Viajar de avião e escrever ficção

Juliana Angel Osorno
Membrana Linguística
8 min readAug 26, 2019
Arte de Juliana Angel

Nas coisas que tenho lido nos últimos anos — autoras contemporâneas, das mainstream às autopublicadas — , tenho identificado duas tendências: o relato curto como gênero, e o presente como tempo da narrativa. Acredito que as duas tendências caminham lado a lado e falam sobre nossa experiência contemporânea e nossa relação com o tempo de modo geral. Neste texto, quero explorar os efeitos semióticos, ou seja os efeitos de significado, do uso do presente nas narrativas. Para isso, explorarei o tempo e a dosagem de informação, ou seja, como o uso do tempo indica o quanto se sabe de algo; o tempo como focalizador, ou como usar o tempo para narrar de perto ou de longe; o tempo como sequenciador, e suas implicações para a realidade na narrativa; o tempo como lugar sem tempo, ou seja, a possibilidade de narrarmos eventos atemporais.

Existem motivos perceptuais para os tempos do pretérito terem sido os preferidos para escrever literatura. O que se conta, a rigor, já aconteceu. Pense numa fofoca, numa história de família, num causo, nas histórias da História com h maiúsculo. Quando contamos algo que aconteceu conosco — atenção ao passado — , temos conhecimento total do evento. Nós o vimos, ou experienciamos, na sua totalidade, do incidente desencadeador até o desenlace. Quando contamos a alguém alguma coisa que aconteceu conosco, usamos normalmente o pretérito, pois temos a noção de que o evento aconteceu anteriormente ao momento em que falamos.

Conceitualizamos os relatos de ficção da mesma maneira que conceitualizamos os relatos “da vida real”. O autor que narra usando o passado conceitualiza a história como tendo acabado. Depois, quem lê conceitualiza o evento narrado como sendo passado, e consequentemente terminado. Como leitores, temos a ideia — mesmo que não venha como um tapa na cara, e sim como um carinho suave, mas constante, nas costas — de que o narrador sabe tudo o que aconteceu. Não só isso, temos a ideia de que o evento já aconteceu. Só nos basta continuar a leitura para saber o que ele, o narrador, já sabe.

Tempo é, então, dosagem de informação. Quanto se sabe, então, quando se narra no presente? Pouco. Com relação à informação, temos a ideia de que nós, leitores, e o narrador vamos descobrir juntos o desenrolar dos acontecimentos. Esse é um recurso dos roteiros cinematográficos; a ação se desenrola na frente dos olhos do espectador, logo, o roteiro é escrito da mesma maneira. O presente como dosador de informação permite então pouca especulação sobre motivações e estados internos. Veja, por exemplo como começa o conto Como te extraño, Clara, de Natalia Borges Polesso:

“Fernanda sai do estacionamento com um embrulho que vai da garganta para o estômago. E volta. Ela quase vomita umas três vezes antes de chegar ao primeiro sinal, que está vermelho. No visor do telefone, o nome de Eduardo treme, enquanto Aretha Franklin, meio abafada pelo couro do estofamento, canta ain’t gonna do you wrong while you’re gone. Fernanda não atende e no meio do R-E-S-P, o telefone silencia. Antes de o sinal abrir, ela olha o material da aula todo espalhado no banco de trás.”¹

Nele, além de não haver explicações sobre estados internos, o tempo presente favorece a experiência perceptual. Geralmente, as explicações sobre por que fazemos alguma coisa, a análise do contexto de um evento, a compreensão das circunstâncias que levaram a algum embate, por exemplo, vêm após o evento acontecer. Aquela sensação de “eu deveria ter dito isso ou aquilo, eu não deveria ter ficado assim”, etc., tem a ver com o fato de que, vistas de perto, as coisas não são muito claras. Isso tem a ver com focalização. Imagine que você está viajando para Cabo Verde, é um voo diurno, o céu está aberto e tem sol. Da janela, você pode ver os contornos das ilhas, o formato, como a areia vai passando de um amarelo-claro ao azul profundo do mar. Conforme o avião chega mais perto, você vê casas, distingue umas árvores das outras, avenidas, carros. Rapidamente, o avião começa o descenso, pousa, e você não consegue ver sequer as casas que estão no bairro mais próximo da pista. Nem falar do contorno das ilhas. Quem conta uma história mostra ao seu interlocutor alguns eventos, e, como na viagem de avião, esses eventos podem ser mostrados de longe, de maneira a indicar todos os contornos, ou de perto, de onde se vê muitos detalhes perceptuais de imediato, mas há pouca compreensão das relações entre diferentes informações.

Isso se reflete na linguagem. Os bons contadores de histórias aproveitam esses carinhos duradouros nas costas dos seus interlocutores e evitam tapas na cara. Não é preciso explicar tudo quando se tem bom domínio dos recursos. Não apenas o uso do presente ou do pretérito, mas a linguagem que acompanha cada história é essencial. A escrita no presente favorece, como disse acima, a experiência perceptual, ou seja, a exploração de sentidos como tato, visão, audição e paladar. O motivo é que a experiência presente de focalização próxima permite bem a observação imediata do corpo, enquanto outras focalizações permitem mais a exploração da memória ou da reflexão lógica. Veja como é possível intuir a angústia de Fernanda no embrulho na garganta e na vontade de vomitar, em Como te extraño, Clara.

