Palavras que machucam
Como estamos tentando mostrar aqui no Membrana, as reflexões de George Lakoff sobre o trumpismo nos Estados Unidos servem para pensarmos na situação brasileira sob o bolsonarismo. O texto desta semana dialoga com as traduções que publicamos na semana passada, sobre o discurso de ódio. Aprendemos, com esses textos, que discurso de ódio não é liberdade de expressão, pois ele limita a liberdade daqueles que são ofendidos. Aprendemos sobre o mecanismo do discurso de ódio e que, para Lakoff, suas consequências são materiais no sentido forte: ele afeta nossos circuitos neuronais. Que tal refletir sobre o discurso de ódio com exemplos de Bolsonaro e problematizar um pouco a proposta do Lakoff? Bora lá?!
Se tem algo que Trump e Bolsonaro têm em comum é a boca suja. Bolsonaro até fala menos palavrão do que o seu ídolo, mas eles combinam mesmo é na verborragia racista, misógina e xenofóbica que têm prazer em regurgitar. Isso é discurso de ódio, cujos efeitos nos indivíduos são bem mais profundos do que meramente se sentir ofendido; os seus efeitos são físicos e mais destrutivos do que um soco na cara.
O discurso de ódio generaliza um grupo de pessoas atribuindo-lhes características negativas. Por que dizer “paraíba” para se referir aos nordestinos (como fez Bolsonaro) é ofensivo? Por acaso “paraíba” é xingamento? Não é. O que o termo carrega de pejorativo está no uso que ele tem no Rio de Janeiro, ligado a fatores históricos e sociais (uma matéria sobre isso aqui). O termo “paraíba” não é, em si, um xingamento, mas fazer generalizações grosseiras é típico do discurso de ódio. E junto com as generalizações vêm as características negativas: preguiçoso, burro, geneticamente inferior, merecedor de miséria, comedor de capim.
É interessante como o mecanismo do discurso de ódio funciona antes pela generalização do que pelas ofensas que ele carrega. A mesma atitude de generalização e discriminação fica evidente quando Bolsonaro, tentando consertar a pataquada, diz “somos todos paraíbas”, “somos todos cabras da peste”. Fora o ridículo à la Luciano Huck da expressão, ele continua se referindo a um conjunto enorme e variado de pessoas com algum termo genérico típico do tio do pavê.
O mesmo ocorre quando ele fala que “os nordestinos são nossos irmãos”. Sr. Presidente, os nordestinos somos nozes, hermanos são os outros. Sendo ele representante de apenas um estado, até faria sentido dizer que habitantes de outros estados são irmãos, o que não é o caso em se tratando do representante da federação. Ao chamá-los de “irmãos”, Bolsonaro coloca os nordestinos fora do conjunto das pessoas que ele representa. Você imagina ele falando “os sulistas são nossos irmãos”?
Como é típico do discurso de ódio, o discurso de Bolsonaro coloca uns de um lado, outros de outro, generalizando lá e cá. O discurso de ódio é direcionado, ele precisa construir um inimigo: o “esquerdista”, o “comunista”, por exemplo, palavras que passaram a designar o grupo daqueles que “são contra o Brasil”. Qualquer um que critique ou discorde das medidas do governo é imediatamente colocado nesse balaio de bandidos, drogados e depravados — essa “raça”, essa “cambada”. Assim fica fácil desqualificar qualquer oposição.
Assim como no caso de Trump, a pior consequência do discurso de ódio na boca do presidente é que ele deixa de ser o discurso de poucos e se transforma em uma indústria de massa, uma máquina de angariar seguidores e multiplicar a violência.
O discurso de ódio é direcionado e, assim, ele afeta negativamente um determinado grupo de pessoas. Voltando para o Lakoff, ele diz que as pessoas que são vítimas de discurso de ódio são atingidas neuronalmente por ele porque as ideias — e as palavras associadas a elas — existem nas conexões neuronais. Nesse ponto, peço licença para discordar desse grande linguista.
É possível — e até provável — que o uso de certas palavras em determinados contextos seja frequentemente acompanhado por um mesmo padrão de disparos neuronais. Assim, é bem possível que se pudesse detectar, com aquelas imagens de fMRI, uma alteração neuronal significativa em uma pessoa exposta a discurso de ódio por muito tempo.
