As línguas não existem, porém morrem
40% das 7000 línguas do mundo estão em risco de extinção.¹ Isso significa que em alguns anos não existirão mais, vão desaparecer para sempre. Significa também que há grupos de linguistas e antropólogos trabalhando atualmente em coletar os sons, a estrutura e as narrativas dessas línguas. Com o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 2018, se perderam muitos dos registros dessas coletas de dados de línguas que não existem mais. Essas línguas morreram uma segunda vez.
Mas o que significa dizer que uma língua morre? Como ela morre? E se ela pode morrer, devemos assumir que ela vive também, mas como? Onde? Algumas teorias linguísticas dizem que as línguas moram nos nossos cérebros, e que eles são algo assim como uma grande biblioteca onde existem todos os termos, os usos e as regras para esses usos. Outras dizem que ela mora na nossa informação genética. Corriqueiramente, as pessoas intuem que as línguas moram nos textos e nos dicionários, às vezes, no conhecimento dos professores. E se eu disser para vocês que as línguas são eventos fugazes, efêmeros, digamos? Que elas não moram em lugar nenhum, mas que aparecem cada vez que os falantes as usam? Ou seja, que todas as vezes que usamos a língua (qualquer que seja) o que achamos que é nossa língua faz uma aparição fugaz e imediatamente depois desaparece indo para lugar nenhum. A língua não volta para a casa dela (seja essa o dicionário, os livros ou o cérebro) e fica esperando o momento de reaparecer. Ela simplesmente nasce, se desenvolve e morre toda vez que a utilizamos.
A língua é uma abstração que fazemos a partir de muitos e muitos eventos de fala e que nos serve para interagir em outros eventos. Precisamos da ideia de língua para definir grupos de pessoas e suas habilidades.Por exemplo, uma característica de alguns imigrantes é que eles não falam a nossa língua, ou não a falam direito. Também usamos essa abstração para fazer dicionários e gramáticas e para estudar características específicas nas faculdades de línguas. Mas os limites delas são extremamente difusos, tem palavras que existem em mais de uma língua e palavras da sua língua que você não reconheceria: concordância é uma palavra do espanhol ou do português? E ombudsman, é uma palavra do português? Acontece a mesma coisa com sons e estruturas gramaticais.
Essa abstração é apenas um recurso que usamos para entender uns aos outros em momentos específicos da nossa interação. Tanto a abstração do conceito de língua para dizer, por exemplo, “para entrar na universidade você precisa fazer um exame de proficiência de língua estrangeira”, quanto para não termos problemas quando falamos com alguém e a gente se entender com essa pessoa sem pensar “será que essa pessoa está usando o mesma língua que eu?”. Ou seja, o fato de abstrairmos da diversidade de todos os atos de fala uma coisa comum (que depois chamamos de língua) nos ajuda tanto a nos referir a ela como a não achar que, toda vez que encontramos alguém na rua, ele vai usar uma língua completamente nova, de modo que possamos entrar em qualquer conversa (em ambientes monolíngues) assumindo que falamos a mesma língua que nosso interlocutor e que esse, pelo menos, não será um impedimento para nossa comunicação.
Assim como a abstração do conceito de língua nos serve para operar no mundo e fazer dicionários, ela também apaga os falantes. Ao reificarmos a ação de falar, ou seja, ao transformarmos inúmeras das falas [atos de fala] em uma coisa e darmos um nome a ela, A LÍNGUA, estamos apagando a importância dos seus falantes. Quando dizemos que o inglês não tem gênero nos substantivos, na verdade o que dizemos é que as pessoas não usam gênero nos substantivos e que se alguém fosse enfiar um she depois de dog para significar cadela, por exemplo, os outros falantes não reconheceriam isso como parte dos hábitos de fala da sua comunidade.
Mas se eu digo aqui que as língua não existem, como e por que devemos nos preocupar com sua extinção? Bom, porque se a língua só existe na voz dos seus falantes, devemos estar muito preocupados com a desaparição dessas pessoas ou com as condições em que elas podem usar seus próprios hábitos linguísticos em paz e com segurança. Isso porque as línguas morrem por dois motivos principais: ou as pessoas que as falam morrem, ou as pessoas que as falam deixam de falá-las. Parte da perda da variedade linguística das Américas se deu pelo extermínio de populações inteiras de indígenas que habitavam (e falavam) nos territórios que foram colonizados. Outros, que não foram mortos, foram castigados por falarem as próprias línguas. O Franquismo na Espanha proibiu o ensino de euskera e seu uso em diligências oficiais, por exemplo, e os esforços comunitários para reviver a língua após a ditadura foram ferozes.
O chamado é então a defender as pessoas, seus direitos linguísticos, seus territórios e sua vida comunitária. A lembrar sempre que quando falamos de línguas em perigo de extinção nos referimos, em realidade, a falantes em situação de insegurança (política, ecológica, econômica, etc.). Uma das práticas da identificação de línguas em perigo é gravá-las, estudá-las, transcrevê-las, etc. Como se ao guardá-las numa caixa a gente não fosse perdê-las para sempre. Elas vão se perder, sim. Do mesmo jeito que uma foto dos nossos avós não é a mesma coisa que tê-los por perto. Então, se queremos viver em um mundo linguisticamente diverso, fiquemos sempre alerta na defesa dos humanos.
[1] Dados do Ethnologue: https://www.ethnologue.com/guides/how-many-languages