Vamos lançar as sementes à terra? Reflexão conjunta sobre um retrato preliminar do Mecanismo

Memória #4 — Comité de Transparência

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UMA VIAGEM PELO NOSSO ROTEIRO

Nesta quarta paragem do nosso roteiro pela problematização dos conceitos de Transparência e Accountability nas OES, foi importante refletirmos sobre o caminho que temos vindo a traçar, as paragens, as inquietações e os lugares até onde nos conduziram. Nas primeiras três sessões de trabalho com o Comité procuramos promover a partilha de diferentes conhecimentos, práticas e aprendizagens em torno da prestação de contas e da transparência no setor da Economia Social (ES) em Portugal. Assim, (re)conhecemos desafios organizacionais e gestionários quotidianos numa tentativa de criarmos um “chão comum” instigador de momentos e espaços de debate e diálogo crítico sobre os conceitos que servirão de alicerce ao Mecanismo que agora, em 2021, iremos co-construir.

De um primeiro encontro, em que partimos, precisamente, da diversidade concetual que, muitas vezes, se traduz numa ambiguidade operacional, rumamos a uma segunda paragem, onde mapeamos os mecanismos e práticas de Accountability mais comuns no setor da ES em Portugal, assim como os maiores desafios e limitações que se impõem a uma prestação de contas transparente. Já na terceira e última sessão de 2020, que nos alavancou até ao momento presente, trouxemos a metáfora das janelas, que vão ilustrando os vários olhares, perceções e posicionamentos, bem como as nossas questões e inquietações, fundamentais no desenho de um Mecanismo útil, online e adaptado ao contexto português, desafiando o grupo a imaginá-lo ainda com um pé no espectro da Utopia.

Esta quarta sessão, com o mote ‘Vamos lançar as sementes à terra? Reflexão conjunta sobre um retrato preliminar do Mecanismo’, marca, assim, a viragem na abordagem das sessões, com o início da materialização de um Mecanismo — transversal, útil e capaz de horizontalizar responsabilidades — , cujo caminho não cessará com o fim deste projeto.

AS SEMENTES QUE ESCOLHEMOS

Se as primeiras sessões de trabalho permitiram, segundo a nossa analogia, prepararmos a terra para plantarmos a nossa horta — o Mecanismo — é tempo agora de lançarmos as sementes à terra para que possam germinar. Neste sentido, na quarta paragem do nosso roteiro começamos a identificar e a escolher as sementes que irão ter lugar na nossa horta, ou seja, as dimensões que sustentarão o Mecanismo, procurando que as plantas que iremos colher permitam alimentar as práticas e os processos de aprendizagem das OES em torno de uma prestação de contas transparente.

»» O chão comum: Que sementes escolhemos para definir a identidade do Mecanismo de prestação de contas?

Num primeiro momento, apresentamos as ferramentas de Transparência e Accountability mobilizadas e analisadas pela equipa do projeto, numa estratégia de benchmarking, e cujas dimensões foram agrupadas, reorganizadas e renomeadas de forma a gerar uma proposta de seis sementes para o Mecanismo que queremos materializar. Assim, a partir do Quadro 1 e do Quadro 2, elencamos as dimensões presentes nas diferentes ferramentas analisadas (à esquerda) e que alimentaram as dimensões propostas pela equipa do projeto (à direita). Como princípios transversais, isto é, que funcionam como eixos unificadores em torno dos quais se organizam as várias dimensões, foram propostos: a Transparência, o Bom Governo, a Igualdade de Género e o Ambiente.

Quadro 1. Dimensões Benchmarking e Dimensões Propostas
Quadro 2. Ferramentas de Transparência e Prestação de Contas analisadas

Para podermos assegurar-nos que o Mecanismo a ser desenvolvido engloba todas as temáticas consideradas pertinentes de serem avaliadas no contexto das OES portuguesas, desafiamos o Comité, num segundo momento da nossa quarta paragem, a refletir sobre esta proposta de dimensões, ou sementes, com base nas seguintes questões:

  • Concordam com a escolha das sementes apresentadas? (dimensões e princípios transversais)
  • O que é que permite que estas sementes germinem? (sub-dimensões)

Da reflexão conjunta emergiram as seguintes considerações:

i. A necessidade de reconfigurar as dimensões propostas em subdimensões e de considerar novas dimensões, criando uma arquitetura orgânica e interdependente. Com efeito, o grupo partilhou que as dimensões 1 a 4 (‘Governança’, ‘Gestão de Pessoas, ‘Gestão Financeira’ e ‘Planeamento Estratégico’) se focavam muito em aspetos operacionais e processuais das organizações, numa perspetiva demasiado interna, e que faltavam dimensões relacionadas com os resultados das ações, ligadas ao desempenho, eficiência, eficácia e qualidade, isto é, com o reflexo da ação das organizações nos outros.

Assim, e no âmbito do debate realizado, foi proposto um novo modelo para a estrutura do Mecanismo, sustentado em quatro dimensões : ‘Dimensão axiomática’, ‘Dimensão operacional’, ‘Dimensão da sustentabilidade’ e ‘Dimensão dos resultados’ (Quadro 3), que passamos a explanar de seguida.

Quadro 3. Proposta de dimensões enformadoras do Mecanismo

A ‘Dimensão axiomática’ é vista como estruturadora e alimentadora das dimensões operacional e dos resultados. Inclui, portanto, os valores, a visão e a missão de uma organização, pois é à luz destes que a organização deve orientar os seus processos e resultados. Os valores organizacionais devem estar relacionados com os princípios transversais, ainda que não se esgotando nestes.

A ‘Dimensão operacional’ alicerça-se na questão “o que fazemos?”, pelo que agrupa as dimensões 1 a 5 da proposta inicial, que passam a sub-dimensões neste novo modelo.

A ‘Dimensão da sustentabilidade’ engloba a questão da validação das dimensões operacional e dos resultados, referindo-se à perenização das práticas no tempo, à sobrevivência da organização no longo prazo e à sua capacidade de incorporar valor a partir do que vão fazendo, quer inovando, quer aprendendo. Esta dimensão inclui, ainda, uma outra subdimensão “Pegada Ecológica da organização”, pensando na importância da aferição do impacto ecológico das organizações, não obstante a assunção do Ambiente como princípio transversal do Mecanismo. A sugestão desta subdimensão procura ser coerente com o conceito de sustentabilidade, que vai além da sustentabilidade financeira e material, englobando também a vertente ambiental e social, pelo que deve considerar os processos e práticas, a aprendizagem organizacional e a inovação, sendo importante ponderar, neste âmbito, a questão ‘Conseguimos que os nossos colaboradores assimilem o que aprendemos e fazemos?’.

A ‘Dimensão dos resultados’ responde à questão ‘O que obtemos?’, não sendo dissociada das suas diferentes vertentes temporais: no curto prazo (desempenho) e no médio-longo prazo (impacto). Assim, as variações de output e outcome pressupõem que haja uma relação entre elas, ou seja, o desempenho a contribuir para o impacto.

ii. A pertinência da ressignificação das dimensões/sementes, em que importa acautelar e debater em maior profundidade os significados atribuídos às dimensões/sementes e a sua materialização. A este respeito, a ‘Governança’ é uma dimensão que, muitas vezes, reflete um dos maiores condicionalismos no setor da Economia Social, dada a frequente ausência de renovação de poder, suportada por um processo democrático que pode conduzir a um sentido de posse de uma OES por uma pessoa ou um conjunto de pessoas. Neste sentido, antes de pensarmos em ‘Como tomamos decisões’, não será pertinente pensarmos em ‘Como é que elegemos quem toma decisões’? Como tal, fará, então, sentido incluir os ‘princípios democráticos’ como princípios transversais do Mecanismo e criar, dentro da semente ‘Governança (1)’, uma subdimensão intitulada ‘Democracia Interna’, que poderá ter como indicador o número de mandatos consecutivos, assim como o número de anos somados na liderança de uma organização.

