Há 60 anos, América iniciava trajetória para ser o 1º campeão da Guanabara

Museu da Memória Americana
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17 min readJul 31, 2020
Após uma turbulenta preparação, o América estrou com vitória sobre o Vasco | Jornal dos Sports

Emmanuel do Valle

No ano em que a última conquista do América no Campeonato Carioca completa 60 anos, o Museu da Memória Americana contará passo a passo o desenrolar aquela campanha histórica — que valeu também o título simbólico de primeiro campeão do estado da Guanabara — em seis textos mensais especiais, fazendo com que o torcedor relembre ou conheça mais a fundo os grandes personagens responsáveis por mais esse momento marcante na galeria americana.

A estreia vitoriosa deixou um bom presságio, registrado nas páginas do Jornal dos Sports

Neste primeiro capítulo, contaremos qual era a situação em que se encontrava o América ao início da temporada, relataremos detalhadamente como se deu a formação do elenco que defenderia o clube no certame e relembraremos ainda como foi o jogo de estreia naquela campanha, diante do Vasco em 31 de julho. No próximo mês, será a vez de rememorar o prosseguimento da campanha com as cinco partidas disputadas no mês de agosto de 1960.

O CLUBE: CONFLITOS E PACIFICAÇÃO

O América iniciou o ano de 1960 com novo presidente eleito, Fábio Horta de Araújo, vencedor do pleito realizado em 28 de dezembro do ano anterior e que seria empossado no dia 8 de janeiro, sucedendo Wolney Braune. Assim que assumiu o cargo, o novo mandatário apresentou o pedido a todos os americanos que se reunissem em prol de uma completa reestruturação do clube, que incluíam a construção de uma nova sede social e esportiva, além da transferência do futebol para uma área na Avenida Brasil, a ser doada pelas autoridades municipais.

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Porém, como era comum acontecer no clube, dentro de pouco tempo as divergências políticas tomariam o centro das discussões. Em abril, entrevistado pelo Jornal dos Sports, Wolney Braune mencionou o montante que havia deixado em caixa no clube ao fim de sua administração, valor que não batia com o apurado numa reunião do Conselho Deliberativo, presidido por Max Gomes de Paiva. A crise se arrastaria por quase dois meses, sem perspectiva de entendimento entre as partes. E culminaria na renúncia de Fábio Horta e de todo o Conselho Diretor.

Um panorama do momento caótico vivido pelo clube era retratado pelo conhecido jornalista Luiz Bayer em sua coluna “Câmera”, no Jornal dos Sports, em 24 de abril de 1960:

“Sem recursos financeiros e herdando uma situação técnica calamitosa, o America debate-se com grave crise técnica. (…) Falta ao América valores na verdadeira expressão da palavra. O América até aos primeiros meses da gestão do Sr. Wolney Braune tinha um plantel de relevo. Mas falou mais a cobiça pelo dinheiro do que propriamente pela eficiência do clube. Em consequência, venderam jogadores como Canário, Lúcio, Romeiro, Leônidas, Dick, além de outros. (…) O América não tem ninguém com coragem suficiente para investir o seu próprio capital. Houve um que se chamava Giulite Coutinho. Cansou, todavia, pela incompreensão e pela oposição sistemática que lhe moveram sem motivo justificado. Culpam o senhor Wolney Braune pelas consequências atuais do América. Acusam-no de ter adquirido mais de dezesseis milhões de cruzeiros com os passes dos jogadores negociados. Desse dinheiro foi feito apenas um galpão que denominam de ginásio. E agora o América está sem jogadores e sem dinheiro (…). O presidente Fábio Horta de Araújo assegurou-nos que melhores dias viriam. O diretor de football, Sr. Álvaro Bragança, declarou que está trabalhando com empenho. Mas o torcedor do América já está descrente. Há mais de vinte anos que só ouve promessas. Há mais de vinte anos que aguarda um título. Mas como? (…) Ninguém no América tem coragem de investir e acompanhar o ritmo dos outros clubes”.

Em meados de junho, enfim, surgiria uma perspectiva de pacificação com a indicação de Álvaro Waldyr Pereira da Motta como novo presidente, nome que representava um consenso por não ser ligado a nenhuma facção política do clube — mesmo tendo exercido cargos em várias das administrações que haviam passado pelo América — e sempre ter se demonstrado uma pessoa serena e ponderada. Na época, ele ocupava a vice-presidência da Federação Metropolitana de Basquete (FMB), além de colaborar com o Departamento Social do clube.

