parar de caminhar. Na verdade, um enorme motivo para não parar de ir em frente.

Feliz ano novo, meus amigos.

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Nickolas Ranullo
Memórias de um pianista de bordel

"Não digam a minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel".