A Memória Afetiva e a Imaginação na Vida Intelectual

Absalão Marques
Memórias Póstumas do Livro de Rostos
2 min readFeb 10, 2021
Shoemaker with his grandchild, Knut Ekwall

Há gente que cresceu lendo e ouvindo o livro “O Pequeno Príncipe”. Já vi alguém estudioso e aspirante à erudição dizendo que “O Pequeno Príncipe” é seu livro favorito. Antes eu achava estranho e até absurdo, mas hoje percebo que faço exatamente o mesmo com “O Peregrino” de John Bunyan.

Com efeito, foi uma história que me marcou desde muito cedo, na tenra meninice, de tal modo que, mesmo tendo livro coisa melhor (do ponto de vista técnico, literário e fantástico), ainda assim é para mim o livro favorito, considerando o critério preeminente da memória afetiva, da nostalgia.

É comum ter alguém em maior ou menor conta a partir de seus livros favoritos. Acho considerável esse critério, mas creio ser virtualmente enganoso. Uma mente de gênio sobressalente pode muito bem preferir subjetivamente uma obra pueril à robustez de um trabalho acadêmico, assim como um símplice aprendiz pode preferir uma Suma Teológica a um livro de prolegômenos — por maior que seja esse contrassenso.

O erudito genuíno jamais crerá que aquela obra pueril equivale à matéria-prima de seus estudos, mas nem tampouco a descartará só por seu despojamento. Ao contrário, a apropriação subjetiva daquela pode ser-lhe sempre um refrigério e sobretudo um tesouro do qual traz coisas novas sob sua pena acadêmica.

A própria música popular e simples jamais se opôs historicamente à música erudita; antes, era da música popular, do imaginário e da tradição do povo, que florescia e assomava a grandeza de um Mahler.

Em verdade, a memória afetiva habita no recôndito do homem, e, sempre que é acessada no esmero da vida intelectual, pode suscitar uma vivacidade de espírito que traz frescor ao conhecimento que costumamos acessar como terras áridas. Não é pequeno o pecado de repreender na criança sua instintiva potência imaginativa — suas implicações são imensuráveis.

De fato, grande é o poder da imaginação, sim, e é o autor sagrado mesmo que lhe exalta a natureza reflexiva e significante: “Porque, como imagina em sua alma, assim ele é” (Pv 23.7).

Texto publicado no Facebook em 28 de outubro de 2020.

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