Ao nível da Democracia Interna houve algumas nuances no debate realizado — alguns membros do Comité referiram a importância de assegurar uma transição de poder saudável nos corpos dirigentes, para impedir o “açambarcamento” das organizações por uma personalidade, contudo devem ser tidas em conta as diferenças geográficas na atuação do setor da Economia Social e os riscos de esvaziamento das organizações, pelo que a questão de limitação de mandatos ou da duração dos mandatos não deverá ser uma obrigação, muito menos legal, mas uma recomendação. O que deve determinar a vida de uma associação, por exemplo, nomeadamente a sua renovação, deve ser a democracia interna, pelo que os associados têm um papel fundamental na determinação da renovação e, por isso, não deveria ser a lei a determinar um limite de mandatos. Com efeito, deveria ser a própria organização, em concreto os associados, a fixar ou determinar nos estatutos ou no regulamento interno, a limitação de mandatos. Ainda assim, importa atender que a normalização traz riscos sérios de tentar uniformizar realidades que são muito diferentes entre si; se em algumas organizações esta lógica pode funcionar e ajudar a resolver problemas, noutras pode, ao invés, criar problemas.

Ainda nesta reflexão, foi trazida para o debate a importância de distinguir entre “democracia interna”, na gestão das operações quotidianas, e “democracia externa”, no envolvimento dos stakeholders/partes interessadas. Mais, como garantir que os poderes efetivos e não eleitos nas OES não acabem por, em direções mais fracas, se sobrepor àquilo que são os processos democráticos instituídos? Em que medida o Bom Governo deve, ou não, ser adotado como princípio transversal? Para isso, é importante estratificar e localizar este princípio. Entre perspetivas, perguntas e inquietações, os membros do Comité ressaltaram que um dos valores da Economia Social é o da Democracia, ou a Democraticidade, e mesmo que não seja adotado como princípio transversal do Mecanismo, deverá ser um valor construtor do setor.

No âmbito da dimensão ‘Governança (1)’, emergiu também no debate uma questão que promoveu a desconstrução de um dos princípios apresentados como transversais — a Igualdade de Género. Ao reconhecermos a abrangência e interseccionalidade da temática explicitando-o num princípio transversal do Mecanismo, queremos simultaneamente considerar a igualdade de género uma subdimensão do mesmo Mecanismo? Pouco consensual no grupo foi, ainda, o termo assumido, dado que ‘Igualdade de Género’ é percecionada, por alguns membros do Comité, com um caráter redutor, tendo em conta outras formas de desigualdade existentes e que deverão ser acauteladas (por exemplo a questão etária), pelo que foi proposto o uso do termo ‘Participação Inclusiva’, nomeadamente no âmbito de organizações culturais e recreativas. No entanto, também esta expressão não reuniu consenso, pelo receio que a sua diluição num termo mais amplo esvazie a natureza macro e transversal subjacente à questão da igualdade de género, pela perspectiva interseccional que carrega.

Relativamente à dimensão ‘Gestão de Pessoas (2)’, o debate centrou-se na questão: “Como cuidamos dos nossos colaboradores (assalariados e voluntários)?” — Quando falamos em cuidar, falamos também em avaliar as pessoas colaboradoras da organização? A este respeito, e como subdimensão, o grupo sugeriu o desenvolvimento contínuo de competências dos colaboradores da organização como elemento-chave para aferir, precisamente, o cuidado da OES perante as pessoas que a compõem.

No decorrer da análise das seis dimensões/sementes propostas pela equipa do projeto, ganharam corpo duas questões: onde colocamos a avaliação de impacto e onde incluímos os públicos-alvo/as pessoas beneficiárias da organização? Por outras palavras, como conseguimos, a partir do preenchimento do Mecanismo, evidenciar o cumprimento da missão organizacional? Sendo a eficiência um fator decisivo para aumentar a legitimidade de uma organização, possibilitando a captação de recursos, de natureza diversa, é fundamental, segundo os membros do Comité, encontrar formas de a comunicar. Neste sentido, embora a missão e o modo como a queremos servir seja uma questão identitária — Dimensão ‘Questões Identitárias (5)’ — o envolvimento e o reporte aos públicos-alvo/as pessoas beneficiárias não caberiam nesta dimensão. Com efeito, a semente ‘Questões Identitárias (5)’, em que se aninha a questão ‘como nos vêem?’, deverá focar-se nos valores que orientam as OES e em como estes se operacionalizam na ação organizacional. Por outras palavras, deve poder refletir a conciliação entre os valores da OES e a resposta aos problemas da comunidade, que estão na sua génese e aos quais esta responde, cujo cumprimento é obrigatório por lei (ver Lei de Bases da Economia Social [link], nomeadamente o art.º 5º).

