Accountability e Prestação de contas: da diversidade concetual à ambiguidade operacional

Memória #1 — Comité de Transparência

René Magritte, Decalcomania, 1966

A pintura surrealista de René Magritte serve de metáfora para dois conceitos que, por vezes, assumimos como absolutos: Accountability e Prestação de Contas. Há uma deslocação de uma figura anónima e abre-se, simbolicamente, uma janela para um outro mundo, uma outra realidade, que é, na verdade, uma provocação: Com que lente olhamos a realidade? Como podemos aprender com esta diversidade de olhares?

Desconstruir e construir estas temáticas passa por reconhecermos que existe uma diversidade de conceitos e uma ambiguidade de práticas. Quando falamos em Accountability e Prestação de Contas, estaremos a falar dos mesmos conceitos? Serão eles sinónimos? Serão diferentes, mas complementares? Esta diversidade concetual influi numa ambiguidade operacional? Estes conceitos têm fronteiras e, se sim, quais são estas fronteiras?

Mergulhando na literatura e dialogando com diferentes atores, tornam-se palpáveis diferentes interpretações e inquietações e, como tal, impõe-se a necessidade de criarmos um ‘chão comum’, enquanto lugar de todos/as na diversidade.

O NOSSO ‘CHÃO COMUM’

MIRO

Accountability

Ao procurarmos desconstruir Accountability, um conceito multidimensional que tem vindo a tornar-se uma palavra de ordem para as OES, revela-se inevitável sublinhar a sua dimensão moral e ética, podendo significar “ser responsabilizado”, mas também assumir a responsabilidade, numa lógica de “responsabilidade sentida” (Fry, 1995, in Ebrahim, 2003, p.199). Enquanto conceito baseado em valores, que se refletem nas missões e visões de mundo das OES, encontra-se estreitamente relacionado com Transparência.

Importa também frisar a forte componente relacional do conceito. A Accountability permite criar relações transparentes, de diálogo e interação, entre stakeholders, ao invés de relações binárias e desconectadas (Ebrahim, 2005).

Prestação de Contas

A Prestação de Contas, por sua vez, assume-se como um processo de reporte estandardizado, de carácter mais instrumental e tangível, que implica rigor, exigindo também responsabilidade e transparência.

O conceito é percebido como sendo um exercício democrático, devendo ser dialogado e negociado, interna e externamente.

O DEBATE

’Em que medida a accountability é um elemento de legitimação das Organizações de Economia Social?’

As OES carecem, muitas vezes, de credibilidade e confiança, não só no aspeto negocial perante os financiadores, mas em relação às comunidades onde as mesmas atuam. A existência de instrumentos de fácil utilização e acessíveis a todos poderia ser facilitadora da legitimação das organizações, de forma a destacar aquelas que apostam numa prestação de contas transparente.

Os comportamentos desviantes de uma OES implicam todas as restantes, que têm procedimentos éticos rigorosos; acabam por ser “contagiosas”, podendo a legitimidade do setor ser abalada devido às más práticas de uma só organização.

A Accountability mostra que as OES se regem por princípios, atuando com ética, transparência e rigor no seu desempenho, fundamental para gerar confiança, relação e proximidade com as comunidades. Não é, por isso, somente um elemento de legitimação externa, mas um conceito que implica também uma legitimação interna e pode potenciar a aprendizagem organizacional, permitindo à própria instituição avaliar-se de forma a melhor prosseguir os seus objetivos. A Accountability não é, assim, só dirigida a terceiros, mas também uma estratégia de aferição dos planos de ação que a organização tem e a “recalibragem” dos mesmos. O facto de uma organização ser accountable proporciona uma liderança sustentável e um comportamento íntegro, justo e firme, transversal a toda a estrutura da organização.

‘Que limitações se impõem, por vezes, a uma prestação de contas transparente?’

Apesar de haver uma obrigatoriedade legal de publicação das contas das OES, ainda assim, muitas continuam a não cumprir, sendo opacas não só na sua transparência, mas também na sua governação. Muitas organizações não têm os recursos técnicos e financeiros ou os recursos humanos com o tempo ou as competências desejadas para conseguir criar ou manter as ferramentas necessárias para assegurar essas exigências, o que contribui para uma ausência de sensibilidade das organizações para esta temática.