Com seu caráter pacificador, Waldyr Motta foi importante para a campanha de 1960 | Revista do Esporte

“Não sou cartola, não sou político, não sou de briga. Aceito a Presidência, mas com todos os americanos unidos”, declarou Waldyr Motta ao aceitar a indicação, que seria homologada em 19 de junho, em “convenção empolgante”, como registrou o Jornal dos Sports: “O Sr. Waldyr Motta causou forte impressão, pela franqueza, a sinceridade e o tom objetivo que soube dar a suas palavras. Começou logo dizendo que nada prometia além do trabalho e que se sentia muito feliz por ter sido escolhido como candidato único (…). Isto é, como candidato da pacificação”.

UM JOVEM COMANDANTE

No comando da equipe desde o dia 28 de abril estava o carioca Jorge Vieira — “solteiro, 29 anos, estudante de Direito (quintanista e bom aluno de média 7,5)”, como o descrevia uma reportagem do Jornal dos Sports às vésperas da estreia no primeiro campeonato da Guanabara. Apesar de novato, ele já acumulava passagens como treinador do próprio América (entre maio e julho de 1958, após a saída do húngaro Gyula Mandi do comando da equipe), do Fluminense e do escrete cearense que disputara o Campeonato Brasileiro de Seleções.

Desde o início do ano Vieira era um nome cogitado no America, mas para compor a comissão técnica como auxiliar de Moacir Aguiar, o técnico dos juvenis que havia sido promovido ao time principal em janeiro. Sem ser seduzido pela proposta, ele adiaria em alguns meses a sua chegada a Campos Sales, mas conseguiria ser contratado para o cargo que desejava, o de treinador. Antes disso, o América excursionou pelo Nordeste e teve participação bastante fraca no Torneio Rio-São Paulo, terminando na última colocação, com apenas uma vitória.

Disputado naquele ano entre os dias 10 de março e 24 de abril, o Rio-São Paulo era a competição que abria a temporada para os clubes cariocas, embora em muitas vezes o torneio fosse usado como uma espécie de laboratório para testar atletas e escalações. Mesmo considerando isso, a campanha do América foi decepcionante. O time estreou no dia 12 com derrota para o São Paulo no Pacaembu por 2 a 1 e logo teve pela frente os quatro clássicos em sequência, enfrentando Botafogo, Fluminense, Vasco e Flamengo até o fim de março.

Contra os alvinegros, o time parou no 0 a 0. Diante dos tricolores, o ponta-esquerda Nilo anotou o gol do empate em 1 a 1 no último minuto, depois que o adversário saiu na frente com Telê e teve um pênalti batido por Pinheiro defendido pelo goleiro Pompéia. Uma acachapante derrota de 3 a 0 para o Vasco veio logo depois, mas o time pareceu se reabilitar massacrando o Flamengo com um 5 a 1, com dois gols de Hílton (centroavante que seria negociado com o Guarani antes do início do Carioca), um de Antoninho, um de Wilson Santos e um de Navarro, contra.

Foi, porém, um alarme falso: na reta final o América perdeu para o Corinthians no Maracanã (2 a 1), para o Santos na Vila Belmiro (5 a 4, num jogo em que chegou a estar vencendo por 3 a 2), foi goleado pelo Palmeiras novamente no Maracanã (4 a 1) e, por fim, no dia 14 de abril, batido pela Portuguesa no Canindé (então conhecido como “estádio da Ilha da Madeira”) por 3 a 1. A má campanha parecia justificar o comentário de Luiz Bayer sobre a falta de grandes jogadores no América. Dez dias depois da derrota para a Lusa, Moacir Aguiar seria demitido.

O ELENCO

Porém, quando Jorge Vieira voltou para mais uma passagem por Campos Sales, quase todo o elenco que se sagraria campeão carioca ao fim daquela temporada já estava no clube, devido a uma grande reformulação empreendida principalmente entre 1957 e 1958, quando muitos dos jogadores vice-campeões cariocas em 1954 e 1955 deixaram o América. Apenas um jogador que integrara o elenco de 1955 continuava no clube: o goleiro Pompéia, contratado do Bonsucesso em maio de 1955 por Cr$ 300 mil, para o lugar do veterano Osni do Amparo.