Se você observar seu próprio fluxo mental num momento dado, por exemplo agora, a informação vai vir misturada: uma sensação aqui, uma pendência lá, um breve evento rememorado causado pela coceira no olho, lembrar de marcar oftalmologista, a ideia do avião, não saber onde fica exatamente Cabo Verde, um gole de água, você está com sede. Esse tipo de narração mais fragmentada e com pulos aumenta a sensação que o leitor tem de que a cena está se desenvolvendo frente aos seus olhos, em tempo real. Por outro lado, uma exploração mais descritiva das ações de outros, e não dos seus motivos, favorece também o desenvolvimento de personagens quando se trata de narrações em terceira pessoa e usando o presente. Veja, por exemplo, o seguinte trecho do conto The Shared Patio, de Miranda July:

“Vincent has a wife named Helena. She’s Greek with blond hair. It’s dyed. I was going to be polite and not mention that it was dyed, but I really don’t think she cares if anyone knows. In fact, I think she is going for the dyed look, with the roots showing. What if she and I were close friends. What if I borrowed her clothes and she said, That look better on you, you should keep it. What if she called me in tears and I had to come over and soothe her in the kitchen, and Vincent tried to come into the kitchen and we said, Stay out, this is girl talk!”²

Além de ser focalizador e dosador de informação, o tempo verbal — cuidado para não confundir tempo “real” com tempo verbal — é principalmente um sequenciador. Isso significa que, usando os diferentes tempos verbais, fazemos com que eventos se organizem na nossa linha de tempo imaginária uns antes dos outros. Nós, que falamos línguas indo-europeias, temos uma ideia dessa linha de tempo imaginária começando à esquerda e seguindo na horizontal para a direita. As coisas mais antigas colocamos no extremo esquerdo; as coisas atuais, em algum ponto no meio; e as coisas futuras, no extremo direito.

Os tempos verbais servem então para criar relações entre eventos narrados nesses tempos. Se pensarmos em eventos narrados no tempo presente, temos que os tempos do passado são usados para narrar eventos anteriores, e os do futuro para eventos posteriores. Mas os eventos passados e os eventos futuros não são da mesma natureza. Eventos do futuro são irreais, eles não têm carne fática, são apenas ossos de possibilidade. Quando se escolhe narrar um evento no presente, outros eventos que aconteceram depois são entendidos como sendo hipotéticos ou irreais.

O presente é também o tempo sem tempo. É o tempo em que se narram as coisas que acontecem sempre, ou cuja temporalidade é desnecessária ou quer ser eliminada ou escondida. É o tempo dos sonhos e das premonições. Em Ruina y Leveza, Julia Dantas intercala capítulos da história com um diário de sonhos. Na primeira entrada do diário, a narradora diz:

“Caminho por Porto Alegre, exceto que tudo está em preto e branco. Dobro uma esquina e dou de cara com uma televisão gigantesca, do tamanho de seis andares de um edifício. Eu tenho certeza que são seis andares porque a televisão está acoplada a um prédio, como se fosse uma vitrine, e ela vai da calçada até a altura do sexto andar. Ligada, não está sintonizada em nenhuma estação e transmite apenas linhas cinzas e um chiado inconstante.”³

O interessante de esse tipo de narrativa atemporal ser escrita no presente é que isso se ancora na propriedade do tempo presente de ser o tempo mais imperfectivo. Isso quer dizer que é um tempo não terminado e que não é conceitualizado como uma unidade fechada, afinal, o agora está sempre acontecendo. Isso se explica perceptualmente pelo mesmo fenômeno explicado com o exemplo da ilha, isto é, a focalização. Se você está sempre no presente, os limites dos eventos são difíceis de ver. Por outro lado, quando o narrador escolhe usar o presente para narrar eventos únicos, o efeito de sentido da narração é de que esse evento único se aplica a um tempo expandido: há uma coisa de rotina e repetição nesse evento único, um labirinto sem saída. Um excelente exemplo disso é o conto Bone Density, de Roxane Gay, em que a autora narra a cotidianidade de um casal a partir de eventos que, embora singulares, pintam muito bem a mesmice das relações de casal.

“This last time I find a Polaroid image of David posing with a young brunette, attractive in her own way. She is smiling. He is not. She is hugging him from the side, looking at him the way I imagine all his young lovers look at him — adoringly, desperately. They don’t know the man I married, how betrayal comes so easily to him, so they can afford to look at him like that. […] I leave the Polaroid on his side of the bathroom, perched against the toothbrush holder. This isn’t the first time I’ve found an artifact of his infidelity. It won’t be the last.”⁴

Todos os efeitos semióticos do presente crescem e se modificam com a conjunção de outros fenômenos na mesma narrativa. Eles são usados para dar corpo, ritmo e densidade à narrativa. Os jogos temporais são uma ferramenta que os escritores usam para criar nos leitores noções amplas que modificam os significados específicos das palavras que estão sendo produzidas no decorrer do texto. Como disse acima, trata-se de um carinho constante e quase imperceptível nas costas do leitor. Os autores fazem dos tempos seus brinquedos, que usam para nos fazer ver a realidade de diversas formas, como quem entra em uma casa de espelhos. A mesma imagem se modifica infinitamente com recursos como esse.

[1]Natalia Borges Polesso, “Como te extraño, Clara”, do livro de contos Amora, publicado por Não Editora em 2015.

[2]Miranda July,The Shared Patio”, do livro de contos No one belongs here more than you, publicado por Scribner em 2007.

[3]Julia Dantas, “Diário de sonhos #37, outono”, do romance Ruína e Leveza, publicado por Não Editora em 2016.

[4]Roxane Gay, “Bone Density”, do livro de contos Difficult Women, publicado por Grove Press em 2017.

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