A opacidade pode estar associada às inúmeras exigências e multiplicidade de óticas intrínsecas ao conceito, não sendo, muitas vezes, consciente e propositada. Coloca-se aqui a questão da enorme diversidade característica do setor da Economia Social. O tipo de apoio que cada organização necessita pode variar consideravelmente. O facto de cada organização ter as suas particularidades e atuar em diferentes contextos facilmente cria dúvidas, por maior que seja a intenção de agir de forma rigorosa — esta ambiguidade pode ser uma limitação.

Outros condicionalismos prendem-se com a inexistência de conselhos consultivos e de auditoria, departamentos que sejam ativos e paralelos à própria governação, e a prevalência de um voluntariado descomprometido de membros de Direções e Órgãos Sociais, assim como a questão de que dar a conhecer a realidade institucional pode ser uma desvantagem.

Importa ainda sublinhar a forma como se lida com o erro como algo capaz de condicionar uma prestação de contas transparente, na medida em que o receio de uma abordagem mais punitiva pode resultar na supressão e bloqueio da inovação no desenvolvimento de soluções sociais. O medo do escrutínio, característico deste sector, poderá também influenciar a forma como se divulgam certas informações.

É ainda relevante mencionar a competitividade entre organizações sociais por um mesmo mercado. Muitas vezes, as organizações acabam por não ser transparentes na estratégia da ação que vão promover para melhor conseguirem exercer o trabalho de lobbying junto dos financiadores.

ONDE ESTAMOS

Ilustração de Dirce Russo, sobre a Sessão 1 do Comité de Transparência

Ao assumirmos que a Accountability e a Prestação de Contas refletem inteligibilidades várias, reconhecemos a diversidade concetual e a ambiguidade operacional no quotidiano das OES. Considerando que não são conceitos sinónimos, perspetivamos a accountability com um caráter mais abrangente e multidimensional, enquanto forma de ser, de estar e de atuar, pautada por uma orientação ética e responsável. Nesta linha de pensamento, a accountability engloba a prestação de contas encarada como prática gestionária tangível, de reporte, mais ou menos instrumental, a uma miríade de stakeholders das OES.

O facto das OES terem uma missão que intitulam de ‘social’ não legitima, por si só, a sua atuação. Com efeito, as OES devem demonstrar o que fazem, para que o fazem e como o fazem, sob uma lógica de responsabilidade e transparência organizacional. Assumindo a prestação de contas como uma prática gestionária de legitimação organizacional, poderá a transparência ser uma limitação à própria prestação de contas? Deverá ter limites? Num debate caracterizado pela diversidade de conceitos e quiçá opacidade dos seus significados, bem como pela ambiguidade operacional, urge reconhecer a relevância de uma prática de prestação de contas interna e externa, e neste contexto, qualquer que seja o mecanismo que venha a ser implementado pelas OES deve ser o mais democrático possível, não hierarquizado, de maneira a horizontalizar a responsabilidade.

PRÓXIMAS PARAGENS

Neste roteiro pela (des)construção e tangibilização da accountability importa caracterizar as práticas de prestação de contas das OES portuguesas, identificando e debatendo as suas fragilidades e potencialidades. De igual modo, pretendemos mapear ferramentas gestionárias promotoras de uma prestação de contas e governação transparente.

Tendo em conta estes objetivos, a sessão 2 do nosso roteiro terá como mote ‘Mecanismos para uma prestação de contas transparente: realidade ou utopia?’, em que seremos interpelados a refletir e a dialogar sobre as seguintes questões:

— Quais são os mecanismos de prestação de contas mais usados pelas OES portuguesas? Porquê?

— Até que ponto as OES devem operacionalizar ferramentas e processos de prestação de contas uniformizados?

— Que elementos de governação e de gestão garantem/podem garantir a adoção de mecanismos de prestação de contas úteis a uma OES?

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ATES — Transparência nas OES Portuguesas
Memórias de um Roteiro

Projeto promovido pela Área Transversal da Economia Social da Universidade Católica Portuguesa Porto e apoiado pela Fundação Porticus e BPI/Fundação “la Caixa”.