Mas pra que serve isso?

Membrana Linguística
Membrana Linguística
6 min readSep 23, 2019
Arte de Juliana Angel

Texto de Lucas Porto de Queiroz

A pergunta — que nem sempre contém aquele veneno irônico típico de quem menospreza o labor do outro, e que portanto pode mesmo estar apenas a querer enxergar qual a utilidade daquela ladainha toda — provavelmente já foi ouvida por quem se meteu a fazer um certo tipo de pesquisa acadêmica, sobretudo no Brasil atual. Digo certo tipo porque aquelas pesquisas que põem a mão na massa de nossos problemas rotineiros, que interferem diretamente em questões urgentes de saúde pública, que resultam em inovações envolvendo a inteligência artificial presente em nossos smartphones, ora, toda essa sorte de estudos já traz na testa o selo inquestionável de sua utilidade para nossas vidas — apenas um avesso de governo não enxergaria isso e lhes negaria maciço investimento.

A indagação que abre este texto acossa sobretudo, portanto, seja em tom de venenosa provocação, seja de genuíno interesse de quem deseja saber, uma outra qualidade de pesquisas, aquelas que, não mirando a cura do câncer ou do Alzheimer, desconhecendo qualquer cálculo que possa resultar na melhoria da malha viária de alguma grande cidade, passando enfim ao largo de qualquer urgente problema cotidiano… servem pra quê mesmo?

Quando a turma do Membrana Linguística me perguntou se eu toparia falar um pouco e a um público não especialista sobre o que estudo, ou seja, quando me disseram que a ideia era — num momento em que o governo visivelmente ridiculariza as investigações acadêmicas em geral, mas em especial aquelas cujos volteios teóricos acabam por embaçar sua serventia em nossas vidas — tentar mostrar de que modo aquilo que investigamos participa do contexto que nos cerca, até tentei, juro que sim, redigir um texto mirando essa proposta. Mas não consegui evitar: diante do desastre que temos vivido no Brasil, acabei sendo levado a me afastar da minha pesquisa para refletir sobre a condição mais ampla, dividida com outras milhares de pessoas país afora, de pesquisador brasileiro hoje em dia. Achei que era afinal preciso inserir a discussão num quadro mais amplo.

Não vi então outro ponto de partida senão o que está delineado já na pergunta que abre este artigo, reconhecendo que, de fato, dentro de uma certa lógica, estudos como o meu e de tantos colegas não servem para rigorosamente nada.

Porque, vamos lá: se nos contentarmos, seja por opção limitante, seja por impossibilidade de reflexão devido aos atropelos da vida, com uma lógica segundo a qual é apenas a nossa capacidade de agir no mundo que nos define enquanto seres humanos, isto é, se acreditarmos que somos humanos exclusivamente até onde se estende nossa portentosa capacidade de erguer pontes e viadutos e de encontrar fórmulas que otimizam a agricultura e de descobrir remédios que aplacam doenças e de criar softwares cada dia mais sorridentes etc. etc. etc. — então, sim, pesquisas como a minha e de mais um bocado de gente, de fato, não têm utilidade nenhuma, ou têm uma serventia tão pequena que não compensaria nosso esforço.

O que estou tentando dizer é que a pergunta pra que serve isso? esconde e cobra uma indagação anterior: com que definição de ser humano você está lidando? Ou: O que você entende por ser (verbo) humano (adjetivo)? Aqui está o cerne da questão, a meu ver. Se nos enxergamos apenas como mais um animal que age no mundo — ainda que reconheçamos algo de especial nessa capacidade que é mesmo admirável, na medida em que produz exuberâncias e encontra soluções que nenhum outro bicho chegou sequer perto de produzir — , se o que nos distingue enquanto seres humanos for apenas o impressionante refino técnico que alcançamos na execução de uma infinidade de tarefas, já temos a resposta para aquela pergunta inicial: não serve de nada a tinta gasta em pesquisas como a minha e de tantos colegas país afora. Nem faria sentido tentar explicar a importância do que pesquisamos se a definição de humano se mantiver apenas dentro do quadro esboçado acima.