José Valentim da Silva, o Pompéia, era um goleiro acrobático. Mineiro de Itajubá, quando garoto, gostava de desenhar personagens dos quadrinhos. Em especial, o marinheiro Popeye, o qual ele chamava de “Pompéia”. Virou seu apelido. Sua impulsão, que fazia com que voasse sob as traves, fora desenvolvida quando trabalhou em um circo. O lendário narrador Waldyr Amaral apelidou o goleiro de “Constellation”, o avião que cruzava os céus na Ponte Aérea Rio-São Paulo. Em 1956, chegou a ser convocado para a Seleção Brasileira, mas não entrou em campo.

Outro nome dos mais antigos naquele elenco era o meia João Carlos, camisa 10 do time, Meia-esquerda de ótimo domínio de bola e carimbador de todas as jogadas de ataque. Revelado pelo Fluminense no fim dos anos 1940, tivera uma primeira passagem pelo América emprestado pelo Tricolor durante o Carioca de 1953. Retornaria ao clube de origem em abril, mas em junho já estava outra vez em Campos Sales num novo empréstimo. Vendido ao Botafogo em maio de 1955, retornou em definitivo ao América dois anos depois, em junho de 1957.

Ainda em 1957, no segundo semestre, durante a disputa do Campeonato Carioca, o recém-chegado treinador húngaro Gyula Mandi tratou de promover alguns juvenis, entre eles nomes que integrariam o elenco de 1960 como titulares ou reservas. Eram os casos do zagueiro Djalma Dias, defensor elegante e de muita técnica; do médio Amaro, outro jogador clássico, de ótimos passes; e do lateral Décio, que não chegaria a titular, mas seria peça importante ao atuar em diversas posições do setor defensivo, sempre cobrindo a ausência de algum efetivo.

O ano de 1958 se iniciaria com a chegada, já em janeiro, dos ponteiros Calazans (direito) e Nilo (esquerdo), vindos de Bangu e Bonsucesso, respectivamente, e ambos inicialmente em caráter de experiência, mas logo contratados em definitivo. Os dois, aliás, tinham estilo de jogo bastante semelhante: ariscos, dribladores, de chute muito forte e ótimos cobradores de falta. Além disso, também tinham capacidade de atuar mais recuados, compondo o meio-campo, o que era uma tendência naquela época em que o esquema 4–2–4 já se transformava em 4–3–3.

Baiano de Salvador, Calazans foi criado no Rio desde garoto, no bairro de São Cristóvão, assim como o irmão mais velho Zózimo, quarto-zagueiro do Bangu e da Seleção Brasileira, bicampeão mundial em 1958 e 1962. O ponteiro também chegou a ser convocado para a Seleção tanto quando defendia o time da Zona Oeste quanto na época em que já estava no América. Nilo, por sua vez, era carioca da ilha de Paquetá e despontou no Bonsucesso, onde foi colega de outro jogador daquele elenco campeão de 1960 com o América: o goleiro Ari.

O arqueiro, aliás, seria o próximo a aportar em Campos Sales, em fevereiro de 1958, trazido do Flamengo inicialmente por empréstimo para a disputa do Torneio Rio-São Paulo. Em julho ele teve seu contrato com o clube rubro-negro rescindido e veio então em definitivo para o América. Nascido em Campos dos Goytacazes e revelado pelo Bonsucesso, passou em seguida ao clube rubro-negro, onde não chegou a se firmar. No América, revezaria-se no posto de titular com Pompeia, destacando-se especialmente nos clássicos contra seu ex-clube.

Também em fevereiro chegaria ao clube o médio-volante Sebastião Leônidas, que logo recuaria para a quarta-zaga, aplicando sua qualidade técnica e elegância à saída de jogo do time. Nascido no Espírito Santo, despontou para o futebol em Belo Horizonte, no América local, pelo qual tinha acabado de se sagrar campeão estadual em 1957. Do mesmo time, também viria para Campos Sales em meados de maio o também médio Wilson Santos, 26 anos, um dos mais experientes do elenco rubro, jogador combativo, mas que gostava de cadenciar o jogo no setor.