Mas, definitivamente, não é por causa dessa alteração que diríamos que alguém é afetado negativamente pelo discurso de ódio. Lakoff sugere que o sistema neuronal deveria ser usado como evidência jurídica, mas eu acho esse um passo um pouco perigoso. E se não for o caso de todo pensamento poder ser rastreado no cérebro? Ao contrário do que a afirmação peremptória de Lakoff faz parecer, a ideia de que é possível rastrear as ideias no cérebro está longe de ser consensual.
Lakoff é um linguista que trabalha com a ideia de que o conhecimento é corporeado, ou seja, que ele acontece no corpo, mais especificamente no sistema neuronal. É uma ideia bem interessante, mas ela pode ser às vezes um pouco exagerada, a ponto de se assumir que as conexões neuronais são as ideias em si.
Palavras são palavras; não precisamos de nenhuma imagem cerebral para dizer que alguém é afetado por elas. Os gestos dessa pessoa, suas expressões, seu comportamento denunciam. O contexto social em que generalizações discriminatórias são usadas denunciam a ofensa. A condição dos que ofendem e dos que são ofendidos, suas roupas, a cor de suas peles, suas ocupações. A evidente diferença entre opressores e oprimidos, a diferença entre suas histórias. Efeitos concretos e materiais que a palavra incorpora e que perduram além do seu uso momentâneo.
Se formos deterministas (e reducionistas) a ponto de assumir que toda ideia tem um efeito direto em nosso sistema nervoso, então como explicar o fato de a atribuição de características positivas a um grupo também ter efeitos físicos negativos nessas pessoas?
O que dizer de algumas generalizações relacionadas à mulher, por exemplo? Mulher gosta de cuidar da casa, mulher gosta de estar bonita, mulher é agregadora, mulher é prestativa, mulher é compreensiva. Nenhuma dessas características é ruim, mas qual é o efeito disso sobre mulheres que se veem forçadas a esse modelo? E em que tipo de violência esse pensamento se converte para mulheres que não se adequam ao modelo? Um tipo bem físico, certamente. Neuronal também, talvez, mas não é esse o ponto quando falamos de discurso.
Quando falamos de discurso, falamos de palavras, e palavras não são conexões neuronais. Palavras são usadas muitas vezes para nomear, para categorizar, e assim dar existência a um conjunto de entidades que, a partir de então, podem ser adjetivadas — para o bem ou para o mal. Os efeitos dessa atitude, como os efeitos das leis, são sempre concretos, convertidos muitas vezes em discriminação e violência.
O governante de uma democracia não pode usar nomes que categorizam um grupo de pessoas do país fora do grupo de cidadãos. “Paraíba” pode significar paraibense, nordestino, o nome do estado, de um rio, e pode até soar como um elogio (como para Maria Bethânia), mas, na boca do síndico eleito da casa grande, é o nome de uma categoria forjada pelo discurso de ódio e que serve apenas para reforçar os efeitos grotescos das divisões desse país.
Pós-escrito:
Esse texto me faz lembrar de duas coisas que vi recentemente. Li em uma thread no Twitter que as falas de Bolsonaro não são, como se cogita muitas vezes, mera cortina de fumaça, mas sim a materialização de uma política real de governo, legitimada nas redes sociais (de @tainalon, aqui). Mas é claro! Como se pode pensar que o que é dito é menos importante do que o que se passa em silêncio?! Como podemos supor que o ultraje é banal?! “Se ultraja, é legítimo e pode ser testado”, diz sabiamente a thread, confirmando que os efeitos das palavras são bastante empíricos.
Em outra ocasião, um eleitor de Bolsonaro afirma que o que mais admira nele é sua sinceridade, e argumenta que ele parece uma pessoa má apenas porque fala o que pensa (a partir de 9’40” neste vídeo). Ele questiona: “se todos fossem sinceros como ele, quem seria considerado bom?”. Mas o eleitor esquece que a conciliação é item básico de sobrevivência social — e fundador do que chamamos de política. Além de denotar fraco poder reflexivo e extremo desrespeito, para um homem público “muita sinceridade é absolutamente fatal”. Se todos fossem “sinceros” como Bolsonaro, o glorioso “ocidente” do chanceler das trevas (Ernesto Araújo) teria morrido no berço ou se consumido em guerras — o que não está muito longe de acontecer (apocalipse feelings).