Que mecanismo de prestação de contas conseguimos imaginar no setor da economia social em Portugal?

Memória #3 — Comité de Transparência

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PENSAR UM MECANISMO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS TRANSPARENTE

Ilustração de Dirce Russo, sobre a Sessão 2 do Comité de Transparência

Esta terceira sessão de trabalho — e última de 2020 — serviu, mais uma vez, de palco para a partilha quer de saberes, perspetivas e interpretações que habitam os diferentes membros do Comité, quer de práticas organizacionais, visando uma construção conjunta de (novos) conhecimentos e de aprendizagens. Procuramos lembrar que o caminho já vivido pode contribuir para nos situarmos, nos reinventarmos na utopia que estamos a imaginar.

Assim, regressamos à ilustração da Dirce Russo desenhada ao longo da segunda sessão, porque acreditamos que as suas janelas vão, ao longo das sessões, ganhando outras vidas, novos elementos, novas cores, vamos aprofundando contornos e olhares sobre a problemática da prestação de contas. Uma “janela” simbólica que resulta dos nossos encontros de diálogos e que permite situar-nos no roteiro que temos vindo a percorrer. Uma janela que, em si mesma, nos convida e nos desafia a repensar os muitos olhares que compõem a realidade da Economia Social em Portugal e a reconhecer, também em jeito de celebração, as suas diferenças e, até, possíveis ambiguidades, numa lógica de (re)construção conjunta e contínua da problemática da prestação de contas.

E se esta ilustração é um processo de vivência — a nossa vivência — , que revela traços do debate concetual que realizámos na primeira sessão de trabalho e que torna palpável as ferramentas e os processos de prestação de contas que identificámos no segundo encontro, nesta terceira paragem do nosso roteiro, sob o mote: ‘Que mecanismo de prestação de contas conseguimos imaginar no setor da economia social em Portugal?’, procurámos desafiar os membros do Comité a desenhar as linhas-mestras de um mecanismo útil, online e adaptado à realidade portuguesa.

ADJETIVANDO O MECANISMO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS NO SETOR DA ECONOMIA SOCIAL EM PORTUGAL

MENTIMETER

Com a certeza de que, para imaginar um mecanismo de prestação de contas de utilização transversal é necessário começar por definir quais as características que o alicerçam, foi lançado aos membros do Comité o desafio de identificar, pelo menos, três desses traços-base. A nuvem gerada, a partir do exercício realizado, destaca as palavras ‘comparável’ e ‘simples’, sendo que, segundo os membros do Comité, o Mecanismo a desenhar deve, também, ser claro, acessível, replicável, transparente, adaptado, robusto, de preenchimento intuitivo, partilhável, colaborativo, não muito extenso, transversal e sustentável.

(DES)CONSTRUINDO COMPROMISSOS

Reconhecendo que o desenho de um mecanismo de prestação de contas transversal aos diferentes contextos organizacionais e realidades gestionárias do setor é um processo complexo e pouco tangível de início, optamos por identificar e problematizar práticas e ferramentas existentes, seguindo-se a definição de dimensões-chave a mobilizar para a construção do referencial analítico subjacente ao Mecanismo. Assim, e a título meramente indicativo, nesta terceira paragem do nosso roteiro partilhamos com o Comité as linhas-mestras da Rendir App, uma ferramenta de auto-verificação com ênfase na prestação de contas dinâmica — os 12 Compromissos que compõem o Standard Global para a Prestação de Contas das OES (Global Standard for CSO Accountability).

Em 2013, várias redes da Sociedade Civil ao nível mundial uniram forças para criar um standard de referência capaz de transformar a forma como as organizações compreendem e praticam a prestação de contas. Este standard — com o nome Global Standard for CSO Accountability — encontra-se organizado em três clusters que, por sua vez, compreendem quatro compromissos cada (Figura 1).