No segundo semestre de 1958, subiria para os profissionais o lateral-direito Jorge, jogador de muita saúde, vigoroso na marcação e valente no apoio, além de ter um chute poderoso com o pé direito. O outro lateral titular daquela equipe, Ivan, também seria pinçado dos juvenis, mas só no ano seguinte, em caso de necessidade após a séria lesão sofrida pelo veterano Hélio, em entrada dura do atacante vascaíno Almir “Pernambuquinho” que provocaria o fim de sua carreira. Lateral-esquerdo muito corajoso, Ivan tinha ainda boa técnica e muita elasticidade.

No mesmo ano de 1959, outro nome que se firmou na equipe foi o atacante Antoninho, nascido em Niterói e revelado nos aspirantes e na equipe mista que disputou o Torneio João Teixeira de Carvalho, em 1958. No início do ano seguinte, com o centroavante Leônidas “da Selva” em litígio com o clube, o América trouxe por empréstimo o atacante Genivaldo, do São Cristóvão, para a disputa do Torneio Rio-São Paulo e para as excursões que faria ao Norte/Nordeste, América do Sul e Europa/Ásia. Na delegação, viajou também Antoninho, como seu reserva.

Entrando durante algumas partidas, o jovem atacante da base começou a aparecer bem, de modo que, quando o São Cristóvão pediu Genivaldo de volta, o America não fez força para ficar com o jogador, preferindo promover a titular a sua cria, que se mostrava um eficiente finalizador, de estilo “um toque e caixa”. Ganhou inclusive um novo e melhorado contrato, em maio de 1959. No Campeonato Carioca daquele ano, Antoninho balançou as redes sete vezes em 21 partidas e se firmou, sendo mantido como efetivo da equipe para a temporada seguinte.

Os dois únicos reforços para 1960 chegaram às vésperas do início do Campeonato Carioca. Miguel de Souza Filho, o Quarentinha, era um centroavante que o América foi buscar no Ipiranga de Salvador. De temperamento extrovertido e brincalhão, além de alto para a época (1,82m), tinha chute forte com os dois pés, bom drible e muita movimentação. Aportou no clube no fim de maio, contratado sem custos, apenas com o América se comprometendo a fazer no fim do ano um amistoso com seu clube de origem, com renda revertida a este.

Quarentinha, um dos dois reforços contratados pelo América para o Carioca de 1960

Por fim, na primeira quinzena de junho chegaria outro baiano: o atacante Fontoura, contratado do Fluminense de Feira de Santana por Cr$ 200 mil. Ponta-direita de origem, tinha, no entanto, facilidade para atuar em qualquer uma das cinco posições ofensivas, o que o transformava numa peça bastante útil dentro do elenco americano. Era também dono de um bom chute com os dois pés e um cabeceio preciso. Tanto ele quanto Quarentinha vinham por indicação do velho ídolo rubro Plácido Monsores, que então treinava o Ipiranga baiano.

AS EXPECTATIVAS PARA O CERTAME

Com esse elenco, o América tentaria reverter uma tendência de baixa que, por ironia, se iniciara justo quando a equipe — vinda de dois vices em 1954 e 1955 — chegara à liderança do certame de 1956, na virada do turno. Naquele torneio, o time somara 11 vitórias em seus primeiros 14 jogos, mas nos últimos oito venceria apenas dois — desempenho que fazia engrossar o coro dos que diziam que o clube “nadava, nadava e morria na praia”. Em 1957 o time terminara na sexta colocação. Em 1958 e 1959, em quinto. Era necessária uma chacoalhada.

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Como costumava acontecer todos os anos, o campeonato mais uma vez seria precedido pelo Torneio Início, realizado no Maracanã no domingo, 17 de julho — exatamente uma semana antes da abertura do Carioca. Para quem não conheceu ou não sabe do que se trata, esse torneio era uma competição em jogos eliminatórios disputada inteiramente em um único dia e local, com partidas mais curtas, de cerca de 20 minutos de duração, e com os mais variados critérios de desempate — naquela edição de 1960, a definição era feita em cobranças de pênaltis.

O América — que venceu o torneio apenas uma vez em sua história, em 1949 — não foi muito bem, caindo logo na primeira partida diante de um Bangu que jogou com time misto, já que o principal excursionava. O time de Jorge Vieira dominou, mas não saiu do 0 a 0, e a decisão foi para a série de três penalidades. A curiosidade é que uma equipe poderia escalar o mesmo jogador para todas as cobranças, como fez o América. Mas Calazans acertou a trave no primeiro chute, enquanto os banguenses converteram todos e venceram por 3 a 2. No fim, o Olaria levaria a taça.

