“Imagem: instagram.com/lsabellaluiz”

Como entreter náufragos

Setembro.

Celina
Published in
4 min readSep 15, 2022

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Existem pessoas que passam pela vida com uma naturalidade enervante. Transitam com graciosidade, entram e saem dos lugares facilmente sem dor, medo ou angústia. Estão numa frequência que daria tudo para ouvir um pouco e assim atravessar calçadas sem me sentir um boneco de ventriloquia. Tudo parece tão simples, um lugarejo onde abrir uma porta é apenas “abrir uma porta”, onde não há receio em sentir a brisa da rua intimidar cada fodenda célula do seu corpo. Sempre senti inveja desses habitantes, de suas caras despreocupadas, de sua singeleza em enxergar o tempo como sua propriedade fazendo dele uma ferramenta de moldagem de desejos. De minha ilha, sonho em poder chegar àquele lugar e finalmente morrer, depois renascer criança e ser. Fantasio em encontrar uma lâmpada mágica nos destroços de meus naufrágios e poder ter esse pedido concedido, uma primeira chance de não precisar parecer caminhar na ponta dos dedos.

Ao chegar em casa no fim do dia, tiro as chinelas e aliso um dos gatos que vem me receber na porta, percebo que ali é o mais próximo que cheguei de encontrar um pouco dessa despreocupação em existir. Uma ilha faz um náufrago e um náufrago faz sua uma ilha. No fim tudo é sobre ser ou se sentir aceito, mas ainda não aprendi essa canção, vou escrevendo mais um recado e coloco dentro dessa garrafa para que chegue a alguém do outro lado, ou no meio do caminho. Escrevo para além de não ser esquecida, para entreter naufrágios e náufragos, abrindo e fechando a boca de forma engraçada, constrangedora, desesperada, descrente e fiel a arte de existir, mesmo que ela seja um show para um só.

quis mais uma vez navegar em seu mistério
quis uma outra prosa, uma alcova, uma cova
enterrar o velho em uma coisa nova
já não há virtudes nessa arena estéril
só há os mesmos cavaleiros munidos de tédio, de fictícios interesses que nem se dão mais o trabalho de fingir

senti o fraco do pertencer ao atravessar uma rua que não sei o nome
ouvi mais um homem me chamar tolamente e pedir para que viesse

mas para onde?

contei essa manhã para a minha criança que iríamos mudar, peguei a caneta e tentei escrever uma carta de despedida
mas em que remetente vive quem me estima?
risquei seis rimas e sorri pensando que todo poeta faz do engano o belo, do escárnio o eterno e do vazio um motivo para sentar à mesa e escrever cartas e poemas que ninguém irá ler

tanta coisa gostaria de dizer sem quem me virasse o rosto, tanta coisa gostaria de invocar mas não há nenhum corpo morto, não há quem ressuscitar depois de dois dias, de dois anos
tanto vou esquecer enquanto mexo no pescoço e desço para o seio
para a marca roxa do lado esquerdo do peito onde bate alguma coisa
juro que ouvi ao atravessar a rua e agora ao lembrar dela

o mundo está em pedaços enquanto olho pra tela do celular, para uma mensagem que não me permite responder
em que momento esquecemos de acendermos a vela e lembrarmos o caminho para os primeiros dias das primeiras vezes?
os anos viraram séculos e agora olho incrédulo para o rapaz nu contra a parede
ele parece tão bonito enquanto me ignora olhando pela janela
ele parece tão bonito quando não me escuta
ele parece tão bonito quando não se importa
ele parece bonito por não poder destroçar meu coração

pensei escrever atrás de um quadro como quem entalha numa árvore um segredo, mas não há o que partilhar em nenhuma tarde, não há mais histórias boas, já não há amantes na cidade
Roma, Remo, quem tem boca navega no seu próprio naufrágio, quem tem boca fala qualquer coisa para enganar uma tarde vazia, para encher bolas furadas
quem tem boca é rei e o mundo é feito de reinados, vossa majestade

quem não se importa ganha a aposta
mas quanto vale fingir um desejo? quanto vale, vossa alteza, acreditar que se importa com a vida além do espelho?
Quem és tu?”, ouvi entre a fumaça de um cigarro
mas no lugar de uma lagarta, Alice viu a si mesma tragando mais uma desculpa para não entregar sua cabeça numa bandeja

o valor das coisas pouco importa se não tem a intenção de possuí-las
enxergar é também se dispor
ditados populares não estacam feridas

Pensei em parar de vir aqui, jurei pra mim que finalmente iria parar de escrever e deixar isso para uma versão que odeio de corpo e alma. Sou mestre em me contradizer, a impulsividade me impede de usar o ócio de forma sadia. Cá estou, nesse lugar que não precisa me aceitar, nem que espero que me aceite ou a minha escrita. Sou grata a quem lê e até mesmo ao esquecimento, esse último me permite o meu milagre, o recomeço que tanto espero. Desejo que vocês estejam e fiquem bem. Um abraço. Celina.

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Celina

"Writer". Nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Revista Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.