Nossos Tristes Trópicos

Gruno
Membrana Linguística
4 min readOct 13, 2020
Arte de Juliana Angel

Em coluna da Folha de S.Paulo intitulada “Uma sociedade de liberais e modernos” [1], o sociólogo congolês Serge Katembera apresenta um diagnóstico preciso sobre uma epidemia que atinge o Brasil com muito mais intensidade e duração do que a trágica pandemia de 2020 da Covid-19: nossas tendências ao individualismo e à apropriação indevida daquilo que é, ou deveria, servir ao público.

A partir do caso de um vergonhoso barraco em um restaurante de elite de São Paulo, cujo ápice é um homem de meia idade gritando que vai ligar para o ‘MEU delegado’, Katembera expõe como a língua revela toda uma tradição moderna da atomização e individualização, muito comuns ao ocidente, em oposição a culturas mais apegadas ao coletivo. No caso, traz exemplos do Congo a partir dos idiomas Lingala e Kiswahili.

Apesar de concordar com o diagnóstico, quero trazer algumas ressalvas para o método de exposição dos sintomas.

Ao trazer o uso de expressões como ‘meu deus’, do português, ou ‘baba yetu’, do kiswahili, como evidências de culturas distintas na maneira como veem o ‘eu’ dentro da visão de mundo, o autor cria espaço para que estejam fundidos processos linguísticos (vamos chamar de ‘texto’) com processos históricos, sociais e culturais (contexto).

Meu objetivo NÃO é defender que texto e contexto podem ser compreendidos um sem o outro. Na verdade, ambos mal podem ser separados, pois existem em uma relação dialética de constante tensão e troca. Todos esses processos de língua, cultura, história e sociedade são sim evidentemente interligados, mas é importante estabelecer que essas ligações possuem dinâmicas próprias, e que as relações de causalidade nem sempre são tão simples como podem parecer.

Pegando o exemplo que o próprio Katembera usa na sua coluna, há a clara influência católica apostólica romana na forma kiswahili de falar ‘baba yetu’, cuja expressão comparável do português seria ‘pai nosso’ e não ‘nosso pai’, sendo a primeira mais familiar ao falante nativo daqui. Esse uso de termos revela sim processos históricos, sociais e culturais refletidos na língua, mas o caminho da análise é do que chamamos aqui de contexto para o texto.

Da mesma forma, temos uma chave de análise interessante na mudança da matriz religiosa majoritária da sociedade brasileira que está em curso nas últimas décadas, e essa mudança sai sim de uma religião do ‘pai nosso’ para uma religião do ‘meu deus’, mas no caso aqui as expressões são muito mais símbolos de processos históricos, sociais e filosóficos profundos do que serem elas próprias esses processos.

Quando partimos do texto para o contexto, abrimos um flanco para que qualquer recorte de texto sirva para basear as análises históricas, culturais e sociais que não necessariamente se sustentariam nessas outras áreas.

Poderíamos igualmente usar a argumentação dos possessivos falando sobre o fato de que diversas línguas ao redor do mundo possuem os substantivos de posse obrigatória, substantivos que não ocorrem na língua sem estarem com um possessivo na frente, como é o caso de Navajo (América do Norte), Quéchua (América do Sul), Tupi Antigo (América do Sul), Burushaski (Índia/Paquistão) [2].

Na língua Navajo, por exemplo, o substantivo para [‘Mão’] ‘-híla’, não ocorre na língua dessa forma, apenas com algum marcador de posse ‘shíla’ [‘minha mão’] ou ‘nihíla’ [‘nossa/vossa mão’].

Seria possível dizer que essas línguas revelam sociedades que são mais ligadas à posse do que a sociedade ocidental? Isso não se sustenta, não há sociedade mais atenta à posse do que a sociedade que gesta e ao mesmo tempo reinventa o sistema de produção capitalista.

De toda forma, é importante apontar que os fenômenos descritos pelo sociólogo são muito relevantes. Reitero que é impossível entender a sociedade e a cultura brasileira dos dias de hoje sem os conceitos de individualismo, de apropriação colonial do bem público e a concepção de sermos todos empreendedores de nossa própria miséria. É importante reiterar também que é fundamental enxergarmos o papel da religião e da mudança da religião majoritária no país junto às profundas mudanças pelas quais o país passa.

Tudo isso, no entanto, não necessariamente se reflete na construção do uso de possessivos de forma ampla no idioma.

E um último ponto, possível material para outro artigo e outras discussões mais aprofundadas, é o fato de que dificilmente consideraria a sociedade brasileira ocidental ou moderna. Apesar de alguns lapsos e de que parte dessa sociedade se vê assim, acredito que devemos nos compreender muito mais pela perspectiva de uma modernidade atravessada numa sociedade ainda fundamentalmente colonial; que ainda encara a modernidade como um projeto de futuro enquanto atropela seu passado e seu presente.

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