Figura 1. Dimensões por clusters do Global Standard for CSO Accountability

A partir deste standard global, cuja “natureza (…) implica que cada organização o deve adaptar às suas próprias características, capacidade institucional e contexto cultural” (Global Standard for CSO Accountability, 2017, p.4), os membros do Comité foram desafiados a discutir a pertinência dos 12 compromissos para a construção de um mecanismo de prestação de contas adaptado à realidade das OES portuguesas. De igual modo, quisemos recolher as suas perspetivas relativamente às seguintes questões:

— De que forma pode ser avaliado o cumprimento, ou não, deste compromisso?
— Que evidências serão pertinentes?
— Retiravam ou acrescentavam algum compromisso?

Desde logo, e antes de se verem imersos na reflexão em pequenos grupos sobre as 12 dimensões do standard global, o grupo questionou-se sobre que sistema permitiria um funcionamento real e efetivo de um mecanismo de prestação de contas transparente no setor da Economia Social em Portugal. Seria um sistema auto-imposto, um sistema verificado externamente (que acarreta mais custos e muita burocratização) ou, até, uma combinação dos dois? Não havendo uma resposta inequívoca, identificaram-se dois cenários: i) o mecanismo para algumas OES cingir-se-ia às aprendizagens decorrentes de um processo de autoavaliação realizado de natureza voluntária e ii) para outras organizações haveria, adicionalmente, a possibilidade de escolherem um sistema de verificação externo, mediante pagamento do serviço em questão.

Uma vez envoltos nos 12 compromissos, os grupos retiraram as seguintes ilações:

1. Justiça e Igualdade

Este primeiro compromisso é visto como fundamental, ainda que os conceitos de ‘justiça’ e ‘igualdade’ sejam demasiado latos, conduzindo a uma interpretação muito subjetiva. Assim, as dimensões/eixos de análise do Mecanismo de prestação de contas a construir deverão ser objetivos. De igual modo, sugeriu-se a substituição do conceito ‘igualdade’ por ‘equidade’.

Para garantir o cumprimento pelas OES de um possível Mecanismo de prestação de contas, foi sugerida a criação de uma check-list de evidências, sendo que as questões e indicadores inerentes ao Mecanismo poderiam passar por perceber quais as práticas de definição das tabelas salariais, como são geridos os recursos humanos, se são ou não claros os processos de progressão na carreira, entre outros.

2. Direitos das Mulheres e Igualdade de Género

De pertinência consensual, esta segunda dimensão poderia refletir-se em questões como:

— Existe igualdade de acesso ao mercado de trabalho?
— Existe igualdade de acesso a órgãos diretivos e ao governo da organização?
— Existe alguma política específica de igualdade de género na organização?

3. Planeta Saudável

Podendo parecer um compromisso com peso distinto em diferentes organizações, a preocupação com as práticas, políticas e estratégias das OES no âmbito da proteção ambiental não deixa de ser considerada pertinente. Os membros do Comité identificaram alguns exemplos de questões a integrar no Mecanismo:

— Existe uma preocupação com a eficiência energética?
— Existe uma política de aproveitamento de resíduos na organização?
— Existe uma política de proteção do meio ambiente?

4. Mudança Positiva Duradoura

Com uma designação sujeita a múltiplas interpretações, foi considerado pelo Comité de Transparência como “não sendo um compromisso em si mesmo, mas podendo assumir um carácter mais instrumental”. Trata-se de um objetivo muito amplo que não se encerra numa dimensão de análise a considerar no Mecanismo.

5. Trabalho Impulsionado pelas Pessoas

O Comité considerou este compromisso essencial, tendo optado pela expressão ‘Trabalho Focado nas Pessoas’. A título de exemplo, apontaram como evidências a adaptação de horários às pessoas, se há ou não planos individuais para o seu acompanhamento, etc. No entanto, consideraram que é difícil evidenciar que a organização está focada nas pessoas, uma vez que é escassa a documentação de suporte.

