Exemplar do autor

guia para perdidos que insistem em pensar no sentido das coisas nas horas erradas

Celina
Memorando Literato
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4 min readMar 7, 2019

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Faz três semanas que adquiri um hábito novo, parte dessa nova aquisição se deve a minha mais recente crise de insônia. Lá pelas tantas da madrugada abro silenciosamente o portão de alumínio e fumo sentada no chão frio do terraço, lado a lado com a traseira do carro. Pela hora a família já está na cama, mas sempre fico na expectativa de algum deles aparecer e me pegar fumando escondida.

Uma coisa estranha de fumar só à noite é que frequentemente imagino que alguém da rua coloca a cabeça entre as grades do portão e consegue me ver. Olhos acesos no escuro, um frio eletrizante percorrendo a espinha, suor empapando a roupa. Essa imagem provoca uma palpitação estranha, como se estivesse atraída pelo terror, pelo medo. Sinto vontade também de escrever e criar algo com a cena, mas ela se esvai como a fumaça que pouco se mostra. Escrever tem me dado uma espécie de repulsa, estranhamento. Não sei o que há dos meus sentimentos, mais parece que as linhas conectoras se embaralharam e as coisas se misturaram demais. Hoje, quinta-feira, pós quarta de cinzas, escrevo do chão do corredor, onde a wi-fi funciona com mais velocidade. Faz calor, mas é seguro, é silencioso demais e aterrador por isso. A expectativa de ser descoberta, flagrada, me corta a respiração sem muito esforço. Mas a imagem de mim habitando outro espaço mais meu parece distante, como se os corredores da casa se agigantassem e se tornassem sem fim. Me fazendo cansar de percorrê-los de madrugada, contando quantos barulhos estranhos me atentam para o espanto. Daqui há poucas horas levando para trabalhar do outro lado da cidade, mas quando deito não consigo relaxar.

Antigamente, ao tentar dormir, sonhava com o homem que amava, com os livros que iria escrever. Hoje, sonho com uma casa, com um filho, com outros tipos de cenas que me passam segurança. Detendo meu corpo à ilusão, sabendo que é ilusão e sem me doer por isso. Pareço mais viver pelo sonho, seja no banho, na fila da integração, na bancada do trabalho, nos corredores de casa. Não sinto que vivo essa vida, então os corredores me parecem menos reais, mas ainda assim vago por eles. Faz pouco tempo que comecei a prestar mais atenção nas coisas que me trazem a idade. Cabelos brancos, flacidez, olhos fundos e feiura. Isso me faz relembrar mais o passado, essa semana pensei que talvez vire uma espécie de Dom Casmurro. Achei engraçado, isso também pensei fumando escondida no terraço.

Quis certa madrugada me apaixonar de novo, mas repensei a ideia pouco depois. Tenho mais medo de como seria o futuro com alguém do que se estivesse só. Gosto de estar só, estar só não me dói tanto. O problema todo é quando lembro de como é não estar só. Fico reavendo coisas que já não tem mais sentido, eu sei, mas parece que não sou capaz de sentir nada. Então, pelo medo da frigidez, me firo três ou quatro vezes por dia com lembranças doloridas de como era quando eu era bela. Olho meu rosto nos espelhos da casa e não reconheço nada que seja meu, esse corpo, essa cabeça, a sombra, nada. Odeio cada espelho da casa, odeio como ela foi arquitetada, como foi mal feita, odeio como as janelas e portas ficam sempre fechadas. Uma armadilha para conhecidos.

Recentemente tenho lembrado do sonho dos meus dez anos, do tormento de dormir e da profecia de menina. Quis dizer isso a alguém, mas não tenho para quem contar minhas histórias agora, então essa deixo pra quem for se apaixonar por mim. Quero de alguma forma romper com a realidade do espaço e poder chegar a qualquer lugar por capricho, sabendo que no fim só gostaria de estar em um lugar, que não chega a ser lugar geograficamente falando, mas se parece com um. Mas a imagem de mim habitando outro espaço mais meu parece distante, e os corredores da casa se agigantam e se tornam sem fim. Me fazendo cansar de percorrê-los de madrugada, sentar no chão e contar quantas histórias estranhas me atentam para o espanto.

As coisas me parecem confusas, os fios embaralhando-se contra a vontade, me fazendo temer a idade, o esquecimento, a insignificância e a mediocridade. Abro a porta puxando o alumínio para cima, para não fazer barulho e acabar atentando alguém. O frio entra pela casa sem pedir licença, e eu sou engolida pela noite e pelo medo de alguém me encontrar sentada com os olhos tragicamente vidrados em um passado que pouco a pouco mais parece ficção.

|Preciso escrever.

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Isabella Luiz é de Recife, escritora, roteirista e criadora da Fale com Elas. Tem poesias em coletâneas publicadas no Brasil e em Portugal e um livro em andamento. Atualmente escreve na internet e se diverte.

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Celina
Memorando Literato

"Writer". Nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Revista Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.