O Campeonato Carioca começaria no dia 24, e já com um clássico: atual campeão, o Fluminense estreou derrotando o Botafogo por 1 a 0, gol de Paulinho. Seria o único jogo disputado naquele dia, com a primeira rodada desmembrada entre dois domingos. Na quarta-feira, o Canto do Rio bateu o São Cristóvão em Caio Martins (3 a 1). No sábado, o Flamengo derrotou a Portuguesa no Maracanã (2 a 1) e o Madureira superou o Bangu em São Januário (2 a 0). No domingo, o Olaria venceu o Bonsucesso no duelo da Leopoldina em Teixeira de Castro (2 a 0).

Também no domingo, 31 de julho, aconteceria a estreia do América contra o Vasco, em outro clássico da rodada. E havia uma recente, embora incômoda, escrita a ser enfrentada: há três campeonatos os rubros não sabiam o que era começar o Carioca com o pé direito. Mais um sinal do mau momento que o clube vivera no fim daquele decênio: em 1957, o time fora derrotado com facilidade pelo Flamengo por 3 a 0; no ano seguinte, ficara num empate em 2 a 2 com o Olaria; e em 1959, havia sido batido pelo futuro campeão Fluminense por 1 a 0.

As lembranças do confronto contra o mesmo Vasco pelo primeiro turno do campeonato do ano anterior também ainda estavam frescas na memória. A partida, vencida pelo América por 3 a 1 em 9 de agosto de 1959, foi marcada pela jogada em que o lateral americano Hélio e o atacante vascaíno Almir dividiram uma bola, e o primeiro levou a pior, sofrendo ruptura dos ligamentos do joelho esquerdo, o que encerraria sua carreira aos 32 anos. Hélio acusou Almir de ter entrado de maneira violenta de propósito, mas nunca se chegou a um consenso sobre o caso.

De volta a 1960, Jorge Vieira apontava o Vasco como favorito do clássico, pela experiência de seus jogadores e a força de seu conjunto. Mas confiava em sua equipe e na preparação que havia cumprido antes do início do torneio, prometendo um América aguerrido, lutando pela vitória durante os 90 minutos. Na escalação, a única ausência era a de Amaro, com distensão muscular na coxa. Por outro lado, o meia João Carlos, cuja renovação contratual se arrastava, segundo a “Última Hora”, felizmente acertou novo compromisso e foi confirmado na equipe.

“A curiosidade ficou com a troca das camisas entre os ponteiros: na hora do jogo, Nilo assinou a súmula na linha errada, no lugar de Calazans”

Com isso, o time entrou com Ari no gol; Jorge e Ivan nas laterais; Djalma Dias de beque central; Leônidas de quarto-zagueiro; Wilson Santos como médio; João Carlos de meia-armador; e na frente Calazans e Nilo nas pontas; com Antoninho e Quarentinha pelo centro. Os dois últimos, segundo o “Jornal dos Sports”, jogaram mesmo adoentados. A curiosidade ficou com a troca das camisas entre os ponteiros: na hora do jogo, Nilo assinou a súmula na linha errada, no lugar de Calazans, e teve de jogar com a 7, enquanto o extrema pela direita vestiu a 11.

Os cruzmaltinos, dirigidos pelo argentino Filpo Nuñez (que mais tarde faria história no comando da Academia palmeirense), tinham de última hora o desfalque do lateral-direito gaúcho Paulinho (o futuro técnico Paulinho de Almeida, que teria duas passagens pelo America em 1972 e 1985), que ainda não havia chegado a um acerto sobre sua renovação de contrato com o clube e seria substituído pelo baiano Dario. Mas todos os seus demais astros estavam à disposição e escalados: Barbosa, Bellini, Coronel, Écio, Roberto Pinto, Sabará, Delém e Pinga.