6. Parcerias Fortes

Pese embora tenha sido reconhecida a pertinência do compromisso, foi sugerida a alteração da sua designação para ‘Trabalho em Rede’, ‘Gestão Colaborativa’ ou ‘Gestão Integrada de Ação’, rompendo declaradamente com o conceito de ‘Parcerias’ que, frequentemente, se materializa em relações pontuais e instrumentais.

7. Advocacia para uma Mudança Fundamental

Considerado adequado e de grande importância, com ênfase na temática da advocacia, este compromisso poderia resultar em questões como:

— A organização participa em redes que advogam as suas preocupações e que levam a cabo ações de lobby junto dos organismos da sociedade em relação àquilo que a organização advoga?
— A organização comunica e divulga o problema social em torno do qual atua?

8. Organizações Abertas

Referente à transparência das OES, o compromisso 8 é visto como princípio transversal ou dimensão indissociável de um potencial mecanismo de prestação de contas. Aqui, importa compreender, por exemplo, se as OES operacionalizam práticas transparentes de prestação de contas. A título de exemplo, são disponibilizados, publicamente, os relatórios de contas, os planos e os relatórios de atividades da organização? Que outras ferramentas e/ou processos são aplicados? A quem se presta contas?

9. Empoderamento e Eficácia do Staff e Pessoas Voluntárias

Esta dimensão coloca o foco nos recursos humanos, remunerados e voluntários, que compõem a organização, sendo, como tal, de elevada importância. Algumas possíveis questões a aplicar num Mecanismo seriam:

— Existem mecanismos de avaliação das atividades por parte dos principais stakeholders (partes interessadas) da organização, com destaque para os públicos-alvo beneficiários?
— São assegurados, por parte da organização, espaços para a avaliação e a reflexão sobre os problemas e processos gestionários e de intervenção?
— A organização promove momentos específicos para partilha de experiências e abertura para ouvir críticas e obter contributos? Tem disponibilidade/momentos/espaços para incorporar as críticas e os contributos recebidos?

10. Gestão Adequada dos Recursos

O compromisso 10 é passível, como outros anteriormente, de variadas interpretações, podendo revestir uma natureza quer operacional, uma vez que não havendo uma gestão adequada de recursos a organização não pode ser sustentável, quer estratégica. Para evitar uma maior subjetividade, é sugerida a alteração para ‘Gestão Estratégica de Recursos’.

11. Tomada de Decisões Recetiva

Assente na importância de existirem, na organização, mecanismos que possibilitem o levantamento de contributos e reclamações de diferentes stakeholders que conduzem a uma tomada de decisão consciente e coletiva, o compromisso 11 sugere questões como:

— Existe abertura para receber críticas e contributos? Há momentos, espaços e disponibilidade para realizar esse levantamento?
— Existe algum canal específico para sugestões ou reclamações, incluindo por parte do(a)s colaboradores da organização?
— De que forma é que se recebem estas sugestões e críticas? Como se refletem estas sugestões e críticas na melhoria do desempenho da organização?

12. Liderança Responsável

A designação deste compromisso sustenta-se, igualmente, num adjetivo passível de múltiplas interpretações, podendo ser pertinente substituir o conceito de ‘Responsável’ por ‘Estratégica’. Neste domínio, entrarão as seguintes questões: a transitoriedade dos mandatos, a sustentabilidade financeira da organização e a satisfação dos colaboradores e dos beneficiários.

Perante esta reflexão sobre o standard global que o Instituto de Comunicación y Desarrollo (ICD), no âmbito da iniciativa Rendir Cuentas, utilizou para desenhar a Rendir App, as inquietações não cessam — pelo contrário, geram mais perguntas, mais desafios, mas também novos caminhos. Os 12 compromissos podem constituir um excelente ponto de partida para imaginarmos, com maior tangibilidade, as dimensões de análise e o tipo de indicadores que devemos considerar no desenho de um mecanismo de prestação de contas transparente adaptado à realidade do setor da Economia Social em Portugal.