Apenas uma concepção mais inteira do ser humano, do que nos define enquanto espécie justifica pesquisas “que não servem para nada”. Por que Descartes foi fundamental para a geometria analítica e também notável para a filosofia, ou por que Pascal foi marcante para a física clássica sendo também capaz de reflexões ainda hoje intrigantes sobre nossa existência? Porque, em primeira instância, eles compreendiam a inteireza do que é ser humano. Sabiam ou intuíam que, se somos brilhantes enquanto criadores (produto concreto, prática), não devemos nunca abrir mão de nossa exclusiva capacidade de pensar sobre a criação (processo abstrato, teoria). Compreendiam que, se nossa refinada e comprovada ação técnica nos envaidece enquanto espécie, ela não nos define por inteiro.

Somos os únicos animais dotados de linguagem.

Ainda que jamais possa pisar numa escola, sem que ninguém precise forçá-lo, independentemente do lugar do planeta em que tenha nascido, o ser humano, ainda com pouquíssimos anos de vida, torna-se capaz de produzir e interpretar uma sorte infindável de enunciados em sua língua materna. Adquire linguagem e com ela desgarra-se dos demais bichos, incapazes de enxergar a si mesmos enquanto seres pensantes. Porque é pela linguagem que refletimos sobre nossas ações, que nos entendemos como agentes. Se uma abelha sabe produzir mel e um macaco sabe colher e descascar uma banana, apenas o ser humano, assentado em linguagem, sabe que sabe chegar a tais feitos.

Se é verdade que essa, digamos, condição linguageira não nos faz melhores que nenhum outro bicho (e não nos faz mesmo), ela tampouco nos mantém em total igualdade com o restante da floresta. Ou vamos mesmo minimizar o fato de que somos os únicos animais que podem memorizar a data em que morreu nosso pai, explicar a um amigo por que nos decepcionamos com ele, dizer à nossa mãe o quanto lhe agradecemos pela vida, inventar uma história para nossos filhos antes de vê-los dormir?

O que quero dizer com isso tudo isso é que, quando o governo ridiculariza pesquisas em geral, mas em especial as “de humanas” — expressão infeliz porque se esquece de que, como sabiam os dois gênios referidos acima, o que há é o ser humano, bicho que se distingue tanto por uma face que faz, que produz concretudes que mudam nossa vida, quanto por uma face capaz de pensar abstratamente sobre essas ações —, ele não está menosprezando uma pesquisa teórica — está é amputando um dos traços que nos faz humanos. Abrir mão da possibilidade de refletir é abrir mão de manter-se humano.

É preciso vigiar as palavras que usamos — porque, como disse certa vez Roland Barthes, elas podem até ser perversas, mas loucas elas não são¹—, escolhê-las de olhos bem abertos. Do contrário, ao abrirmos a boca para afirmar que pesquisas que não se aplicam diretamente a nossos problemas cotidianos não servem para nada, estaremos, ato contínuo, concordando com a definição de que o ser humano é apenas mais um bicho que age sem saber que age, que passa pelo mundo sem hesitar diante da finitude de sua própria vida. Dizer que pesquisas de cunho mais teórico não servem para nada é abrir mão da nossa mais fascinante e distintiva capacidade, a linguagem, para tentar nos colocar na vala comum dos bichos restantes, incapazes de refletir sobre alguma fé na transcendência.

A questão que se impõe portanto não é explicar para que servem pesquisas de maior apego teórico, mas sim definir, feito dicionário: somos apenas bichos que acordam, espreguiçam-se, trabalham, comem, dormem, transam e fim? Recuso-me. Recuso-me a partilhar dessa definição capenga, que se esquece de que somos humanos também, e sobretudo, porque nenhum outro animal fustigou seus próprios anseios como fez Clarice Lispector, nenhum outro bicho descobriu o inconsciente de Freud nem situou as causas e o funcionamento de suas atividades como Hannah Arendt. Pra que serve a tinta gasta por Arendt ou por Lispector? Serve, em primeiro lugar, pra nunca nos esquecermos da definição plena, inteira do que é o humano. Serve para lembrar que as mais belas reflexões teóricas dividem com a arte, no dizer de Valter Hugo Mãe, a sina inerentemente humana por “descobrir novos sentidos ou imitar divindade”.² Porque um pensamento, mais uma vez tal como a arte, por mais ingênuo que seja, já serve, na provocação de Manoel de Barros, para o “desuso pessoal de cada um”,³ o que também é um jeito lembrar que somos gente.

A questão primeira, então, não é explicar o que fazemos, mas definir o que somos, se bicho-gente ou se gente por inteiro.

[1] BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortênsia dos Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2018. [p. 17].

[2] MÃE, Valter Hugo. Homens imprudentemente poéticos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016. [p. 171]

[3] BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. [p. 25]

--

--