UMA ESTREIA CONTURBADA

Disputa de bola pelo alto na estreia: América 1x0 Vasco, no Maracanã

O primeiro tempo do jogo foi disputado em ritmo lento e sem tantos lances dignos de registro. O que chamou a atenção, porém, foi a rispidez com que muitas jogadas eram disputadas por ambas as partes, além da atuação permissiva do árbitro Wilson Lopes de Sousa. O “Clássico da Paz” não fez jus ao seu apelido: Jorge cometeu entradas duras pelo América, mas o caldo ferveu mesmo quando Bellini acertou Quarentinha, tirando-o de campo por uns instantes, e Écio deu um pontapé em Antoninho. Houve um princípio de confusão, que acabou contornado.

Aos poucos, o panorama do jogo se desenhava: ao contrário da impressão de Jorge Vieira, o Vasco parecia um time desarrumado, valendo-se apenas do impulso individual de alguns jogadores, ao passo que o América era sempre mais organizado, mais objetivo, com um propósito, e sobretudo com mais vontade de vencer — daí, talvez, as entradas mais fortes. Houve um chute de Calazans que carimbou a trave de um Barbosa sem reação, além de dois gols corretamente anulados de Delém por impedimento pelo lado do Vasco. E a etapa inicial terminou 0 a 0.

Djalma corta de cabeça | Jornal dos Sports

Mas o marcador não seguiria em branco por muito tempo na parte final do jogo. Logo aos nove minutos, Quarentinha pegou uma bola mal afastada por Russo e arriscou um chute pegando por baixo da bola, uma batida forte e colocada que partiu de seu pé sem ser anunciada e morreu no ângulo. Barbosa, do alto de seus 39 anos, não pôde fazer nada. O gol fez o América crescer no jogo, chegando sempre com perigo e perdendo muitas chances de ampliar a vantagem — numa delas, Calazans chutou para fora com Barbosa batido e a meta escancarada.

Após a partida, ao Vasco sobraram reclamações quanto ao “jogo violento” por parte do América e também quanto à arbitragem. Mas Jorge Vieira, que abraçou efusivamente Quarentinha assim que entrou no vestiário, tratou de responder afirmando que sua equipe jogava duro sim, mas não era desleal. E emendou: “O América não sabia a força que tinha. Agora sabe. Daí ter crescido diante do Vasco como cresceu”. Enquanto isso, os dirigentes anunciavam um bicho de Cr$ 5 mil a cada jogador por aquela vitória e apostavam que o time não pararia por ali.

Um flagrante do América x Vasco, feito pela Revista do Esporte

O futebol demonstrado pelo América foi bem recebido pela imprensa. Para o Correio da Manhã, “a impressão deixada pelo quadro da camiseta vermelha é a de que está com uma equipe harmoniosa, sem filigranas”. Em sua crônica da partida para o “Jornal dos Sports”, Mário Filho descartava que o resultado pudesse ser considerado uma surpresa, mas era profético: “Vendo-o ganhar um grande match, renasce a esperança de que ele [o América] venha a ser o mesmo dos bons tempos, o que pode, realmente, acontecer de um momento para o outro”.

O mesmo “Jornal dos Sports” destacava “o dedo inteligente de Jorge Vieira” no segundo tempo, quando o treinador inverteu o posicionamento de Quarentinha, tirando-o da marcação de Bellini e fazendo-o se movimentar e criar perigo pelos flancos do setor ofensivo, ao mesmo tempo em que recuava os pontas para ganhar a disputa no meio-campo e possibilitar os lançamentos nos espaços vazios, por onde os dois homens centrais do ataque cairiam. “Essas duas modificações, introduzidas no vestiário, ajudaram o America a ganhar o jogo”, destacou.

Nas avaliações individuais, ainda que recriminasse a atuação considerada “violenta” de Jorge na partida, o jornal tecia elogios a quase todos os jogadores, em especial a Ari e Quarentinha, sobre o qual comentava: “Mostrou, outra vez, a sua classe. Parece lento, mas é um grande driblador e tem uma noção estupenda de caçapa, com a devida vênia dos puristas. Seu goal foi muito bonito e feito com perfeição, pois a bola foi colocada no ângulo, por cobertura e com violência. Grande aquisição do América e homem para chegar a ‘scratch’ se não se mascarar”.

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No próximo capítulo, o América inicia sua tradição naquele certame de não dar colher de chá aos chamados clubes pequenos; perde sua invencibilidade com um gol sem querer; e pela primeira vez mede forças com aquele que seria seu grande adversário no campeonato.

*Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador da história do futebol brasileiro e internacional.

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