Com efeito, a partir da identificação e análise deste e de outros referenciais, encontramo-nos em processo de acolher dúvidas e perguntas, de conhecer, comparar e desconstruir práticas existentes, e de facilitar um tempo e espaço de para pensar e construir o Mecanismo que imaginamos. Assim, os membros do Comité de Transparência ressaltam a importância do Mecanismo englobar compromissos/dimensões relativas:

— a proteção e promoção dos direitos dos públicos-alvo/beneficiários das organizaçõe;
— a não tolerância de práticas de corrupção;
— um sistema de proteção de crianças e adultos vulneráveis (políticas de prevenção e resolução);
— a capacitação dos públicos-alvo/beneficiários.

No desenho do Mecanismo de Prestação de Contas importa, ainda, refletir sobre o peso de cada dimensão, o qual poderá diferir de acordo com o tipo de organização.

REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES FINAIS

Ilustração de Dirce Russo, sobre a Sessão 3 do Comité de Transparência

Após três sessões, reforçam-se questões cujas respostas se tornam cada vez mais complexas: como tornar o Mecanismo de prestação de contas ‘comparável’ e ‘transversal’, como sugerido na ‘nuvem’ inicial, e, ainda assim, ter em conta as particularidades de cada forma jurídica do setor da Economia Social em Portugal? Neste âmbito, torna-se premente diferenciar o grau de exigência do reporte de acordo com dois critérios: a dimensão da organização em termos do número de recursos humanos e o volume da sua atividade (quantidade de atividades desenvolvidas).

De igual modo, emerge a questão da verificação: o Mecanismo resultante deste processo funcionará num sistema auto-imposto, misto ou de verificação externa? Devemos assumir que será um Mecanismo de autodiagnóstico organizacional ou será útil e exequível torná-lo externamente auditável e certificável, sem ser demasiado burocrático? Até que ponto um mecanismo que não contemple um processo de verificação externa corre o risco de não contribuir para a legitimidade das OES envolvidas e, por conseguinte, para o setor de atividade no seu todo?

Assumindo que o Mecanismo deve ser ‘simples’ e ‘replicável’, é consensual que não poderá ser pesadamente burocrático ou passível de ser preenchido apenas pela Direção Executiva e deverá contribuir para que o princípio da Transparência seja, gradualmente, vertido nas práticas quotidianas de prestação de contas das OES portuguesas e reconhecido e exigido por diferentes atores sociais. Perante este grande desafio, porque não pensarmos num Mecanismo útil e online, adaptado à realidade portuguesa composto por dois níveis:

Nível A — Autodiagnóstico, para organizações que queiram iniciar um processo de autorregulação.
Nível B — Certificação, para organizações com mais recursos, nomeadamente financeiros.

Na terceira paragem do nosso roteiro, arregaçamos as mangas para desenhar os caminhos da utopia que temos vindo a imaginar, mobilizando saberes e vivências organizacionais, promovendo a reflexão em torno de referenciais analíticos e instigando o diálogo com e entre subjetividades interpretativas. A combinatória destes elementos possibilitou: i) a identificação de algumas temáticas-chave e exemplos de indicadores a considerar na estrutura do Mecanismo; ii) o debate de inquietações práticas sobre a adoção de um Mecanismo com duas modalidades de reporte (níveis de aplicação) assentes em diferentes racionais e tendo em conta as especificidades da diversidade de famílias organizacionais que compõem o setor da Economia social em Portugal e iii) a construção de aprendizagens coletivas.

PRÓXIMAS PARAGENS

Na quarta paragem do nosso roteiro pela problematização, debate e tangibilização da Accountability, pretendemos aprofundar a utopia que imaginamos: construir um Mecanismo de Prestação de Contas transparente para o setor da Economia Social em Portugal, sob o mote ‘ Vamos lançar as sementes à terra? — Reflexão conjunta sobre um retrato preliminar do Mecanismo’.

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ATES — Transparência nas OES Portuguesas
Memórias de um Roteiro

Projeto promovido pela Área Transversal da Economia Social da Universidade Católica Portuguesa Porto e apoiado pela Fundação Porticus e BPI/Fundação “la Caixa”.