Relativamente à questão do reporte, a importância da autonomização do reporte financeiro — materializado na dimensão ‘Gestão Financeira (3)’ — foi consensual no grupo, que sugeriu encapsular o reporte não financeiro das OES na dimensão 4, mediante alteração do título para ‘Planeamento Estratégico e Resultados (4)’, incluindo, assim, quer os resultados concretizados quer os resultados percecionados pelos grupos-alvo/pessoas beneficiárias da atuação organizacional.

Já a dimensão ‘Aprendizagem Organizacional (6)’ levou à construção de um paralelismo com o PDCA (PLAN — DO — CHECK — ACT), método de etapas cíclicas reconhecido como uma ferramenta de melhoria gestionária contínua. Esta dimensão poderá revestir-se, assim, de um caráter orientador para a consecução de um maior equilíbrio entre uma prática de prestação de contas focada no reporte de resultados a curto-prazo e uma estratégia de avaliação crítica, constante e abrangente, sob um racional de aprendizagem organizacional.

NA CONSTRUÇÃO DA NOSSA HORTA — O QUE SEMEAMOS ATÉ AO MOMENTO

Ilustração de Dirce Russo, sobre a Sessão 4 do Comité de Transparência

Nesta primeira paragem de 2021, em que começamos a mergulhar, de forma objetiva, na coconstrução de um Mecanismo de Prestação de Contas transparente, persistem, como seria esperado, questões e inquietações, não fosse este um objeto revestido, desde logo, de uma imensa complexidade. O roteiro, porém, faz-se caminhando e acreditamos que, em todas as paragens, vamos semeando e colhendo ideias-chave para podermos materializar o Mecanismo que temos vindo a imaginar em conjunto. Na quarta paragem de reflexão conjunta, o cumprimento da Missão – e o seu papel central enquanto farol das OES –, as pessoas e os resultados da ação organizacional ganharam relevo no Mecanismo. Soma-se, ainda, a dúvida em torno dos princípios a assumir como transversais no Mecanismo e de que forma se manifestarão no mesmo – Assumirão uma presença implícita ou explícita? E, se optarmos pela última, como poderemos garantir a sua transversalidade e como a comunicaremos?

No debate levado a cabo com os membros do Comité, e a um outro nível, emergiu a necessidade de refletir quer sobre os indicadores que realmente têm interesse para a comunidade em geral, quer sobre a forma como o Mecanismo poderá contribuir para aumentar a confiança de entidades estatais nas OES que com elas se relacionam. Acresce a questão da aplicação do Mecanismo, tendo em conta a diversidade organizacional do setor da ES e as particularidades dos seus desafios gestionários quotidianos, nomeadamente a (in)disponibilidade de recursos e a sua capacidade e possibilidade para aferir dimensões de médio-longo prazo. Um caráter vinculativo destas dimensões num Mecanismo poderá acarretar um desafio acrescido para organizações que já têm dificuldade em definir e/ou monitorizar indicadores e/ou em realizar um reporte não-financeiro coerente, claro e contínuo.

No global, esta quarta paragem permitiu-nos escolher algumas sementes fundamentais a ter na nossa horta, e respetivos cuidados a salvaguardar, num processo que terá continuidade nas próximas paragens do nosso roteiro. São sementes que queremos lançar à terra, num percurso de aprendizagens conjuntas e partilhadas rumo ao horizonte referido por Birri e lembrado por Galeano.

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ATES — Transparência nas OES Portuguesas
Memórias de um Roteiro

Projeto promovido pela Área Transversal da Economia Social da Universidade Católica Portuguesa Porto e apoiado pela Fundação Porticus e BPI/Fundação “la Caixa”.