América 11x2 Botafogo: maior goleada da história do clássico faz 90 anos

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7 min readNov 3, 2019
No canto esquerdo, o placar do estádio de Campos Sales apontava: América 11 a 2, no Globo

Essa é uma das ocasiões em que aqueles que bradam a todo momento: “Há coisas que só acontecem com o Botafogo” podem ao menos sentir o raro conforto da razão. A história começa bem antes. Em 11 de agosto de 1929, o América perdia para alvinegro em Campos Sales por 1 a 0, quando o árbitro Luiz Meirelles Filho assinalou um pênalti que despertou a ira do rival. Inconformado, o adversário recusou-se a continuar o jogo. Só restou a Oswaldo efetuar a cobrança, diante do gol vazio, para decretar o empate. O caminho natural seria uma vitória do América por WO, mas o Botafogo recorreu e a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea) determinou a anulação do clássico, remarcado para três de novembro, no mesmo local. Esse é o jogo que entrou para a história.

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Na época, a correlação de forças do futebol carioca era bem diferente da atual. Além de defender o título do Campeonato Carioca de 1928, o América já tinha conquistado até ali quatro de seus sete títulos estaduais. O adversário possuía apenas dois. E, entre eles, estava o de 1907, passou por longo litígio até que, em 1996, a Ferj decidisse reconhecê-lo. Em que pese qualquer possível equívoco da arbitragem, o que não foi consenso nos periódicos da época, empate com o América, especialmente em Campos Sales, era um resultado que não feria o orgulho de ninguém e, muitas vezes, acabava festejado. Todos os jornais destacaram o excelente comparecimento do público, presente para testemunhar um espetáculo que nada valeu.

O lance fatídico ocorreu a dez minutos do fim do tempo regulamentar: um toque de Otacílio em Telê. O árbitro, indicado pelo São Cristóvão, que já havia marcado no primeiro tempo um pênalti para o América, assinalou ali o segundo. O elenco do Botafogo protestou muito antes de deixar o gramado. O diário “O Globo” do dia seguinte registrou que não teve condições de apreciar o polêmico lance por causa da localização das cabines de imprensa do estádio:

“Um ataque do América foi levado a efeito pela esquerda; houve um tirada de um zagueiro botafoguense e ouviu-se um apito do juiz, que ordenou pênalti do quadro visitante. Do local onde se achavam os jornalistas, isto é, do recinto reservado à imprensa pelo campeão da cidade, nada em absoluto se poderia ver, pois que a falta (?) se verificou justamente na outra extremidade do campo! Aquele local é agradável, não há dúvida, mas inconveniente para os que desejam ver para criticar com convicção”.

Formação do América antes do jogo, em Campos Sales, registrada por O Globo

A julgar pelos detalhes oferecidos pelo “Jornal do Brasil”, o repórter não estava na referida tribuna criticada pelo concorrente ou dispunha de posição privilegiada: “Otacílio escorou Telê licitamente, e o juis puniu o Botafogo com um penalty. O time do Botafogo revoltou-se com a decisão, e retirou-se do campo”.

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A crítica mais contundente viria de “O Paiz”. “O gesto de revolta dos rapazes alvinegros tem a sua explicação na actuação do árbitro, que, em todo o segundo tempo foi de uma parcialidade irritante, a qual, por mais boa vontade que tenhamos com elle, não podemos attribuir á ignorancia de regras ou a uma obnubilação dos orgãos visuaes”.

Naquele tempo, o acesso aos envolvidos no jogo era mais simples. No dia seguinte ao confronto, o próprio árbitro apresentava sua versão do lance, nas páginas do “Diário Carioca”.

“Oswaldo escapou com a pelota passando-a a Gugu. Este rápido centro alto, Telê entra. Orlando, procurando evitá-lo pula e, casual ou não, monta-se na cintura daquelle player americano. Marquei, então, o respectivo foul, e nesse caso, por estar na área perigosa, o penalty, que deu origem as desagradáveis cenas ocorridas”, explicou.

Meirelles contou que o elenco do Botafogo alegava, na saída de campo, que houve mão de Telê no lance. Questionado sobre a ocorrência ou não do relatado, o árbitro confirmou o fato, mas analisou o contexto que o levou a marcar a penalidade para o América, e não a falta favorável ao Botafogo.

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“Sim, houve. Mas nas seguintes condições: Telê recebia a pelota, quando Orlando praticou o foul. O zagueiro alvi-negro procurando desviar da trajetória da bola, passa a perna por entre o braço e o tronco do meia rubro, imprensando-a de encontro ao seu braço esquerdo. Ora, houve o hands, porém, ocasionado pelo tranco-foul. A regra manda que marque-se a primeira penalidade cometida”, concluiu Meirelles Filho.

O pênalti convertido por Oswaldo seria o segundo favorável ao América na partida. Após o gol do Botafogo, em um ataque americano, Orlando, lesionado, pôs a mão na bola. Telê partiu para a cobrança, mas o goleiro Germano defendeu. Em todo caso, estavam plantadas as sementes daquela que seria a maior goleada da história do América.

A GOLEADA HISTÓRICA

Quase três meses se passaram entre o jogo anulado e a partida remarcada. Muitas coisas haviam mudado desde então. O América realizava boa campanha e a remarcação acabou por beneficiá-lo. O empate automaticamente teria garantido o título daquele ano ao Vasco. Mas, caso vencessem o clássico, os rubros empatariam com os cruzmaltinos em número de pontos e teriam direito a uma melhor de três para decidir o título e buscar o bicampeonato.

Jornal do Brasil destaca a goleada do América

Para o Botafogo, a situação era bem diferente. Mesmo em caso de vitória, o alvinegro não teria como ir além do modesto sexto lugar entre 11 participantes. O jogo aconteceu uma semana após o encerramento da fase regular do campeonato. No elenco do América, prevalecia um misto de revolta com a injustiça e a necessidade de superá-la. Talvez este sentimento tenha sido o principal combustível para a construção do resultado.

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O jogo em si teve pouco de especial, além da remarcação e do excessivo número de gols. Diferentemente do que faz crer o anedotário alvinegro, o Botafogo foi para o jogo com seu time completo. Tanto não era um saco de pancadas que, mesmo após uma goleada por nove gols de diferença, ainda encerrou a competição com saldo positivo em um gol.

PRIMEIRO TEMPO MORNO

Quem chegou atrasado ao estádio perdeu o primeiro gol. O América abriu o placar logo aos dois minutos de jogo, com Telê, com boa assistência de Sobral após falha do alvinegro Póvoas. Era o primeiro dos cinco que faria na partida. O Botafogo ainda empatou aos oito minutos depois, com Nilo.

A julgar pela superioridade descrita pelo placar, os rubros custaram a reassumir a liderança do marcador, o que só aconteceria aos 25 minutos, com Sobral. Aos 29, Telê aproveitou choque entre Oswaldo e o goleiro Germano para ampliar a vantagem: 3 a 1, dando números finais ao primeiro tempo.

Até então, o Botafogo não tinha sofrido mais que cinco gols por partida, limite atingido apenas uma vez, na derrota por 5 a 3 para o Bangu, na 12ª rodada. Uma marca que estava prestes a cair de modo traumático.

NA SEGUNDA ETAPA, 8 A 1

O América voltou avassalador para o segundo tempo, como se estivesse perdendo e dependesse da vitória para seguir vivo na competição. Telê, após toque de Miro, ampliou a vantagem aos trinta segundos de jogo. Dois minutos depois, falha de Alemão, que substituíra Póvoas, deixou Oswaldo livre para fazer seu primeiro gol na partida. Não perca a conta: 5 a 1.

As publicações da época não eram pródigas na descrição dos lances, de modo que não é possível recontar fidedignamente a história de cada gol, por eles ainda chamados de pontos. Aos dez minutos, Germano fez boa defesa, mas não conseguiu evitar o rebote, que sobrou limpo para Sobral marcar o sexto.

O DESESPERO DE NILO

Oswaldo, aos 20, fez o sétimo. E, dois minutos depois, o oitavo. Estava fácil demais. Campos Salles 118, de Fernando Cunha e Orlando Valle, destaca um episódio pitoresco após o oitavo gol. Nilo interpela Oswaldo e protesta:

“Oswaldo, vê se vocês param de fazer gols, pois não viemos aqui apenas para dar saídas”.

Momentaneamente, o pleito pareceu surtir algum breve efeito. Celso descontou aos 24 para a equipe da Zona Sul, mas não adiantou muito. “O Globo” registrou desta maneira a reação acanhada do público: “O feito do grande deanteiro quase passou despercebido, tal o desanimo dos adeptos do alvi-negro”.

Sobral teve oportunidade clara para fazer o nono, aos 27, quando saiu de frente para Germano, mas acabou calçado por alemão: pênalti. Otacílio reclamou com o árbitro Luiz Neves, que se sentiu insultado e ameaçou deixar o gramado. O público logo lembrou do primeiro jogo, anulado. Mas Nilo, o capitão alvinegro, apaziguou os ânimos. Telê cobrou e fez: 9 a 2.

Mas o apetite de Telê seguia inabalável. Ele já tinha feito quatro gols, mas ainda queria mais. Quatro minutos depois, aproveitou trapalhada da defesa alvinegra para fazer 10 a 2. E Sobral, em posição de impedimento, de acordo com publicações da época, driblou Germano, antes de selar o placar que registraria um gol para cada jogador americano em campo: 11 a 2.

Desde então, o América jamais obteve outra vitória por placar tão expressivo, o que mantém essa como maior goleada de sua história. Essa foi também a goleada mais elástica sofrida pelo Botafogo, contra qualquer adversário. O título daquela temporada acabaria nas mãos do Vasco.

América 11x2 Botafogo

Data: 03/11/1929

Estádio do América, na Rua Campos Sales

Árbitro: Luiz Neves

América: Joel; Penaforte e Hildegardo; Hermógenes, Floriano e Mario Pinto; Gilberto, Oswaldo, Sobral, Telê e Miro.

Botafogo: Germano; Octacílio e Póvoas (depois Alemão); Burlamaqui, Rogério e Benedicto; Edmundo, Nilo, Paulo, Almir e Celso.

Gols: Telê (5), Sobral (3) e Oswaldo (3), para o América; Nilo e Celso para o Botafogo.

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